Só a justiça recupera a paz

Numa das nossas viagens à Palestina, estávamos dentro de casa, eu e a Diana, quando passou um avião e ouvimos uma explosão imensa. O chão tremeu, as janelas vibraram e nós em pânico não sabíamos o que fazer. Olhámos uma para a outra com cara de “Fodeu”. Escondíamos-nos? Abraçávamos-nos? Peguei no telemóvel e liguei ao Khalid. “O que se passa?? O que foi isto?! Está tudo bem contigo?”. Do outro lado, uma gargalhada. Deu-me nervos. Qual seria a graça? “Ah, não se preocupem… os Israelitas fazem isto para nos assustar, vêm libertar o ar dos aviões em treino aqui por cima”.

Como não percebo nada de aviões, não sei que tipo de explicação foi esta, mas por todo o tipo de massacre psicológico (e não só) com o qual já tínhamos sido confrontadas, automaticamente voltámos ao “safe mode” e respirámos.
Mas perdemos o ar várias vezes. Os intermináveis e infinitos checkpoints, as provocações nos colonatos ilegais, tivemos amigos presos, dois personagens do nosso documentário capturados, um deles ainda sem se saber bem porquê nem até quando.

Quando tremíamos de medo ao ouvir os tiros de armas automáticas no campo de refugiados, lembrava-me de todas as vezes que adormeci ao som de grilos e cigarras e perguntava-me como seria crescer num lugar assim.

De manhã, alguém nos contaria das detenções da polícia Israelita a meio da noite e lamentaríamos não termos conseguido filmar. Os humanos precisam de imagens para acreditar. Por isso é que se escolhem muito bem as imagens que se passam nas nossas televisões.

Já perdi a conta às vezes que ouvi gente discursar sobre liberdade. Ai a liberdade… Se imaginássemos o que é nascer e crescer em estado de lockdown permanente, falar de liberdade batia diferente.

Das quatro vezes que voltei da Palestina, a minha família já sabia. “Vens em silêncio outra vez, não é?, perguntava-me a minha irmã Xaninha aborrecida. “Porque é que ficas sempre tão estranha? Mais vale não ires!”.

A minha mãe, por sua vez, olhava o silêncio nos olhos e dava-me colo.

Até hoje me custa a crer que algum dia seja capaz de encontrar as palavras certas para tudo o que testemunhámos ali. As palavras têm tanto poder. Têm de ser bem pensadas, trazem com elas uma carga histórica e podem mudar o mundo. Podem ser desconfortáveis, causar embaraço coletivo. Mas faz uma diferença absurda chamar as coisas pelos nomes.

O meu pai, que sempre se informou muito bem pelas notícias, tinha dificuldade em receber as informações que eu lhe trazia do outro lado do muro. Eu sentia-me tão frustrada. Como é que eu lhe explicava que as palavras que ele recebe cá são esfregadas em lixívia? Como é que eu posso fazer sentir o terror que testemunhei e a pressão, o nível de stress e a tensão que vivi na pele ao atravessar fronteiras e interrogatórios invasivos? Como é que eu lhe explico que criei personagens e inventámos histórias e celebrámos de cuecas e soutien num quarto de hostel na Jordânia, o termos cumprido a missão com sucesso, sãs e salvas?

O silêncio perante a catástrofe é complacente. A alteração da narrativa é criminosa.
A colonização da Palestina começou muito antes da II Guerra Mundial abrir portas para uma necessidade urgente de encontrar casa para uma população massacrada. Não podemos compactuar com a disseminação de propaganda manchada de humilhação e sangue.

Vivemos até hoje um paradigma em que o poder e o dinheiro desculpam e pagam o silêncio perante um flagelo humanitário sem fim em nome do sionismo e de um Deus elitista.
A limpeza étnica dá-se seja pelos tanques, bombas, aviões, mísseis ou granadas. Do outro lado as pedras dos destroços que deixam pelo caminho. A diferença dos nossos dias? O povo tem telemóvel e o nível da propaganda é um estado declarado e está à vista de todos os que quiserem ver.

A colonização da mente entranha-se como o pior dos vírus e ainda assim os palestinianos resistem. Desde o século XIX. Mas não podem resistir sozinhos. Os crimes contra a humanidade exigem que a humanidade se una por justiça.
Já vai demasiado tarde, mas é agora ou nunca.
Está na hora de nos lembramos de uma vez por todas que somos todos feitos do mesmo.
Como diz o Mazin Qumsiyeh, só a justiça recupera a paz. 

