Só a justiça recupera a paz

Numa das nossas viagens à Palestina, estávamos dentro de casa, eu e a Diana, quando passou um avião e ouvimos uma explosão imensa. O chão tremeu, as janelas vibraram e nós em pânico não sabíamos o que fazer. Olhámos uma para a outra com cara de “Fodeu”. Escondíamos-nos? Abraçávamos-nos? Peguei no telemóvel e liguei ao Khalid. “O que se passa?? O que foi isto?! Está tudo bem contigo?”. Do outro lado, uma gargalhada. Deu-me nervos. Qual seria a graça? “Ah, não se preocupem… os Israelitas fazem isto para nos assustar, vêm libertar o ar dos aviões em treino aqui por cima”.

Como não percebo nada de aviões, não sei que tipo de explicação foi esta, mas por todo o tipo de massacre psicológico (e não só) com o qual já tínhamos sido confrontadas, automaticamente voltámos ao “safe mode” e respirámos.
Mas perdemos o ar várias vezes. Os intermináveis e infinitos checkpoints, as provocações nos colonatos ilegais, tivemos amigos presos, dois personagens do nosso documentário capturados, um deles ainda sem se saber bem porquê nem até quando.

Quando tremíamos de medo ao ouvir os tiros de armas automáticas no campo de refugiados, lembrava-me de todas as vezes que adormeci ao som de grilos e cigarras e perguntava-me como seria crescer num lugar assim.

De manhã, alguém nos contaria das detenções da polícia Israelita a meio da noite e lamentaríamos não termos conseguido filmar. Os humanos precisam de imagens para acreditar. Por isso é que se escolhem muito bem as imagens que se passam nas nossas televisões.

Já perdi a conta às vezes que ouvi gente discursar sobre liberdade. Ai a liberdade… Se imaginássemos o que é nascer e crescer em estado de lockdown permanente, falar de liberdade batia diferente.

Das quatro vezes que voltei da Palestina, a minha família já sabia. “Vens em silêncio outra vez, não é?, perguntava-me a minha irmã Xaninha aborrecida. “Porque é que ficas sempre tão estranha? Mais vale não ires!”.

A minha mãe, por sua vez, olhava o silêncio nos olhos e dava-me colo.

Até hoje me custa a crer que algum dia seja capaz de encontrar as palavras certas para tudo o que testemunhámos ali. As palavras têm tanto poder. Têm de ser bem pensadas, trazem com elas uma carga histórica e podem mudar o mundo. Podem ser desconfortáveis, causar embaraço coletivo. Mas faz uma diferença absurda chamar as coisas pelos nomes.

O meu pai, que sempre se informou muito bem pelas notícias, tinha dificuldade em receber as informações que eu lhe trazia do outro lado do muro. Eu sentia-me tão frustrada. Como é que eu lhe explicava que as palavras que ele recebe cá são esfregadas em lixívia? Como é que eu posso fazer sentir o terror que testemunhei e a pressão, o nível de stress e a tensão que vivi na pele ao atravessar fronteiras e interrogatórios invasivos? Como é que eu lhe explico que criei personagens e inventámos histórias e celebrámos de cuecas e soutien num quarto de hostel na Jordânia, o termos cumprido a missão com sucesso, sãs e salvas?

O silêncio perante a catástrofe é complacente. A alteração da narrativa é criminosa.
A colonização da Palestina começou muito antes da II Guerra Mundial abrir portas para uma necessidade urgente de encontrar casa para uma população massacrada. Não podemos compactuar com a disseminação de propaganda manchada de humilhação e sangue.

Vivemos até hoje um paradigma em que o poder e o dinheiro desculpam e pagam o silêncio perante um flagelo humanitário sem fim em nome do sionismo e de um Deus elitista.
A limpeza étnica dá-se seja pelos tanques, bombas, aviões, mísseis ou granadas. Do outro lado as pedras dos destroços que deixam pelo caminho. A diferença dos nossos dias? O povo tem telemóvel e o nível da propaganda é um estado declarado e está à vista de todos os que quiserem ver.

A colonização da mente entranha-se como o pior dos vírus e ainda assim os palestinianos resistem. Desde o século XIX. Mas não podem resistir sozinhos. Os crimes contra a humanidade exigem que a humanidade se una por justiça.
Já vai demasiado tarde, mas é agora ou nunca.
Está na hora de nos lembramos de uma vez por todas que somos todos feitos do mesmo.
Como diz o Mazin Qumsiyeh, só a justiça recupera a paz. 

Texto original publicado no Facebook a 11 de maio de 2021

Perdi o meu passaporte

Perdi o meu passaporte. Fui três mil vezes aos mesmos sítios, esvaziei cada gaveta, caixa, mala e bolsinha. Revirei tudo. Antigamente, eu nunca sabia o paradeiro de nada, o caos interior manifestava-se em todos os possíveis mini caos da vida mundana e o perder coisas ou não saber delas? Uma constante.

Digamos que, entretanto, não tive muita escolha e a vida obrigou-me a tornar-me organizada. Volta e meia claro que ainda se dão fenómenos de camisolas vestidas ao contrário, ou lembrarem-me que estou a ir embora descalça, mas muita coisa mudou na última década de existência e uma delas foi eu passar a saber das minhas coisas que, por sua vez, também passaram a ser cada vez menos.

O passaporte é suposto estar num lugar super lógico, prático, acessível. Mas não está. Será que o deitei ao lixo nas mil revisões feitas? Estive dois dias à procura até ter dado como caso arrumado: “mistério do ano”. Por motivos de despedidas e corações apertados, a minha mãe veio até ao Porto estes dois dias. Já me tinha perguntado um milhão de opções onde poderia estar. “Não mãe, já vi aí… oh mãe achas que eu já não fui aí?”.

Ontem, estava eu a caminho de tratar de uns afazeres de última hora e liga-me com a boa-nova: “Naná encontrei o teu passaporte!”. Jura. Muito obrigada, mas ONDE? “Estava na latinha da tua mesinha de cabeceira!!”. Não é possível. A primeira lata a que me dirigi e que eu esvaziei mais que uma vez? Até debaixo da lata vi. “Era a primeira coisa que se via ao abrir a lata”, disse-me com ar meiguinho.

Quando a minha mãe me encontrava milagrosamente coisas das quais eu não sabia, além de dar graças pela criação das mães, sentia-me idiota. Desta vez, porém, foi diferente. Eu tinha tanta certeza que sabia onde estaria, fui tantas vezes a todos os sítios possíveis que mais parecia um fenómeno à Toy Story.

Isto não era mais um caso básico do quotidiano de quem tem a vida de pernas para o ar, entendem? Eu falhei simplesmente em ver algo que estava, de uma forma muito descarada, bem em frente ao meu nariz.

Às vezes estamos tão preocupados em encontrar algo que aquilo pode estar escancarado à nossa frente e para nós… népia. Sem sinal. Foi-se a bateria do detetor.

Por muito independentes que nos tornemos,
por muito que façamos da auto-suficiência um objetivo de vida, há uma verdade que é me é imperativa e que se revela em vários momentos simbólicos, como este: nós precisamos uns dos outros. E vamos precisar sempre, em diferentes dimensões. Não só para nos tornarmos melhores pessoas, para ultrapassarmos tempestades e festejar as alegrias da vida.

Às vezes estamos desesperados à procura de algo que é nosso, está ali, escarrapachado em frente ao nosso nariz e passa-nos ao lado. Não são precisos grandes esforços e aventuras, às vezes tudo o que precisamos é de uma dose de paciência e carinho, o suficiente para com cuidado abrir a p*ta de uma latinha na mesinha de cabeceira. 

Texto original publicado no Facebook a 8 de abril de 2021

O mundo mudou, papá

O meu pai dá aulas na escola pública há 41 anos. Já encolhemos os ombros juntos muitas vezes. Lembro-me do corpo atlético dele e da paciência e entusiasmo com que ensinava, em pequena sempre gostei de assistir a várias aulas dele. Era vigoroso, destemido, exemplificava com o corpo. Ensinava os “crescidos” do secundário, tratava-os por engenheiros. Toda gente lhe tinha muito respeitinho mas eu também reconhecia a admiração geral. Em Resende criou as Férias Desportivas, como o meu avô tinha criado os Jogos Juvenis em Gaia, dando oportunidade a que todas as aldeias do concelho praticassem desporto nas férias e nos pudéssemos encontrar, conhecendo realidades diferentes enquanto crescíamos. Fora isso, treinava um grupo de ginástica e aproveitava o pavilhão para ainda pôr um grupo de senhoras a mexer o rabo.