Texto original publicado no Facebook a 11 de maio de 2021

Perdi o meu passaporte

Perdi o meu passaporte. Fui três mil vezes aos mesmos sítios, esvaziei cada gaveta, caixa, mala e bolsinha. Revirei tudo. Antigamente, eu nunca sabia o paradeiro de nada, o caos interior manifestava-se em todos os possíveis mini caos da vida mundana e o perder coisas ou não saber delas? Uma constante.

Digamos que, entretanto, não tive muita escolha e a vida obrigou-me a tornar-me organizada. Volta e meia claro que ainda se dão fenómenos de camisolas vestidas ao contrário, ou lembrarem-me que estou a ir embora descalça, mas muita coisa mudou na última década de existência e uma delas foi eu passar a saber das minhas coisas que, por sua vez, também passaram a ser cada vez menos.

O passaporte é suposto estar num lugar super lógico, prático, acessível. Mas não está. Será que o deitei ao lixo nas mil revisões feitas? Estive dois dias à procura até ter dado como caso arrumado: “mistério do ano”. Por motivos de despedidas e corações apertados, a minha mãe veio até ao Porto estes dois dias. Já me tinha perguntado um milhão de opções onde poderia estar. “Não mãe, já vi aí… oh mãe achas que eu já não fui aí?”.

Ontem, estava eu a caminho de tratar de uns afazeres de última hora e liga-me com a boa-nova: “Naná encontrei o teu passaporte!”. Jura. Muito obrigada, mas ONDE? “Estava na latinha da tua mesinha de cabeceira!!”. Não é possível. A primeira lata a que me dirigi e que eu esvaziei mais que uma vez? Até debaixo da lata vi. “Era a primeira coisa que se via ao abrir a lata”, disse-me com ar meiguinho.

Quando a minha mãe me encontrava milagrosamente coisas das quais eu não sabia, além de dar graças pela criação das mães, sentia-me idiota. Desta vez, porém, foi diferente. Eu tinha tanta certeza que sabia onde estaria, fui tantas vezes a todos os sítios possíveis que mais parecia um fenómeno à Toy Story.

Isto não era mais um caso básico do quotidiano de quem tem a vida de pernas para o ar, entendem? Eu falhei simplesmente em ver algo que estava, de uma forma muito descarada, bem em frente ao meu nariz.

Às vezes estamos tão preocupados em encontrar algo que aquilo pode estar escancarado à nossa frente e para nós… népia. Sem sinal. Foi-se a bateria do detetor.

Por muito independentes que nos tornemos,
por muito que façamos da auto-suficiência um objetivo de vida, há uma verdade que é me é imperativa e que se revela em vários momentos simbólicos, como este: nós precisamos uns dos outros. E vamos precisar sempre, em diferentes dimensões. Não só para nos tornarmos melhores pessoas, para ultrapassarmos tempestades e festejar as alegrias da vida.

Às vezes estamos desesperados à procura de algo que é nosso, está ali, escarrapachado em frente ao nosso nariz e passa-nos ao lado. Não são precisos grandes esforços e aventuras, às vezes tudo o que precisamos é de uma dose de paciência e carinho, o suficiente para com cuidado abrir a p*ta de uma latinha na mesinha de cabeceira. 

Texto original publicado no Facebook a 8 de abril de 2021

Cartas para Vadios// 4

Resende, 6 de junho de 2019


Dear Duki,

Desculpa falar-te do tempo mas a chuva voltou e com ela vem a melancolia dos dias. Nós bem que precisamos dela, nem que seja para nos obrigar a rever o valor que damos aos dias de sol, esse que não vem sempre que nós queremos. A Terra agradece e eu também. Quem não deve estar feliz é a cambada de turistas que por cá anda. Mas é tão bom sentir vida cair do céu. 

Pergunto-me quando te poderei visitar. É tão injusto não poderes viajar porque o Kosovo não é reconhecido internacionalmente. Quem me dera viver num mundo em que o passaporte não é um privilégio, acredito mesmo que todos os seres humanos deveriam ter o direito de circular pelo planeta em que nasceram, alguém te perguntou se querias nascer aí? A mim também não. E é tão injusto que eu possa ir aí mas tu não possas vir cá.

Nunca me hei de esquecer da vez que me disseste “Não sonhas com mais quando não conheces melhor”. Voltei a ler o artigo que escrevi quando te conheci para recordar o Kosovo e a ti. Lembro-me tão bem de chegar ao White Tree Hostel e ver-te ao balcão do bar enquanto escolhias a próxima música para tocar. Nunca falhaste uma, até hoje, já que todas as músicas que trocamos são de uma precisão cósmica. Quando chegámos a Pristina eu e a Di fomos descansar e quando voltámos ao mundo já o Miguel conhecia a tua malta toda, bem como o preço baixo da cerveja fresca que prontamente nos serviste. Esta foto que te envio foi tirada na tal biblioteca do Pólo Universitário que nos disseste para visitar.

É incrível quando olhamos pela primeira vez nos olhos de um desconhecido e temos uma sensação avassaladora de familiaridade, que ultrapassa a dimensão do tempo como a conhecemos. A alegria que me era estar perto de ti sem ter puto de ideia quem eras inspirou-me de formas e jeitos que eu não entendia bem na altura. Mas o que é que nós entendemos afinal? 

Quando somos pequenos os amigos vêm pelo contexto que a vida nos dá, depois já mais graúdos até na casa de banho de um bar podemos fazer uma amizade para a vida. Se há coisa que aprendi ao longo dos anos é a não menosprezar conexões pelo que é suposto ou não ser normal nas métricas sociais que, só por acaso, mudam com mais ligeireza que a latitude e longitude do mapa em que se encontram. Essa conversa do que é “normal” faz-me revirar os olhos. Mas mesmo a sério. 


Sabes quando ouves pela primeira vez uma música e nos primeiros cinco segundos já te rendeste? Ainda mal começou e aquilo já mexe contigo. Não entendes porquê mas também não perdes tempo a querer saber respostas para isso, não é? Ouvimos, voltamos a ouvir e fica em loop tanto nos headphones quanto na alma. Algumas chegam mesmo a molhar-nos a cueca. A mim, pelo menos. Mas eu também molho a cueca com alguma facilidade, já sabemos.  

Há pessoas que nos tocam assim. As cores que vestem, o penteado com que perderam muito ou tempo nenhum antes de saírem de casa, o sítio de onde vêm ou o tipo de dieta que fazem têm absolutamente zero efeito no momento em que os olhos se cruzam pela primeira vez. Quando duas almas velhas se reencontram nesta dimensão a três pisos, o véu cede e as portas para outros mundos ficam escancaradas. Já não somos dois humanos perdidos nos afazeres de uma vida de dramas e histórias contadas e recontadas que nem cêntimos perdidos na carteira; somos dois anciãos cósmicos que finalmente lá conseguiram tramar o suficiente para se voltarem a ver.
E fica o silêncio. Ninguém precisa de dizer nada, ambos sabemos o que acabou de acontecer.

Quantas pessoas olhaste nos olhos hoje?

Não posso fixar os meus olhos muito tempo nos da minha mãe, que já está de mãos no peito e lágrimas prontas para mais uma saída minha. Acreditas que lhe vou falhar o 60º aniversário? Já perdi a conta aos aniversários que lhes falhei. Não dá para ser tudo como nós gostávamos que fosse, pois não? Acho que são as escolhas difíceis que mais nos fazem crescer. A responsabilidade de pesar por conta própria e pagar o que a balança medir. E que balança.

Começa hoje o Primavera Sound, no Porto. Já não estava cá nesta altura há uns anos, mas desta vez não deu para ir, todos os tostões que tenho estão guardados para acabar o filme.

Quando esta fase ficar pronta e estivermos cá sãs e salvas vou organizar um festão. Quem me dera que viesses e passasses as tuas músicas. Molhávamos a cueca juntos.

Ainda hás de ver o mundo Duki, escreve o que te digo. 

Ou então escrevo eu:
Ainda hás de ver o mundo, Duki. Ainda hás de ver o mundo.

Já está.  

Um beijo enorme.
Gosto imenso de ti.

B.

Com a malta do White Tree Hostel, no Kosovo. O Duki nesta foto está ao meu lado direito.
Fotos: Diana Tinoco


Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Migrantes. Na Sérvia o pesadelo ainda não acabou

A fronteira da Sérvia foi a mais complicada de passar. Mandam-nos sair do autocarro, abrem-se todos os possíveis compartimentos e percebemos mais tarde que a situação do tráfico de migrantes assim o exige. Os que trabalham com o assunto contam-nos que a Sérvia está lotada e os que vieram a sonhar com a Europa não têm onde ficar.

Chegámos à Sérvia já era noite, depois de uma viagem de doze horas de autocarro. Os assentos eram desconfortáveis, não havia internet e as pessoas não falavam todas as mesmas línguas, o que dificultava a comunicação. Uma rapariga cigana romani de 23 anos trazia consigo dois filhos, um ainda com meses e uma menina de dois anos. Iam sentados à nossa frente e na fronteira implicaram com o passaporte e sobrenome das crianças, que era alemão, como o do pai.Ao fim de algum tempo deixaram-nos passar até à entrada da Sérvia, mas obrigaram-nos a sair do autocarro e a sentir cada extremidade do corpo a gelar, já que as temperaturas naquela zona eram as mais baixas que sentiríamos durante toda a viagem. Abrem todos os possíveis compartimentos e inspeccionam todo o autocarro.