Quando nasceu, os astrólogos leram que o Sol estava em Virgem e a verdade é que tem dedicado a vida dele ao trabalho e a ajudar os outros a conectarem-se com o seu corpo. Já encolhemos os ombros juntos várias vezes. Ora lhe congelaram a progressão na carreira, ora adiaram a idade a que poderá finalmente reformar-se, cada novidade que os governantes lhe davam era mais um motivo de suspiro.

Foi diretor da escola dois anos e quando novas regras vieram e a coisa se tornou em mega agrupamento, esteve mais nove anos como subdiretor. Cresci rodeada de professores, dos que trabalham em escolas públicas, que passam décadas em colocações ora aqui ora acolá, em modo instabilidade constante, mergulhados entre a dualidade de querer formar o mundo e a frustração de fazer parte de um sistema da idade da pedra.

Não conheci muitos professores felizes com o ofício, embora tenha conhecido muitos que deram o seu melhor enquanto ignoravam por períodos de de 45 ou 90 minutos o descontentamento coletivo da profissão.Ao meu pai, com 41 anos de ensino e 61 de idade, ainda faltam seis anos para se reformar. O corpo e a mente já não se alinham com o desporto como outrora, mas ainda vejo nele os olhos doces, que agora pedem óculos, e o compromisso em dar o melhor que pode.

Vejo-o a adaptar-se à idade e ao mundo, mas nota-se o cansaço. “E ainda faltam seis…” e eu que já trabalho há dez até troco os olhos com as contas. Nunca há de se ter imaginado a dar aulas sentado no sofá. Eu e a minha irmã vamos rindo, também nunca nos imaginamos a assistir a aulas dele na cozinha.

Entre vídeos, links e fichas, exercícios e alterações de definições do “teams”, faz-nos “shhh” que vai iniciar mais uma lição. Lá faz uma pergunta sobre um tal vídeo que tinha pedido para verem. Fica a olhar para o ecrã e nos auriculares não há sinal de movimento. Olha por cima dos óculos e suspira. “Bem, vou pôr isto de outra forma. Quem é que daqui VIU o vídeo?”……………”.

Mais um suspiro enquanto procura o tal do link, partilha o ecrã e eu vou num instante dar uma ajudinha para que não lhe falte o som. Sento-me no maple em frente, do outro lado da mesa em que normalmente comemos e olho para ele com carinho. Sobe um degrau com as sobrancelhas e espreita por cima dos óculos.

O mundo mudou, papá… e nós lá encolhemos os ombros juntos, mais uma vez.

Texto publicado no Facebook a 17 de fevereiro de 2021

Ao relento

Nunca ninguém tinha acampado nos Castanheiros do meu avô. São quatro hectares de trabalho solitário e memórias sagradas de quem não pôde ficar cá para sempre.

Quando ele estava no IPO, com alucinações, passeámos pelos corredores hospitalares enquanto ele me apontava as árvores mais recentes que havia plantado nos terrenos, enquanto admirava as mais antigas. “Estás a ver aquilo ali, que bonito?Isto é tudo tão bonito, minha filha”, dizia-me enquanto passávamos por pessoas de bata branca e caras sofridas. As lágrimas caiam-me e com elas eu conseguia ver o que ele via.


Os castanheiros ficam lá no cimo do monte, só de carrinha é que se alcança e sabem os céus os buracos e solavancos que se passam até lá chegar.

Nunca ninguém lá tinha acampado mas eu tinha-lhe prometido que havia de lá dormir. Não sabia ao certo porque é que me deu para querer ir precisamente naquela noite, foi tamanho puxão, o peito pulsava e o corpo seguiu. Felizmente, o coração manteigudo do meu pai andorinha voou connosco até lá.

“Mas porque é que não ficas em casa?”, perguntava a minha mãe que não entende a ‘trabalheira’ de uma noite de campismo. “Vai ser bom”, era a única frase com sentido que me ocorria.

Fiquei mais tarde a saber o porquê daquela corrida. A tenda montou-se com vista para o mundo, mas aquela noite pedia os cobertores ao relento.


No topo do monte, nem um nico de vento, às vezes apenas um doce olá de uma brisa envergonhada.
Chamei os meus avós e os que antes deles por ali suaram. Agradeci ao meu avô aquele pedaço de céu e pedi-lhe permissão para ali ficarmos. Não passou muito tempo até que algumas estrelas caíssem e com elas duas ou três lágrimas de saudade.

O meu avô queria-nos ali, naquela noite, e nem me tentem convencer do contrário.

Perdi a noção do tempo assim que a Lua cheia rasgou o céu e Saturno e Júpiter se juntaram a ela num triângulo perfeito. A nós juntaram-se os pássaros, as cigarras e os grilos a darem duas de letra, os cães a uivarem ao longe e, de vez em quando, um suspiro de quem não sabe medir o mundo em palavras.

As maiores revelações da vida são-nos feitas depois de mergulharmos silêncio e por isso sairíamos dali e o mundo nunca mais seria o mesmo.


Ele lá acabou por aparecer, no meio dos ramos como quem espreita uma criança a dormir. Deu-me um beijo na testa e eu sorri-lhe. Caramba avô, que isto é mesmo tudo tão bonito.

Foto: Thomas Ott

Happy 420, Maria

Even though I’m in an extended period of no consumption of any kind of substance (besides sugar😬), I want to honor my medicine. The Mother of my healing process and one of my biggest Teachers. The Plant that helped me to deal with the worst moments of physical pain, and that worked as a gateway for so many difficult answers.


I am sorry that you are being exploited, as so many sacred medicines, I am sorry for the constant genetic abuse and mixtures, and mostly for all the unconscious use that make you a threat instead of a healing tool.


Every time I felt your shadow, you were the one telling me it was enough. Every time I misused you, you came and told me to stop. My meditations and journeys with you took me to the most beautiful places within and for that I’m deeply grateful. When any conventional medicine could help me, your elements supported me with love. You also taught me how toxic alcohol was in my life and how I didn’t need a single drop of it.
You brought me relief, you brought me peace and then you taught me about connection, but mostly freedom.


You supported my reborn and helped me to learn how to walk by myself. I see you as much as you see me. I feel you as an Entity of consciousness and I respect you as my Teacher. I don’t crave you, I don’t need you at this point of my life, but I love you, and I honor you. Happy 4/20 everyone. Happy Happy day, Maria 🌿
(Photo wasn’t taken in Portugal)

P.s- My dad just shared this post and after so many years of dialogues and fights around this subject, this was the best gift I could get on this 4/20. Communication heals. Love and Respect are everything ♥️

The End of the F***ing World

Quando era miúda encontrava imensas pessoas famosas na rua. Ao contrário do que acontece agora, sabia sempre quem eram e reconhecia toda gente da televisão.

Cheguei a ter um caderninho só para autógrafos e fiquei mesmo ofendida quando, para aí aos seis anos, as Tentações me recusaram uma assinatura num restaurante em Resende. Que más.

A vida vingou-se e acabei a dançar com os Anjos em direto na Praça da Alegria aos 10 anos, quando fomos lá falar sobre o facto de Resende ter tido a primeira escola preparatória do país com um programa de intercâmbio europeu para professores e alunos. Só saí do estúdio quando tive o meu caderno devidamente assinado por toda e qualquer possível alma que eu tivesse reconhecido da televisão. Aquilo era mesmo importante para mim, ora não ficassem ali guardados, na minha história, aqueles seres que partilhavam ecrã com os meus desenhos animados preferidos.

Com o tempo veio a noção de que aquelas pessoas eram tão normais quanto eu. No final do dia, todos eles comem, cagam e choram, não é verdade?

Além do mais, deixou de ser suficiente partilharem o ecrã com os meus heróis preferidos, a maioria dos ditos famosos revelavam-se pessoas cujo trabalho não puxava muito pela minha admiração. Tal e qual como acontecia na minha vida, já não bastava simplesmente aparecer para ganhar uns pontos de consideração. No meu caderninho, comecei a guardar nomes menos conhecidos mas que me trouxeram as memórias mais lindas.

Além disso, a timidez. Na adolescência, foram dias e dias seguidos fechada no quarto a ouvir música, a ler e escrever, ou a fazer recortes em revistas e jornais, mas sobretudo a debater-me com a necessidade de estar sozinha.

Começava a ganhar as primeiras noções de espaço e a perceber que só conseguia ser extrovertida com determinados grupos, em momentos e contextos próprios e a ideia de ir ter com uma pessoa desconhecida e pedir-lhe um autógrafo assim, só porque sim, tornou-se bizarra.

No entanto, em dimensões paralelas, davam-se os meus primeiros passos de coragem para partilhar o que ia escrevendo e aprendi o quão saudável pode ser um gesto de validação artística, o quão bem sabe ser acarinhado em resposta ao amor e dedicação que pomos na nossa manifestação criativa.

Por isso, como em tudo, o truque é encontrar o equilíbrio e se eu gosto e admiro o trabalho de alguém, seja ou não conhecido, dando-se a oportunidade certa, o filtro cai e lá deixo que o coração diga o resto, às vezes de formas que até a mim surpreendo.

A vida ensinou-me que há formas lindas e subtis de expressar admiração e reconhecimento sem invadirmos o espaço de ninguém. E sabe tão bem aos dois lados!

Há uns meses, estava eu a trabalhar na gestão das operações do Waking Life, na entrada do festival, quando um dos voluntários me pergunta entre dentes: “Balolas. Balolas! Este não é o ator do The End of the F***ing World?”.

Ora estava eu a morrer de sono, acabada de entrar no turno e a distribuir os sacos do lixo que o pessoal tinha de mais tarde devolver cheios, quando o Alex Lawther pára à minha frente.
Se o rapaz não me tivesse chamado à atenção, distraída como sou provavelmente nem reparava, mas realmente… só podia ser ele.

Como sou boa a passar momentos embaraçosos, numa de precaução, a única coisa que me saiu depois da saudação de boas vindas automática e sentida foi: “Sorry, is it possible that I may know your face from somewhere?”

Muito tímido, simples, com ar de miúdo fofo e com um sorriso atrapalhado respondeu-me “hum… I don’t know… but it’s not impossible, I am an actor in England… maybe is that?”

Sorri e não me saiu nada. Na-da. A timidez dele ativou a minha e pronto, eu que adorei a representação dele na série da Netflix, bloqueada pela aleatoriedade da coisa perdi uma bonita oportunidade de lhe dar um “passou bem” emocional.

Disse-me adeus com a mão e eu atrapalhada respondi. Que naba. Zero. Qual validação artística… nem uma das minhas saídas com graça, nem uma piada ao lado, nada. Mas enfim, dei-lhe um saco do lixo. Ri-me sozinha.

O festival foi passando e ainda me cruzei com ele uma vez perto do lago. Não me viu mas eu fiquei feliz por constatar que se estava a divertir. É que tem mesmo ar de bom miúdo.

Depois de uma semana para lá de intensa, com muitas emoções à mistura, muita dança, muito amor e muito trabalho, chegou por fim a última e derradeira tarefa da nossa equipa, já sem voluntários: organizar os autocarros para que o pessoal fosse embora feliz e contente da vida.

Um calor abrasador a la Crato, pessoal de ressaca filas e filas e filas e autocarros e autocarros e autocarros. Nós? Cheios de pica. Estava quase quase quase. Já meia a derreter, meia a desidratar, lá andava eu toda feliz a distribuir o pessoal e a contar lugares por preencher.

Sentia-me realizada, não só tínhamos sobrevivido quanto constatado que a terceira edição do festival tinha sido um sucesso. O Waking Life é um projecto incrível, fruto da boa vontade de uma comunidade intercultural do qual me sinto feliz por fazer parte.

As pessoas amaram o festival, havia aquela sensação de nostalgia no ar, eu mandava piadas para o pessoal se animar e ordenava-lhes que regressassem no próximo ano.

1,2,3….. Ok entram mais dois! Afinal mais um. Oh! O casal tinha saído para trocar a mochila. Estes dois que entraram, afinal têm de sair, constato. Lá volto a entrar para os avisar quando de repente prontos a alapar o rabo depois do Tetris das mochilas eles lá se viram. Claro que era o Alex e ao lado o amigo.

Ahahah ri-me por dentro. Ora dou um saco do lixo para a mão, ora sou portadora de más notícias! A vida e o seu sentido de humor lá me traziam a oportunidade não planeada de contar mais uma história.

Meiguinha e já a prever o ar de calimero a surgir-lhes no rosto, pedi desculpa pelo incómodo mas expliquei-lhes que teriam de sair porque, afinal, aqueles lugares já estavam ocupados. No entanto, nada havia a temer: tinham lugar no autocarro estacionado imediatamente atrás daquele.

O ar de calimero concretiza-se. O amigo bufa. O Alex levanta-se, novamente de costas organiza as coisas e eu dirijo-me para o meio do autocarro.

Ora, eu bem sei como estas coisinhas chateiam, não tivesse eu Mestrado em “Colecção e Sobrevivência a Pequenos Azares da Vida” que logo me levaram ao Doutoramento em “Paciência Infinita, Copo Meio Cheio e Outras Artes da Mente”.

O único truque para sobreviver a este mundo é mudar as lentes dos óculos que usamos para enxergar o que nos rodeia.
A decisão de nos agarrarmos à lamentação é nossa e é mesmo possível coar os grãos do drama à nossa volta. Há coisas que simplesmente não merecem o nosso aborrecimento porque em nada dependem de nós. É como quem se lamenta constantemente sobre o tempo. Ele não vai mudar por acumulação de queixas! Podemos ficar com uma nuvem cinzenta à nossa volta o resto do dia, ou simplesmente rir destas tropelias. Eu prefiro rir de tudo, não consigo levar nada demasiado a sério.

Os dois amigos viram-se cabisbaixos, finalmente prontos. A ironia do momento é digna de gargalhada, não fosse o protagonista da série em questão.

Com ar dócil mas quase de beicinho, encolhe os ombros e com um sorriso de esguelha olha-me nos olhos com ar de quem está habituado a que estas coisas lhe aconteçam. Passa por mim para descer as escadas, ficamos a poucos centímetros um do outro pelo que me sai da boca fora em tom fofo mas gingão:

-Come on maaaan, it’s not the end of the fucking world. :)))

Assim que o digo, o amigo levanta a cabeça curioso. Eu dou um salto ao aperceber-me do que acabava de acontecer. O Alex olha num instante para trás com um sorriso de orelha a orelha enquanto me pisca o olho e acena.

Aceno e pisco o olho de volta. Desço as escadas enquanto solto umas gargalhadas sozinha. Que incrível.

Dou sinal ao autocarro para seguir, ainda faltam uns quantos. Mas quando todos se forem embora, hei de ir para a tenda a correr: afinal é este tipo de histórias que me dá gosto escrever no tal do meu caderninho.

BUKRA Film

Instagram: @Bukra_film // Fundraising Party to be announced

They will tell you it’s impossible. And it’s ok, maybe it feels like it sometimes; At some point, everyone will come to you almost like channelling a test from life trying to make sure you really believe in what you are saying you want to do.

There will be so many questions, affirmations, ego reactions and challenges that you will face that, seriously, you really will have to believe and love what you are doing, otherwise it will be easy and even understandable that you doubt about your dreams and sanity. But please… don’t.

This project started one year ago and the story of how all this happened under such blessed energy, made it seem like a river that knows exactly where it is flowing, all by itself.
Flexibility, surrender and healthy egos are key tools to make something ”impossible” happen. That and an immensely talented and strong partnership. ♥️

This all started with the right will and a serious commitment, and I guess that’s the basis for any kind of path you choose to follow. If there is something I’ve been learning this year is that with the right intentions, focus and passion… you will end up showing to others and yourself that no, it’s not impossible.
You will live the most extraordinary experiences while trying to accomplish your dreams. Many crazy walls to climb, the ridiculous amount of surprises, some hard frustrations and challenges but maaaaan then all it seems to align and you feel like floating on an ocean bubble of love.

I’m deeply grateful to every single person that has been helping this project, the wave of generosity, trust and love that we received since this all started is beyond overwhelming and inspiring. Thanking you all it’s not enough.

Even with all the barriers and “impossible’s” we made it to film everything successfully, after three crazy intense weeks of shooting around 16h a day.