A partilha deste momento com trocas de olhares empáticos seguidos de suspiros de quem está em sofrimento fizeram com que todas as pessoas, agora fora do autocarro começassem a comunicar, quanto mais não fosse por gestos. Assim conhecemos um professor sérvio sexagenário doutorado em línguas que havia perdido a visão ainda em criança, mas cuja independência era no mínimo inspiradora. Contou-me algumas das suas histórias, a forma como se apaixonou pela mulher que não sofre do mesmo problema, sobre o nascimento das filhas e sobre todos os livros que já escreveu e traduziu em braile.

Chegámos a Belgrado completamente exaustas e assim ficámos no hostel mais barato de toda a cidade, onde pagámos seis euros por noite por uma cama em camarata de oito.

As diferenças de temperatura haviam chegado à falha sistémica dos nossos sistemas imunitários e a partir daí seguiu-se uma temporada complicada no que diz respeito à gestão de energia e curiosidade em conhecer o que havia escondido pelas cidades.

Assim que nos afastássemos da zona do hostel, que era em frente à principal estação ferroviária, os contrastes sociais seriam demasiados. A caminho do centro da cidade, que é moderno, repleto de artistas de rua, livrarias e galerias de arte, conhecemos o lado mais ingrato da cidade.

Num parque à beira rio, debaixo de uma ponte, centenas de homens se aninhavam todos os dias ao final da tarde com cobertores, sacos plásticos e olhos de quem não foi aquilo que imaginou para si. 
A frustração, o desespero e o cansaço são três estados cravados na pele de todos os migrantes que chegam diariamente à capital de Belgrado, com esperança de conseguir ultrapassar a fronteira com a Hungria, ou a Croácia, e assim alcançar a tão sonhada Alemanha. 
O sonho europeu é real e ainda não parou de alimentar uma corrente de gente do oriente cuja dimensão “parece infinita”, dizia Dorde Petrović de 35 anos, responsável pela gestão de trabalho da Crisis Response and Policies Center que trabalha em conjunto com a equipa das Nações Unidas – UNHCR – cuja parceria se centra única e exclusivamente em ajudar todos os que chegam a Belgrado a legalizar a sua situação. Mas não só: é com este grupo de voluntários que se registam todas as necessidades básicas necessárias para que se mantenham de boa saúde, com informações atualizadas sobre a gestão política das fronteiras, bem como sobre os campos que os poderão acolher.

Há dois anos o fluxo migratório na Europa explodiu. A crise humanitária envolveu centenas de milhares de refugiados, oriundos maioritariamente do Médio Oriente e Norte de África que procuravam um oásis na Europa Ocidental.

A situação mais crítica envolvia refugiados, mas hoje a realidade centra-se em migrantes a quem lhes foi vendido o sonho europeu. “Diziam-me que na Europa davam dinheiro na rua às pessoas e que havia mais emprego do que trabalhadores. Como passávamos fome o meu pai juntou o que tinha e comprou uma viagem a um traficante que entretanto me abandonou. Já fui capturado em várias fronteiras, espancado”.

A corrente de pessoas que passa pelo centro de Belgrado “parece não ter fim”, diz Marija Majanovi,ćde 27 anos, voluntária e chefe de comunicação do centro de apoio aos migrantes. “Isto não é nada, antigamente recebíamos grupos de centenas de pessoas todos os dias, sem hora de melhorar à vista”, explica, enquanto comenta a frustração permanente de quem quer ajudar mais e não tem permissão para tal. “O governo proibiu-nos de dar roupa e bens alimentares. No inverno chegaram a estar milhares de pessoas em barracos atrás da estação”.

Ali bem no centro da cidade está montado um centro de acolhimento aos refugiados e migrantes que chegam a Belgrado perdidos num rumo que têm na cabeça, mas que não chega a passar daí. Pelo menos não para os que falam connosco sentados no chão, cobertos com mantas, em pequenos grupos de companheiros de viagem cuja única coisa em comum é o nome do traficante que os levou até lá. Refugee Aid Milesalishe (RAM) é o nome do centro que reune associações e grupos ativos na recepção destas pessoas. “Save the Children” é uma delas e uma dos seus voluntários diz-nos não ter ideia de quantas crianças haverão chegado às instalações do centro sem qualquer adulto.

O centro não está preparado para acolher tantas pessoas durante a noite e é por isso que todos os homens são convidados a deixar as instalações, abrigando-se em parques, debaixo de escadas, ou até mesmo pontes. Zeez, de 17 anos, foi um dos refugiados que abandonou a Síria para fugir de um cenário que se tornou incomportável. O objetivo é encontrar a mãe e os irmãos na Alemanha, mas por enquanto está “preso” na Sérvia, já que a Hungria fechou as fronteiras. Zeez deixou a sua terra em 2010 e desde então está sozinho, por sua conta. O traficante que o trouxe até cá abandonou-o depois de gastar todo o dinheiro na praga de casinos que se estende por toda Belgrado. Foi durante a sua odisseia que descobriu um linfoma a que teve de ser operado de urgência e é graças ao centro RAM que vai conseguindo acompanhar a evolução da doença. Hoje, enquanto a sua história não evolui para um final feliz, decidiu aproveitar o tempo sendo intérprete no centro de apoio onde foi recebido. “É tudo uma questão de sobrevivência. Temos de tentar tirar o melhor possível da realidade e a minha não vai mudar tão cedo”, diz-nos enquanto almoçamos. “Há quem esteja pior do que eu, pelo menos agora tenho onde dormir e já falo bem a língua”.

Quem não está com o mesmo ar é Rawa que deixou os quatro irmãos e o pai no Iraque com esperança de, juntamente com a mãe, conseguir encontrar a irmã que se casou com um alemão há alguns anos. “Viemos num grupo de 14 pessoas a pé, de carro, em malas de camiões e carrinhas, o homem a quem comprámos a viagem não foi isto que nos prometeu. Não era isto que vínhamos para encontrar”, diz-nos com um inglês aprendido graças às canções e aos filmes que via. Mostra-nos o aparelho dos dentes. No Iraque era protésico dentário e conduzia o carro de um advogado. “Espero chegar à Alemanha e conseguir trabalho como protésico para poder mandar dinheiro para casa e dar uma boa vida à minha mãe. Enquanto falávamos chega um grupo de nove paquistaneses. Estão em viagem há um ano e meio. O único que fala inglês acaba de saber que vai ter de dormir no parque: “Temos fome, temos frio, mas pior de tudo é já não termos a esperança que nos fez sair de casa, agora só Deus sabe”.

 

Foto: Diana Tinoco

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Macedónia. Viagem à capital europeia do kitsch

Ao visitar a capital da Macedónia fica-se com a sensação de que as ruas foram invadidas por seres inanimados de bronze, de todos os tamanhos e feitios. A estética é questionável, o número total de estátuas, ninguém sabe ao certo

Saímos de Pristina para Skopje num miniautocarro que bateu recordes de falta de conforto. Era já noite cerrada quando chegámos a Skopje, capital da República da Macedónia – república esta que tem o mesmo nome de uma região da Grécia, tendo-lhe isso já valido uns quantos problemas a nível de política internacional. A República da Macedónia foi, ao longo da História, massacrada por invasões de países vizinhos e, depois da Guerra dos Balcãs, os gregos recusaram-se a reconhecê- -la, já que o país se estaria a apropriar do nome de uma região grega, bem como da bandeira com a estrela de 16 raios amarelos em fundo vermelho de Alexandre, o Grande. Mas o governo da Macedónia não fez caso e Skopje é a área com mais bandeiras hasteadas por metro quadrado que eu alguma vez visitei.Skopje é fria e cinzenta nesta altura do ano. Estávamos à procura de um lugar para jantar quando descobrimos o centro da cidade. É difícil descrever a mistura de sensações que esta cidade me provoca. As pessoas não falam inglês, não se mostram muito disponíveis para conversas e, por isso, passo ao papel de mera observadora. 
O centro da capital dá-nos a sensação de estarmos em plena Disneylândia, há estátuas por todo o lado, umas enormes, outras mais pequenas, há estátuas de todos os tamanhos e feitios, e não é por ser expressão, aqui foi mesmo para inglês ver. Se recuarmos apenas quatro anos, a Macedónia sofreu uma transformação no mínimo “radical” e fora do comum que tinha como objetivo atrair o turismo e lembrar os heróis e ícones nacionais.

Os edifícios recentes têm um estilo neoclássico que não condiz com o que o país viveu nos últimos anos, ignorando grande parte da influência da população da Albânia no decurso da história do país. Há mesmo um enorme Arco do Triunfo, e quem não estiver informado sobre o projeto recente de reabilitação da cidade e não conhecer o investimento de quase 500 milhões de euros gastos na sua decoração fica a achar que está perante uma capital imponente, majestosa, gloriosa. A ideia parece ter sido essa, mas falha tremendamente assim que damos de caras com crianças a pedir dinheiro na rua, quando se vê a miséria dos mais velhos ou até mesmo quando se sabe que o salário mínimo é de 237 euros mensais.