It has been a mad, insane, emotional, and wonderful year since we went for the first time to Palestine with open hearts and minds. It feels like I grew up 100 years in 12 months, and I’m feeling so deeply grateful and proud.
Thank you from the bottom of our hearts. It is not impossible. It’s super fucking possible.♥️

Cartas para Vadios//6

Porto, 13 de junho de 2019

Dear Duki, 

Começou a roda-viva. Ah como eu gosto desta vida que roda que nem aquela saia da Carolina que nos fartávamos de cantar em crianças a caminho de São Martinho de Mouros, para visitar os meus avós.

“As pessoas perguntam-me muito, sabes… se ainda não te cansaste deste rodopio”, dizia-me a minha mãe agarradinha a mim enquanto aproveitámos o último quarto de hora antes da minha tia chegar e me dar boleia até aqui ao Porto. Olho para ela com carinho e testemunho o que tantas milhares de mães desta nossa geração devem sentir.

Todos os que voam têm de poisar, isto é sabido por todos. Hoje entendo melhor que nunca o poder de estar mais perto. Têm sido tempos muito intensos, Duki. “Meu Deus do céu”, diz-me ela banhada em lágrimas. Olha que eu admiro tanto a minha mãe.

Estudas psicologia, de certeza que já ouviste falar de fibriomialgia e da depressão que ela costuma trazer às cavalitas. Entrou de rompante pela nossa casa dentro, quando eu tinha oito anos. A minha mãe era tão nova, Duki. Em Resende perguntavam-lhe “se era alguma coisa terminal”, não por maldade ou descuido, queriam muito bem à minha mãe, mas ninguém estava preparado para a ver assim.
“Tu sabes que és a minha grande musa”, dizia-lhe eu no tal último cigarro que fumaremos em muito tempo. “Oh, tens cada uma”, respondeu-me com um sorriso tímido. “És mãe; claro que és: Ou tu não vês o quanto escrevo sobre ti? É esse amor, essa força toda que me inspira.” As mães são uma força divina. E quantas mais mães conheço, mais a vida me fascina.
À minha dói-lhe na alma que eu saia tanto, e enquanto sente aquele pesar tão genuíno, acaba por nem ter espaço para se lembrar que sou só mais um fruto de uma linhagem de mulheres que saíram de casa para seguirem os sonhos que tinham. A minha avó, a minha mãe, as minhas tias, todas elas ,Duki, tiveram de deixar as mães para viverem a vida que as esperava. 

A minha avó, que era menina de boas famílias, deixou tudo pelo amor infinito ao seu Amadeuzinho; O pai, primeiro professor das redondezas e a mãe senhora das diplomacias e bons costumes viram-na de malas feitas para ir viver no monte o amor que à partida de lhe dariam pés frios, mas lhe causava arder de peito. Era a rebelde da família, a minha avó Teresinha, ela que haveria de partir com o mesmo sorriso de uma menina.

A minha mãe saiu de casa da mãe dela para estudar aos seis anos. Seis anos Duki, não foi aos 18. Em casa da avó tinha responsabilidade de adoptar todos os primos da cidade que visitavam a aldeia. Uns do Porto, outros de Vila Real e a ganapa não só fazia camas como cortava unhas, dava banhos e punha a mesa para os grandes encontros de família que se davam ao fim-de-semana. Aos seis saía do monte para a aldeia e aos dez mudava-se para Vila Real, onde estudou no liceu até se mudar para o Porto e começar a Universidade. Aos onze tinha as duas irmãs com ela, começou-lhe cedo a maternidade.

Mãe Anabela em Afife// Agosto de 2018

Entendes a responsabilidade que a minha mãe assumiu para se fazer à vida? É uma história inacreditável Duki, a dela e das minhas tias. Mas isso daria para livros e eu escrevo-te cartas.
Sempre que as ouço contar todas as histórias que nos coloriram natais, páscoas e todas as lareiras da alma, embevecia-me a simplicidade e alegria com que cresceram. 

A gratidão que sinto tem raízes profundas, e cada vez que a minha mãe chora as minhas saídas, ela banha os nossos beijos com as lágrimas que também lhe choraram as mães antigas da família, e as tias, e as primas.

Lembro-me de ser miúda e a minha mãe trazer sempre com ela na carteira uma folha dobrada em quatro. Quando estava entre amigos e pessoas de confiança lá puxava da sua incrível capacidade de rir e em voz alto lia uma anedota longa e bem escrita, das que os adultos enviam por mail. Com aquele ar de menina que sempre participou em teatros e declamava poesia de cor, lá contava o encontro de um génio da lâmpada e um homem e que ali poderia expressar o seu maior desejo.

O homem não sabia nadar e humildemente desejava a construção de uma ponte que unisse Lisboa ao Açores (não sei se eram estes os pontos, mas fica a ideia) e o génio ria-se à gargalhada. “Estás louco? Sabes o que envolve construir uma ponte dessa envergadura homem? Os quilómetros, a profundidade, toda a maquinaria e material necessários…”. O pedido era uma loucura, pelo que o homem teve de pensar noutro desejo. Ora o homem deu voltas e mais voltas,  a tentar encontrar um desejo que honrasse aquela oportunidade única e assim se fez luz. “Já sei! Toda a minha vida vi a minha mãe chorar, a minha irmã, mais tarde a minha mulher. Partiu-me sempre o coração assistir a todas aquelas lágrimas. Génio eu desejo saber porque choram as mulheres”. A minha mãe fazia uma pausa e assim preparava o momento. O Génio ao ouvir ao pedido, nem hesitou. “Queres a merda da ponte com duas ou quatro faixas?” Ah! Ainda ecoam em mim as gargalhadas dela.
Todos os filhos sabem quando custa ver a nossa mãe a chorar e, por muito tempo, a minha mãe não conseguiu mais chorar. Também me aconteceu, quando tomei medicação para a ansiedade. E sei bem o quanto faz falta a alquimia que transforma a emoção em água e sal.

Os antigos mestres da cultura Zen falam do poder do agora e de honrarmos cada momento como uma benção aceitando as lições que a vida nos traz. Isto nos livros tem sempre outro sabor, o pôr em prática é que costuma causar alguma comichão. Nos dias de hoje em que corremos e o trânsito entope até que o abrandar significa para por tempo indeterminado, ui Duki não é tarefa fácil. 

A minha mãe nunca cedeu à doença. Embora com o tempo as capacidades dela tenham ficado absolutamente limitadas; a minha mãe nunca permitiu que as pessoas sentissem muito a dor dela. Só estes meus últimos dez anos de dor ciática, brinde que veio no bolo de ter duas hérnias discais, é que consegui finalmente calçar parte dos sapatos dela.

Que força Duki, meu Deus do céu. A dor de costas veio quando também eu saí do ninho, já viste o simbolismo da coisa? Até para ter asas é preciso transmutar. É fácil o meu corpo associar aquela casa a dor. Apesar de ser o núcleo de todo amor e carinho, aquelas paredes já absorveram e muito, o que é sentir no corpo a exaustão de respirar. A fibromialgia é um monstrinho que chega e não quer ir embora, custe o que custar.
E custa muito, Duki. Mas a mãe Anabela entre muito cuidar, passar e tricotar, ainda ganha coragem de baixar a medicação e eis que volta a alquimia de quem consegue chorar.

Agora voltei a casa de coração aberto e cicatrizes curadas, estar ali não é senão motivo de agradecimento e reflexo de nutrição. Logo de manhã ligo a coluna e começamos a dançar enquanto aqueço o meu chá de menta. Eu e a minha mãe conversamos com tempo, apesar de eu passar tantas horas ao computador a trabalhar. E rimos tanto, mas tanto. É tão bom estar de volta, Duki. Mas agora tenho de voltar a voar. E então estamos ainda ali agarradinhas até que a minha tia telefona, que me veio buscar.

No outro dia estava eu em Lisboa e a minha mãe ligou-me, como já é costume, a meio da tarde. “Como estás mamã?, perguntei eu com saudades de lá.

“Olha minha filha cá ando. Mas queres saber uma coisa?”, pergunta-me com tom de felicidade.
“Quero sim, mamã”.
Então fez uma daquelas suas pausas, de menina que fez teatros e declama poesia de cor e preparou-me para um grande final.
“Hoje, meu amor, já não voltei a chorar”.


E pronto, por hoje é tudo. Vou apanhar a roupa; já secou, por este andar.
Um beijo enormi Duki,

Gosto imenso de ti. 

B.

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Cartas para Vadios// 5

Resende, 7 de junho de 2019

Dear Duki,

É sexta-feira e a contagem decrescente para o regresso da Xaninha chega finalmente ao fim. 

O tempo pára quando dou por mim aqui sentada na cozinha a ouvi-la falar sobre mais uma semana de aventuras no trabalho. A minha irmã é de longe a pessoa mais engraçada que eu conheço.

No outro dia encostada à porta da lavandaria pensativa, olhava ela para o horizonte. De repente mexe-se, vira-se num instante para nós e como quem se lembra de algo importante pergunta: “dois anos de trabalho… dá quanto de reforma?”.  Rio-me à gargalhada e ela fica com cara de parva a olhar para mim “vais-te rir de tudo o que eu digo?”. Mas o que é que eu posso fazer? Ela tem saídas geniais, umas atrás das outras e nem se apercebe porque está demasiado ocupada a ser ela própria, sem rodeios. 


Eu e a minha irmã nunca chegámos a ter quartos separados, a casa tem três quartos mas nós decidimos acampar para sempre no mesmo. Partilhamos a mesma cama desde que ela veio ao mundo e esta, em específico, já conta com vinte e dois anos de amor eterno.  Aquela cama é-nos sagrada e há tratado de que nos deitemos juntas nela até que os dias acabem. “E se um dia tivermos maridos?”, perguntei durante o acordo “ dormem juntos no quarto dos brinquedos, ou no sofá”, pareceu-me viável pelo que concordei. Não selamos a coisa com sangue ou saliva nas mãos porque em acordos com a minha irmã bastam-se as palavras enquanto a olhamos nos olhos.

Os meus amigos já sabem que quando estou com a minha irmã, sou exclusivamente dela. Como não passamos tempo suficiente juntas, aqui todos os pequenos momentos são aproveitados como quem bebe a sopa diretamente do prato, não vá escapar alguma gota à colher. Vamos vestir o pijama juntas, enquanto uma toma banho a outra escolha a música e dança em frente ao espelho até que chegue a vez de trocar.

Tentei adiantar ao máximo o trabalho que tenho para fazer para poder aproveitar o fim-de-semana  com ela, há um jantar fora prometido, filmes para ver e muita conversa para pôr em dia. Sendo assim parece-me prudente escrever-te como deve ser lá para segunda-feira. Que te parece? 

Já tens planos para este fim-de-semana?
Olha, a miúda chegou. Tenho de ir.

Um beijo enorme.
Gosto imenso de ti.

B.

Xaninha

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Cartas para Vadios// 4

Resende, 6 de junho de 2019


Dear Duki,

Desculpa falar-te do tempo mas a chuva voltou e com ela vem a melancolia dos dias. Nós bem que precisamos dela, nem que seja para nos obrigar a rever o valor que damos aos dias de sol, esse que não vem sempre que nós queremos. A Terra agradece e eu também. Quem não deve estar feliz é a cambada de turistas que por cá anda. Mas é tão bom sentir vida cair do céu. 

Pergunto-me quando te poderei visitar. É tão injusto não poderes viajar porque o Kosovo não é reconhecido internacionalmente. Quem me dera viver num mundo em que o passaporte não é um privilégio, acredito mesmo que todos os seres humanos deveriam ter o direito de circular pelo planeta em que nasceram, alguém te perguntou se querias nascer aí? A mim também não. E é tão injusto que eu possa ir aí mas tu não possas vir cá.

Nunca me hei de esquecer da vez que me disseste “Não sonhas com mais quando não conheces melhor”. Voltei a ler o artigo que escrevi quando te conheci para recordar o Kosovo e a ti. Lembro-me tão bem de chegar ao White Tree Hostel e ver-te ao balcão do bar enquanto escolhias a próxima música para tocar. Nunca falhaste uma, até hoje, já que todas as músicas que trocamos são de uma precisão cósmica. Quando chegámos a Pristina eu e a Di fomos descansar e quando voltámos ao mundo já o Miguel conhecia a tua malta toda, bem como o preço baixo da cerveja fresca que prontamente nos serviste. Esta foto que te envio foi tirada na tal biblioteca do Pólo Universitário que nos disseste para visitar.

É incrível quando olhamos pela primeira vez nos olhos de um desconhecido e temos uma sensação avassaladora de familiaridade, que ultrapassa a dimensão do tempo como a conhecemos. A alegria que me era estar perto de ti sem ter puto de ideia quem eras inspirou-me de formas e jeitos que eu não entendia bem na altura. Mas o que é que nós entendemos afinal? 

Quando somos pequenos os amigos vêm pelo contexto que a vida nos dá, depois já mais graúdos até na casa de banho de um bar podemos fazer uma amizade para a vida. Se há coisa que aprendi ao longo dos anos é a não menosprezar conexões pelo que é suposto ou não ser normal nas métricas sociais que, só por acaso, mudam com mais ligeireza que a latitude e longitude do mapa em que se encontram. Essa conversa do que é “normal” faz-me revirar os olhos. Mas mesmo a sério. 


Sabes quando ouves pela primeira vez uma música e nos primeiros cinco segundos já te rendeste? Ainda mal começou e aquilo já mexe contigo. Não entendes porquê mas também não perdes tempo a querer saber respostas para isso, não é? Ouvimos, voltamos a ouvir e fica em loop tanto nos headphones quanto na alma. Algumas chegam mesmo a molhar-nos a cueca. A mim, pelo menos. Mas eu também molho a cueca com alguma facilidade, já sabemos.  

Há pessoas que nos tocam assim. As cores que vestem, o penteado com que perderam muito ou tempo nenhum antes de saírem de casa, o sítio de onde vêm ou o tipo de dieta que fazem têm absolutamente zero efeito no momento em que os olhos se cruzam pela primeira vez. Quando duas almas velhas se reencontram nesta dimensão a três pisos, o véu cede e as portas para outros mundos ficam escancaradas. Já não somos dois humanos perdidos nos afazeres de uma vida de dramas e histórias contadas e recontadas que nem cêntimos perdidos na carteira; somos dois anciãos cósmicos que finalmente lá conseguiram tramar o suficiente para se voltarem a ver.
E fica o silêncio. Ninguém precisa de dizer nada, ambos sabemos o que acabou de acontecer.

Quantas pessoas olhaste nos olhos hoje?

Não posso fixar os meus olhos muito tempo nos da minha mãe, que já está de mãos no peito e lágrimas prontas para mais uma saída minha. Acreditas que lhe vou falhar o 60º aniversário? Já perdi a conta aos aniversários que lhes falhei. Não dá para ser tudo como nós gostávamos que fosse, pois não? Acho que são as escolhas difíceis que mais nos fazem crescer. A responsabilidade de pesar por conta própria e pagar o que a balança medir. E que balança.

Começa hoje o Primavera Sound, no Porto. Já não estava cá nesta altura há uns anos, mas desta vez não deu para ir, todos os tostões que tenho estão guardados para acabar o filme.

Quando esta fase ficar pronta e estivermos cá sãs e salvas vou organizar um festão. Quem me dera que viesses e passasses as tuas músicas. Molhávamos a cueca juntos.

Ainda hás de ver o mundo Duki, escreve o que te digo. 

Ou então escrevo eu:
Ainda hás de ver o mundo, Duki. Ainda hás de ver o mundo.

Já está.  

Um beijo enorme.
Gosto imenso de ti.

B.

Com a malta do White Tree Hostel, no Kosovo. O Duki nesta foto está ao meu lado direito.
Fotos: Diana Tinoco


Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Cartas para Vadios// 3

Resende, 5 de junho de 2019

Dear Duki,

É meia noite e trinta e seis, finalmente todos foram dormir. Cá somos ninho de corujas, eu é que saí mais para o andorinha, mas a sério, os pais carvalho deitam-se tarde.

Eu tenho sido menina de manhãs, era mais nos meus tempos de Resende que eu acabava por me esticar mais nas horas. Mais tarde, feita à vida, já depois da faculdade, comecei a ganhar mestria no aproveitar das manhãs e do sossego pela noite.

Enfim, mas estou temporariamente de regresso a casa, não é mesmo? A primeira casa, onde aprendi a escrever. Reparo agora que é como um santuário literário para mim, esta casa. Foi aqui que assinei cada bilhete de boa noite para os meus pais, foi no quarto deles em frente àquele enorme computador que escrevi documentos em comic sans sem fim, a cozinha onde a minha mãe me ofereceu e emprestou livros. Onde nos rimos do Papalagui. Onde assinei todas as primeiras cartas.