Na cidade já se fizeram manifestações e faz-se a piada à falta de gosto, bem como se apontam severas críticas à forma como este dinheiro foi gasto. O número total de estátuas é um mistério para quem passa, diz-se que há gente que contou mais de 60, e não estamos admiradas.

Do outro lado da cidade parece termos chegado à Turquia, com a elegância e as infinitas cores que se propagam pela luz dos pequenos estabelecimentos do Old Bazar.

Na rua há uma enorme banca de livros que se amontoam sem fim. Uma mulher de poucas palavras encaixa aqui mais um, ali mais outro. Fica difícil perceber como alguém conseguirá escolher um livro naquela enorme montanha de ar tão frágil. Ela chama-se Sonia e garante que ali estão mais de 500 livros que vai trocando de posição todos os dias, talvez como ritual, talvez como método de negócio, não se percebe bem.

Recebo uma mensagem no telemóvel, é um amigo meu que me pergunta onde estou. “Na Macedónia”, respondo-lhe. Ao que ele me responde: “Quão estranha achaste Skopje?” Entretanto, rio-me para um condutor de charrete que já a guia há três anos. “Agora fica bem cavalos a passar aqui. São 100 moedas por dia”, diz Traitche, de 52 anos. Os dois cavalos são brancos com pintas pretas, e têm 13 e 14 anos. “Desculpe, não sei falar bem inglês”, diz-me com ar desconsolado.

Vamos para o hostel e é por lá que conhecemos Guney Baser, um jovem turco de 25 anos que fez um percurso semelhante ao nosso nas últimas semanas. Vive em Munique, onde vai terminar a nossa viagem. Estuda por lá porque queria viver longe das regras e da nova onda política da Turquia.

Conta-nos sobre a educação de esquerda que a mãe lhe deu e como há um enorme preconceito na Alemanha em relação aos da sua nacionalidade. “Acham que somos todos muçulmanos só porque somos de um país muçulmano. A minha mãe nunca me ensinou a rezar e eu nunca entrei numa mesquita sequer”, conta-nos enquanto bebemos chá. Estão apenas nove graus e um rapaz passa por nós de calções e t-shirt. Pergunto-lhe se não tem frio e como consegue andar assim com aquelas temperaturas. “Sou inglês, isto é brincadeira”, responde-me o jovem também de 25 anos, que é cientista e se refere ao seu objeto de estudo como “o meu fungo”.

Será na Macedónia que uma gripe nos apanha desprevenidas. E é precisamente quando estamos a comprar lenços de papel numa espécie de supermercado na estação de comboios de Skopje que Richard, de 72 anos, nos aborda. Tem um ar mais saudável que o nosso naquele momento. Nascido e criado no Kansas, nos Estados Unidos da América, o espesso cabelo branco serve de disfarce à alma extremamente jovem que alimenta com viagens todos os anos. Hoje vai apanhar um autocarro para conhecer a aldeia onde cresceu parte da família do seu amigo da Macedónia. Adora Portugal, onde irá em breve com a filha e netos, mas veio à Macedónia para se encontrar com um amigo que é de cá. Milan, um jovem local de 27 anos, trabalhava no bar que Richard frequentava quando em férias em Skopje, há uns anos. Desde então, ficaram amigos e Richard visita-o constantemente. A amizade não escolhe idades, explica Richard, “porque a idade está na cabeça”.

 

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Kosovo. “Não sonhas com mais quando não conheces melhor”

Eram crianças quando foram enviados como refugiados para outros países, assim que rebentou a guerra. Hoje não há espaço para muitos sonhos, já que não podem conhecer o que há para lá das fronteiras de alguns dos países vizinhos

Acordar em Pristina não é assim tão diferente de acordar numa cidade tipicamente ocidental. Apesar de a população, hoje em dia, ser quase completamente de origem albanesa, culturalmente muçulmana, os prédios são novos, as lojas que vemos nas nossas ruas também estão cá, os carros que circulam são de topo de gama, há poucos vestígios de religiosos por estas bandas. “É o que dá fugir aos impostos”, diz-nos um dos rececionistas do hostel onde dormimos quando lhe pergunto como é que, com uma economia tão fraca, há dinheiro para carros tão bons.O Kosovo é um assunto sensível nos Balcãs: os sérvios torcem-lhe o nariz, os bósnios dizem não saber nada e os cidadãos do Kosovo já se conformaram com a situação. Pelo menos é o que nos dizem as dezenas de jovens locais que todos os dias vêm ao terraço do White Tree Hostel para manter a conversa em dia, entre turnos de empregos que lhes pagam contas e intervalos de faculdade. 
Sentada no terraço, observo muitos deles. Têm estilo, são modernos e ousados. Há muitas raparigas com cortes de cabelo mais rebeldes, curtos, pintados. Os rapazes passariam facilmente por jovens de Lisboa ou do Porto, parecem mais velhos do que a data de nascimento do passaporte indica. Desde manhã cedo até à meia-noite, hora a que tem de fechar o bar do hostel, não há uma única música que venha deslocada ou mal pensada numa playlist. “Isto é da erva que se fuma neste país”, diz a rir-se um dos amigos que passam muito do seu tempo ali.