Estar por cá e sentir-me mais conectada com a criatividade, depois de um bloqueio quase de um ano tudo isto é de uma substância que me ultrapassa. Sinto-me tão feliz.

Agradeço que seja contigo com quem partilho tudo isto. Saber de ti e da tua vida, partilhar toda esta loucura que vivemos este ano, ainda que sem nunca mais nos termos visto ou falado por chamadas como faço com tantos outros amigos com quem mantenho ligações fortes, mas distantes, bem presentes.

Também tu estás de volta a casa dos teus pais, porque assim teve de ser. Agora falamos disto que é voltar ao ninho amadurecidos, capazes de estarmos presentes para os nossos, sem qualquer tipo de fastio por cá estarmos, apenas com uma gratidão e uma enorme sensação de felicidade.

Hoje, que é mais ontem, a minha mãe lembrava-me, enquanto eu fazia o meu almoço à parte – já que agora não como carne e sei que é um fim do mundo para ela pensar em dois menus; que foi há 16 anos que viajei para a Bulgária. A minha primeira viagem Duki, foi há 16 anos. Meu Deus e eu estou tão ciente da importância que ela teve. Lembro-me de olhar pela primeira vez pela janela do avião. O êxtase de ver o céu.

O que é que vês da tua janela?

Aos dez anos, em 2003, fui à Bulgária representar a única escola do país que abria portas ao Projecto Sócrates. A sensação de descobrir um mundo absolutamente desconhecido confirmou logo um desejo já intrínseco de querer ir além das fronteiras do horizonte visual e explorar o mundo. Sabes quanto é que eu trincava de inglês? Ahahahah Exato, bola. Não cheirava quanto mais trincava.  Era o meu primeiro ano a aprender a lingua! Duki imagina-te a viajar para um país que tu nem sabias que existia, em que não percebes absolutamente nada do que os adultos falam, tudo é comunicação não verbal e respostas a todo o tipo de estímulos sensoriais. Eu estava tão pedrada de realidade! Ahah

Fui com a Sara e a Professora Fernanda, que era a nossa professora de Lingua Portuguesa e minha vizinha de prédio. A Professora Fernanda; lembro-me de olhar para ela com ar de admiração e respeito porém com um fascínio associado ao facto de ela representar tanto mundo diferente, só por ser ela. De Vila Real, solteira, tinha sido a diretora da escola e os alunos tinham-lhe o respeito de suster respiração. Sabes aqueles professores que conquistaram fama de maus, mas que depois todos nos apercebemos que eram também de uma exigência que nos quer bem e que nos ensina tanto? Pronto, dessa mesmo. 

A Professora Fernanda era dócil e tinha experiência de maternidade com os sobrinhos, pelo que nos adoptou durante uma semana como dois pintainhos que não fazem nem ideia ao que vão.

A primeira vez que andei de avião foi com uma mulher assim e uma colega, a Sara, que na minha história representa o carácter feminino rebelde, despachado, que sabe o que quer e que não está nem aí para os julgamentos que possam vir. A Sara era uma miúda linda, meu Deus. Tinha vindo de Lisboa para Resende, imagine-se só a mudança. Passados uns anos eu iria para Lisboa e pensaria na Sara com ainda mais carinho.

A Bulgária e toda a sua pobreza, ainda assim tão majestosa e impressionante. Fomos a escolas, ficamos em praias deslumbrantes e reunimos com professores de vários países. Visitamos grutas e templos antigos. Não me perguntes como, mas lá me conectei de tal forma com os adultos do grupo que no final vim cheia de presentes, bilhetes e saudades de pessoas.

A partir daí Duki, veio o mundo. Comecei uma expedição contínua motivada pela vontade de investir no Inglês e em todas as oportunidades que pudessem trazer-me mais noções sobre o planeta em que crescia. Tinha dez anos quando me apercebi da dimensão da gratidão que sentia pela família que a vida me tinha dado.

Ter crescido em Resende foi uma das melhores prendas que eles me podiam ter dado. Poder crescer perto do campo, com amigos de todas as idades e vindos de tantos contextos diferentes, sempre com noções de partilha. Eu tinha dez anos quando anunciei aos meus pais que ia a uma reunião dos Escuteiros locais. “Mãe vou a uma reunião dos escuteiros”, e fui. E a partir daí fui a todo lado que a vida me deixou, ora de mochila, ora de mala, a dormir no chão ou em cama. O mundo tornou-se a minha concha.

Resende é-me imensamente especial. É o cheiro a pão quente e canela de madrugada, as caminhadas ao anoitecer e o “bom dia menina”, “boa noite menina” dos que me viram crescer.

Antes de voltar à estrada acho que faz sentido falar-te de onde venho, mas agora “Boa noite menino” que me vou deitar.

Um beijo.
Gosto imenso de ti,


B.

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviada ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Cartas para Vadios// 2

Resende, 4 de junho de 2019

Dear Duki,

São duas da tarde e acabo de acender um cigarro. Meu Deus, a vida realmente ensina-nos a medir as palavras. 

Cresci a adorar a liberdade. Os meus pais falavam-me dela e de toda responsabilidade que ela carrega e sempre me senti absurdamente grata por isso. A liberdade tornou-se um hino que me acompanha em loop de ser e que se fez sagrada. 

Tudo que nos traga vício leva-nos um pedaço de liberdade, pelo que sempre achei que fumar um cigarro seria permitir-me perder um pedaço da ventania que por cá anda. Com o tempo, aprendi a saber usufruir do que, no presente, alguma dessas incongruências acrescentam a este cirandar sem que a liberdade fique comprometida. Já sei como programar-me para não o fazer.

As pessoas dizem tantas coisas… Tenho aprendido cada vez mais a estar calada. Não porque tenha medo do que me vá sair, é só mesmo porque me tenho apercebido cada vez com mais clareza da dimensão de tudo aquilo que não sei que está para vir. Sempre que acho que sei, pimbas. A esfoladela de joelho agora sabe mais a beliscão no braço.

Lá está, a liberdade carrega responsabilidade e só há muito pouco tempo me recordei do verdadeiro poder das palavras. 

Estou na lavandaria sentada de rabo na tijoleira branca, bem junto à janela, com a coluna JBL a tocar uma das músicas da playlist que criei para me acompanhar em toda esta roda-viva que tem sido a minha vida nestes últimos tempos.

O tabaco de enrolar não me sabe propriamente a nada, a não ser ao que na altura me está a apetecer. 

Acabo de receber um mail da Diana com uma foto minha, de há uns tempos, lá onde a terra tem tanto de abençoada como de dor. Adivinha só quem é que está de rabo na tijoleira e cigarro na mão com ar de quem sente a vida às costas, mas com ar de coragem para a atar à cintura que nem mãe que leva o mundo à frente? Ahah, a vida Duki. A vida é incrível.

A minha mãe já se habituou à ideia de que de vez em quando lá irá ver um pedaço de Pueblo na banca da cozinha. Não é que se contente com a minha resposta de que “mamã, não te preocupes. Eu não fumo sempre, mas agora estou a precisar”. E até já acendemos um ao mesmo tempo. Ela é mestra em saber que as coisas não são sempre ou preto, ou branco.

Ontem escrevia-te sobre a minha elasticidade em função do sol e olha, cá estou eu a aproveitar uns raios mais malandros que fogem às nuvens que chegaram ontem para aliviar a tosta dos últimos dias. Ai não acredito. Ah!Ah! Eu acho que nunca tinha visto um lagarto a espreitar aqui na lavandaria. Está aqui, à minha frente, debaixo da janela. Vou mandar-te um story.

Estar em Resende faz-me sempre re-visitar esta dimensão das origens. O ter crescido meia aqui, meia acolá, a aperceber-me que não importa onde esteja, serei sempre eu a criar os meus lugares. É engraçado como perguntas que à partida são dadas como de fácil resposta para tantas pessoas, para mim são as que me causam mais confusão. Desde a epopeia que já conheces associada ao “como te chamas”, às derradeiras “de onde és?”, “onde vives?”, “o que fazes?”.

Às vezes gosto de imaginar como seria responder a tudo isto sem ser como quem decorou uma canção, mas quando isso acontece e o descrevo assim, só por alto, com pouca chama de entusiasmo, é porque ou estou muito cansada, ou não vale mesmo a pena. Mas quando é que não vale?

Tudo à minha volta me faz analisar a forma como vivo a minha vida; com um olhar curioso mas um quanto de pressão para que se compreenda. De repente vejo-me a dar explicações que nem eu tenho. Porque é que os humanos gostam tanto de perceber tudo?