Juntam-se à minha volta, há cervejas na mão de cada um deles. São mais de sete rapazes e uma rapariga, todos eles curiosos sobre a forma como se vive em Portugal. Digo-lhes que um dia têm de visitar-nos. “Não podemos, somos do Kosovo. Estamos presos aqui”, diz-me Duki, de 25 anos. “Enquanto não nos aceitarem como país, o nosso passaporte não vale nada.” Pergunto-lhe como se sente em relação a isso, se há movimentos juvenis que queiram mudar essa realidade. “Nós crescemos a saber que isto era assim. Não sonhas com mais quando não conheces melhor.” O amigo, Gjin, teve outra sorte. “Quando tu nasceste em Portugal, tranquila, nós nascemos na guerra. Com um ano, eu era refugiado na Macedónia. Depois mandaram-me com os meus pais para os Estados Unidos da América. Foi a minha sorte, hoje tenho cidadania e posso ir onde quero”, explica, enquanto cada um deles partilha os países onde foram refugiados em criança. Toda gente fica em silêncio. Aquele que é o país mais jovem do mundo poderia ser um poço de esperança sem fundo; no entanto, aparentemente dizem estar tudo bem. “Temos ar de gente triste?”, pergunta um dos rapazes do grupo à gargalhada, enquanto acende um cigarro.

“Vocês lá fora têm uma ideia errada sobre nós. Como é que cá chegaram? Na internet lemos tantas coisas erradas sobre o nosso país”, continua, enquanto bebe um gole de cerveja.

Conto-lhes do secretismo da viagem, da nossa surpresa ao encontrarmos uma capital tão nova e moderna. Riem-se à gargalhada, quase se orgulham do cenário cinematográfico. “É o que dá as pessoas falarem do que não sabem: quem vem já não quer ir embora” diz-nos um dos rapazes do hostel, que aponta com os olhos para um finlandês que já lá está há um mês. Faz 53 anos no dia seguinte, viaja numa Honda vermelha, era para ter ficado apenas dois ou três dias, mas não consegue deixar Pristina. “Isto é tão bom. Eu amei Portugal, as pessoas de Portugal, mas não quero ir-me embora do Kosovo, talvez amanhã”, diz-me enquanto bebe um shot de tequila às três da tarde.

Lá fora, um grupo de rapazes fuma erva. Mostram-me fotografias no telemóvel de um amigo que lhes enviou uma fotografia com a descrição “já tenho pequeno-almoço”. É uma tigela de cereais cheia de pastilhas ecstasy. As drogas circulam facilmente nos Balcãs e o Kosovo não é exceção. Um dos jovens conta-me que sonha trabalhar na preservação dos lobos. “Um emprego que dê para comer e pagar contas, mas que me faça feliz”, diz-me.

Almoçámos no hostel por 2,60 euros: uma omelete com queijo e uma dose de batatas fritas. Os preços são tão baixos, os salários residuais, pergunto quanto pagam por um quarto no centro da cidade. “Ronda os 70 euros, ganho 250 aqui no hostel. Dá para viver”, comenta o rececionista mais ativo na conversa.

Ao sairmos do hostel em direção à praça principal deparamo-nos com um largo onde circulam várias miniaturas de carros a bateria conduzidos por crianças. Alguns têm mesmo faróis acesos. Os pais também são jovens, é raro verem- -se idosos na rua. No Polo Universitário, em frente à biblioteca, está a decorrer a gravação de um videoclipe. Há um músico com um citfeli – instrumento de cordas típico da Albânia – na mão. Uma rapariga ainda adolescente veste trajes tradicionais. Parece uma boneca, tem olhos claros e pele branca, quase parece desenhada por um artista cerâmico. “Todos os países têm no YouTube uma versão do Despacito, ainda não há nenhuma daqui. Por isso, vou ser eu a fazê-la”, conta-nos Fatmir Makolli, famoso músico nacional, que está orgulhoso de toda aquela produção de televisão, bailarinas e takes que se repetem continuamente.