“Eu só gostava de te compreender”, dizia-me um amigo há uns dias em Lisboa, quando lá fui agora para recolher apoios para o filme. Olhei para ele com muito carinho num final de noite bem passada, e bem nos olhos dele ali estava o interesse genuíno de um amigo que gostaria de me compreender. Mas eu também estou a descobrir, não é verdade? Estamos todos no mesmo, só que uns vão pela estrada, outros escolhem a terra batida, há quem vá descalço pelas ervas e quem surfe ondas de flores ora com, ora sem espinhos.  Então eis que lhe respondi “também eu gostava” enquanto me ria à gargalhada.

Fez um ano em Março que a minha vida levou todo o abanão que eu tanto desejava. Eis-me feita à estrada a desbravar mato entre trabalhos e o projecto que de espírito e vontades própria se fez criar.

É a segunda primavera em que o conceito de casa, estabilidade, relacionamentos, enfim as estruturas a que nos habituamos existir estão expostas à indignação da incompreensão dos que me rodeiam e eis que já não me ralo com isso. 

O incrível de sermos flexíveis e seguirmos o caminho que acreditamos ser o melhor para nós, é que nos habituamos a perceber que o que faz sentido hoje, pode já não fazer amanhã. O sítio onde estou hoje pode ter absolutamente nada que ver com o lugar onde vou estar amanhã. Onde é que vou estar amanhã? Já desisti de tentar programar coisas a longo prazo na minha vida, tu sabes disso. Para a semana sigo para o Canadá, depois para lá do Mediterrâneo, planos…Talvez em Agosto, quem sabe?

A sardanisca ainda aqui anda, como eu, debaixo do sol. A natureza está em constante comunicação connosco, se assim a quisermos ver. Quem sempre gostou de histórias, padrões e se fascina pela simbologia das coisas sabe que estar vivo é um constante explorar de estímulos, ora pela arte da vida ora pela estética do passadiço. Chama-me maluca mas estar aqui sozinha, de cigarro na boca e olhos fechados a apanhar sol e de repente ver pela primeira vez um lagartito nesta lavandaria, tem muita piada.

 
Decidi procurar o que é que os antigos mestres de observação e comunhão com a Terra dizem sobre a simbologia do aparecimento de um lagarto num determinado momento do percurso guiado pelo xamanismo enquanto postura de ser, em conexão profunda com a Mãe Natureza que comunica constantemente.

O espírito do lagarto é associado à flexibilidade e adaptabilidade ao ambiente, sinal de superação a circunstâncias adversas, sendo capaz de acompanhar a corrente da vida e o valor inerente de amalgamação na natureza.

São associados à independência, astúcia e introversão. Ahahahah! Que tal? Sentes alguma ligação?

Enfim, hoje é mesmo um daqueles dias. Bendito cigarro. Bendita liberdade.

Logo escrevo-te mais, tenho de ir trabalhar. E fazer xixi.


Gosto imenso de ti. 

B.

Ph: Diana Antunes

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Cartas para Vadios// 1

Resende, 3 de junho de 2019

Dear Duki,

Escrevo-te em português porque é assim que as palavras me saem sem que respirar me custe. Ponderei começar em escrever-te, mas as sincronicidades da vida já me bastaram para perceber que chega de pensar e enfim, façamo-nos à vida. Sabes?

Ora então que decido começar bem pela moda que me é mais natural; admito que cartas à mão me sabem a outra menta, mas para a dimensão da coisa estas mãos foram treinadas toda uma vida. Assim que te escrevo diretamente do computador, como tantas vezes me comunico contigo. Há aqui uma eletricidade sempre presente, já reparaste? Desde o momento em que nos vimos pela primeira vez, há dois anos, no Kosovo. 

Estou de volta a Resende, terra onde cresci e escrevi pela primeira vez num computador. Estes dias estiveram de um calor absurdo. Foram duas semanas de verão em loop de roupas leves e bebida fresca. Eu adoro o calor, derrete-me o sedentarismo de um inverno custoso e mergulhado em sabores que nos aquecem a alma. O calor faz-me mexer, faz-me procurar a água como um peixe sedento de casa e obriga-me a viver o meu lado mais feliz, social, livre. É como se de repente me apercebesse do pequeno sardão que me tornei, numa procura solar constante, como quem precisa que se lhe aqueça o coração.

O frio faz-me mal aos ossos, traz com ele muito menos luz e eis que dou por mim a mover-me para outros climas e lugares, numa tentativa abelhítica de encontrar outros jardins. 

Faltam três minutos para as duas da manhã e como é óbvio estamos a falar pela net. Já não vejo a tua cara há dois anos e é aquele ícone azul indigo arroxeado da tua foto que me transporta visualmente para a tua presença. Nem a tua voz! Duki eu não ouço a tua voz desde que nos despedimos em Pristina em Outubro de 2017. Tenho mesmo de te ir visitar. Como o mundo mudou entretanto…O de fora e o de dentro; sabes. 

Ao abrir o Facebook vejo o título “Já chorei pra caramba”, diz Bolsonaro sobre cinco meses de governo, com ar de quem pede socorro. Ahahah! O mundo, Duki… o que é que se passa com o mundo? Além de todos os rodopios, claro. Dos rodopios nós sabemos. 

Por falar em mundo e rodopios, hoje é noite de Lua Nova em Gémeos. Acabámos de ler o que a Katie escreveu. Dizes-me “Say whaaat? Sometimes is just too real haha”. E é mesmo.

É mesmo fascinante como nos podemos mesmo sintonizar com o universo. Ele está cá dentro, afinal de contas, não é? Mas às vezes parece que nos esquecemos disso. Eu pelo menos, sei lá. Sinto tanto estas coisas, mas é como se por momentos quase me perdesse por entre outras ondas rádio que se vão metendo pelo caminho. Ainda dão aquele “krrr” de quem até se ouve, mas não declama. Felizmente hoje em dia temos Spotify. 

Acabo de saber que vou na próxima semana trabalhar para Montreal, no Canadá. Ai as voltas que a vida dá. Mas esta conto-te quando a processar, preciso de tempo para organizar as ideias.

Olho para as horas são 2:22 da manhã e claro que já comentámos isso. Respondeste-me “it’s on”. Está mesmo, então não está?
A vida tem sido de uma dureza dócil desde que a aceitei sem muito mais porquês. Sinto que este ano cresci várias vidas e hoje lembro-me melhor do que nunca da magia que é estar por cá. No entanto, estou cansada. Mas enfim, quem não está? 

Amanhã escrevo-te mais. Boa noite Duki, estou off. 

Gosto imenso de ti. 

B.

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Oh Meninah!

(No regresso ao Porto)

A tarde prolongou-se sem que nos déssemos por ela e de repente já é noite quando saio da casa de uma das minhas melhores amigas.

Bato a porta de casa dela enquanto coloco os headphones e procuro a música que quero que me acompanhe até casa da minha irmã.

Está já escuro e há um beco mesmo à minha frente, ao descer o degrau para a rua vejo que não há sinal de pessoas no caminho que vou seguir. Estão apenas dois homens a conversar no lado da rua que ficará atrás de mim, do lado direito da casa dela.

Vou de saia e meias rendadas, tudo em tons escuros, como já é costume. Não foram precisos mais do que vinte segundos para ouvir:

– OH MENINAH

O alerta do costume dá-me um aperto no estômago de quem já está preparada para ouvir uma merda qualquer desagradável.

Já todas perdemos a noção das enxurradas de frases e palavras asquerosas que homens de todas as idades nos presenteiam nos seus comentários de quem não tem tento na língua. Os últimos 4 anos em Lisboa criaram uma programação instantânea para chaves no meio dos dedos, ouvidos moucos e cabeça defensiva. Sigo em frente e finjo que não ouvi.

– OH MENINAAAH

Quando é assim respiro fundo e não aguento. O tom com que me chamava dava asas a demasiados tipos de interpretações. Esqueço a programação e olho para trás. A minha postura à primeira vista confiante insinua um gentil mas resistente “Sim, meu senhor, diga lá”.

De cigarro na mão e já com alguma saudade dos seus 50 anos, dá mais um bafo e diz com a pronúncia mais linda deste país: 
– Oh meninah!!! Tem a sua sainha lebantanda!!

Oh meu Deus. Ponho as mãos no rabo.

Está mesmo. Todo à mostra. Yep. Eis-me de pandeireta ao léu, de padrão rendado e coração a mil.

Sai-me automaticamente um sorriso maior que eu em tom de reconhecimento. Tiro a saia presa no elástico e levo as mãos ao peito enquanto olho para ele agradecida e com aquele ar de quem sabe que se nos viu o rabo, ali ao léu bem descarado, está tudo bem.

– Ai meu Deus!! Muito obrigada!! 
– De nada meninah!! De nada!!!

Viro-me de saia composta e dignidade recuperada, um “meninah” no coração e a nalga um bocadinho mais arejada. E pronto, lá sigo de música nos ouvidos e de alma cheia como quem acaba de ser salva com carinho, a rir-me de coração grato.

Que maravilha é estar de volta ao meu rico Porto ♥️

Mais uma volta ao Sol

Dei mais uma volta ao Sol e desde há um mês para cá, todos os dias a minha rica mãe, sempre com jeitinho, solta a derradeira pergunta em tom que suplica por verdade: “Balolas, diz-me lá, não te sentes muito só?”
Consigo sentir na voz dela a dor antecipada que se deixa escapar, só com a ideia que a sua menina se possa sentir sozinha.
“Só? Não mãe…só não”


Não me levem a mal, a pergunta vem cheia de amor e cuidado, tomara que todos os seres deste mundo tivessem alguém que lhes dedicasse cuidado sobre o quão invadidos pela solidão possam estar.


Isto de se sentir desde muito cedo que se é de todo lado e não se é de lado nenhum tem muito que se lhe diga. Mesmo que eu tivesse pavor a não estar provida de companhia humana, a verdade é que as tão infinitas e nunca demasiadas voltas que esta malha quente da vida me vai dando, também me treinaram desde muito cedo para enfrentar essa coisa que é estar apenas na minha própria companhia.


Estar sozinho é um constante mergulho gélido em todos e quaisquer poros abertos da pele que vamos vestindo desde o primeiro dia que nos expõem ao mundo.


É só quando temos tempo e espaço para o silêncio, para a reflexão e para os momentos “tcharan” do nosso espírito, que conseguimos realmente perceber quem é a voz por trás dos milhares de pensamentos que nos invadem diariamente, o que é que este corpo em que cresço gosta ou não, onde está cada um dos finos cabelos que nos caem na pele e que nos dão comichão.


Eu não julgo minimamente quem não quer nunca estar sozinho. É um grande salto que se dá o de termos de lidar constantemente com quem somos. Há tantas, mas tantas coisas que nos podem envergonhar, massacrar, espezinhar, se não olharmos para quem somos com um pouco de compaixão e paciência.


Se por vezes me questiono onde é que se pode ter tanta angústia guardada, por outro lado, também me assola a questão de como é que posso ser tanto amor?


Tive desde sempre a tendência para amar sem medida e já todos sabemos o quão boa sou a esfolar os joelhos. Mas o que é eu posso fazer em relação a isto? Não há rolha que pare uma queda de água. Ou tentem lá controlar a força do mar contra uma falésia!


Este amor todo cá dentro tem me permitido, desde muito cedo, uma ligação especial com a maioria dos seres humanos com quem me cruzo. Já fiz muita borrada, mas sabem quando até as borradas guardam com carinho?
As conexões que a vida me doou desde muito cedo ficaram em mim para sempre e apesar da distância e da velocidade com que o tempo corre, sei que as amizades e o amor são eternos. E tenho em mim o consolo que haverá sempre, numa das infinitas realidades paralelas a que podemos aceder com a nossa memória, um ponto do tempo e do espaço em que ainda partilhamos o mesmo ar.


Daí que não minta quando digo que, inevitavelmente, nunca chego a estar verdadeiramente sozinha. Tenho-me permitido guardar com cuidado todos os bonitos seres com quem me cruzo e sou uma felizarda por me menterem nas vidas deles a mim também.


Tendemos a culpar os factores externos para a nossa solidão. Com o verdadeiro equilíbrio, vivemos num dos tempos mais extraordinários da nossa civilização. Esta sorte ridícula que temos hoje em dia de podermos pegar num aparelho que nos transporta a qualquer parte do mundo e nos deixa conectar a todos os seres bonitos com quem nos cruzámos um dia, é uma sorte dada por garantida.


Dei mais uma volta ao Sol e pela primeira vez não deu para organizar uma festa com os meus mais queridos para celebrar a maravilha que é estar vivo, quando se cresce com amor. São as voltas que a vida dá e nunca pensei estar tão bem com isto.


Foram precisas 27 voltas ao Sol para finalmente saber apreciar a maravilha que é estar na minha própria companhia – que nem sempre é agradável, mas é deveras fascinante. Isto nunca seria possível sem toda a dose infinita de amor que me rega a vida diariamente, especialmente em dias como os do aniversário através de cada mensagem, chamada e demonstração de carinho. Sou-vos eternamente grata. A vocês e à vida.


Que bom é isto de a minha rica mãe não ter de esperar cinco meses por uma carta amassada que lhe garanta:
“Descansa mamã linda, descansa que eu já não me sinto só.”

Vem do Grego Antigo


Ao longo dos anos comecei a apreciar com curiosidade os vários tipos de reacções que vêm assim que lanço o desafio de saberem lidar com o nome com que me apresento.

À distância, quase consigo adivinhar o tipo de pessoa que se aproxima. Balolas. Parece que se abre um portal diretamente até ao coração das pessoas com quem me vou cruzando.

É engraçado, não é? Como uma coisa tão simples como a reação a um nome pode dar tanta informação sobre a índole do carácter de uma pessoa.

Os meus amigos, fartos desta epopeia, já suspiram. Eu já não guardo mágoas. A culpa não é do nome, é do meu atrevimento em querer manter-me fiel à pessoa de dois anos de idade que se agarrava aos tubos de Pintarolas com a alegria de quem agarra a sua própria vida.

Nunca foi minha intenção criar um mito à volta do nome, as pessoas e a forma maliciosa como tendem a lidar com o que não se encaixa no que conhecem é que fez disto uma cena.

Tenho muito carinho pelo nome que os meus pais me deram, mas há que perceber que quando me deram um nome ninguém me conhecia. Ninguém sabia quais eram as minhas paixões, como soava a minha gargalhada ou o que me deixaria de estômago apertado.

Antigamente, quando as palavras eram sagradas, os nomes eram dados com cuidado. O nome anunciava o ser singular que ali se manifestava. Eram proféticos. No entanto, os meus pais quando escolheram como haveriam de me chamar, não procuraram significados nem leram mitos associados. Seguiram o gosto do quão bem lhes soava e dali veio um nome que a meu ver até é bem bonito, mas que quer gostem, quer não gostem, não tem nada que ver comigo.

As minhas primeiras memórias vêm dos meus dois anos e meio, três anos. Ainda a Xaninha não tinha nascido. As memórias coincidem com o aparecimento do nome Balolas. Foram aquelas cores todas e aquelas bochechas com caracóis que dava beijinhos e abraços como quem respira que lhe deram o significado que até hoje o nome evoca.

Ser a Balolas é ser vulnerabilidade desde o momento em que me apresento ainda que tenha um enorme orgulho na decisão que fiz para aí aos 12 anos, numa tarde de TPCs, quando os meus colegas ouviram pela primeira vez a minha mãe chamar-me assim.

“Sou a Balolas” 
E às vezes ainda coro, é só o raio de um nome. Mas com o tempo também aprendi a responder tanto quanto o tom da pergunta o pede. Como é que as pessoas se levam sempre tão a sério?

“Não te podes chamar assim. Que horror”
“Vem do grego antigo”
“O que é que significa?”
“Ba significa “eu chamo-me” Lolas vem do “como eu bem quiser”.

Foto: Miguel Oliveira

Freaking cold

Last summer I had the fantastic opportunity to work with Daniel Kluken and Ingvild Molenaar. I learned some breathing techniques, part of the Wim Hof method. These days have been between of -12 and -8 Celsius degrees over here in upstate New York. All my mind could think while walking outside with full snow clothes on was ”you must try it here.”
I finally got the ovaries to say it at loud and ask Nalini Therese to support me in this trial of experiencing the cold almost naked and finally did it. Well, it was damn cold indeed, and she carried me on her back to the car after this, because my feet were frozen.
You know, there are loads of cliche quotes out there about the power of our minds but the thing is, our thoughts create our world indeed, and it’s fucking awesome to play with them. ❄️