Drenis tem 19 anos, é filho do produtor deste videoclipe. Estuda Economia na faculdade e desbrava a história do país e da região. O ódio aos sérvios é notório: “Não é aqui na capital que vocês vão ver o que a guerra nos fez. É nas aldeias.” Lamentamos não ter tempo para explorar o interior do país. “Estão a ver aquela igreja ortodoxa ali? Os sérvios construíram-na em 1995, no meio da guerra, para que pudessem reclamar a área à volta. Têm a mania que são espertos, mas nunca deixámos que a terminassem. Está ali só para nos humilhar e não podemos deitá-la abaixo”, diz com desprezo enquanto olha para a inacabada construção, bem no meio do campus universitário. Em 2016, depois de um incêndio, alguns membros da comunidade sérvia tentaram, sob o pretexto de limpar, reconstruir e pintar a igreja, que sempre permaneceu vazia e que nunca chegou a ser terminada, mas o município impediu que continuassem.

A rapaziada que para no White Tree Hostel não partilha desse ódio aos sérvios. Drin, de 27 anos, não tem paciência para um mundo em que as pessoas se querem mal. “A guerra não foi nossa, eu não lutei por nada. Uma vez, no Facebook, fiz um amigo num grupo e vi que era sérvio. Eu perguntei-lhe, ‘sabes que sou do Kosovo?’, e ele disse que não queria saber. A nossa geração não quer mesmo saber, somos mais inteligentes do que isso.”

Foto: Diana Tinoco

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Kosovo. Do secretismo da fronteira à surpresa de Pristina

Crescemos num Portugal seguro, um país de clima invejável, rodeadas de pessoas boas. Em Portugal, qualquer um que junte uns trocos, tem liberdade de voar para onde quiser.

Seja de avião, à boleia, de autocarro ou de comboio, seja de mota ou a pé, de bicicleta ou de carro, os portugueses viajam e, salvo raras excepções, ninguém nos quer mal, nos manda parar em fronteiras porque nascemos no canto errado, não há sentença pela nossa origem. Até hoje, o mais perto de resposta agressiva que recebi por ser portuguesa foi um grito com o nome do Ronaldo, que se seguiu de um sorriso estonteante. Será no Kosovo que vamos ouvir pela primeira vez relatos de gente da nossa idade, nascidos em 1992 e que por serem cidadãos de um país não reconhecido, lhes é negada a possibilidade de ver e visitar outros mundos.

Nos preparativos da viagem, já se sabia que haveria um ponto delicado ali no meio dos Balcãs, que iria exigir de nós bastante mais do que contávamos. Olhávamos para o mapa e a sensação era de uma névoa, um cinzento típico do desconhecido. Se queremos ir ao Kosovo, temos de estar preparados para o que ele tem para nos dar e todos nós, nascidos na década de 90, crescemos com expressões na nossa língua que automaticamente nos indicavam o pior do que por lá se poderia encontrar.

Kosovo foi sempre equivalente a tragédia, confusão, mais anárquico que o próprio Texas, “vai para ali um Kosovo” e o preconceito nasce em nós sem nos perguntarmos bem, quando pequenos, sobre o significado das coisas.

O Kosovo é sempre “muito complicado”, até para os especialistas, os diplomatas, os que tratam dos jogos de xadrez da geopolítica, assim nos dizia mais tarde um norte-americano, marido de uma diplomata a trabalhar com as Nações Unidas em Pristina, capital do Kosovo.

Durante esta viagem que começou a 19 de setembro, sempre que tocámos no assunto “Kosovo” ou se suspirava, ou se bufava, ou nos faziam sinal para falar baixo. “Ninguém fala disso aqui, nós nem podemos lá entrar”, diziam-nos na Bósnia e Herzegovina. Se era ou não assim tão grave, não percebemos bem. A verdade é que toda gente se recusava a informar-nos sobre como lá chegar. Na internet a informação era residual. Nas ruas ouvíamos constantes “não sabemos de nada”.

Em Mostar, o nosso anfitrião disse-nos que o melhor sítio para passar a fronteira pela Bósnia era por Novi Pazar, área muçulmana da Bósnia e Herzegovina: “Pela Sérvia é impossível, eles recusam-se a aceitar a existência deles como um país independente”. Seguimos a pista que nos diziam para irmos até à estação de autocarros de Sarajevo e por lá procurámos um que nos levasse até Novi Pazar. Quando chegámos ao autocarro, íamos a pousar as malas quando um senhor, que não o condutor, nos sussurrou: Pristina?

Afinal o assunto estava ao nível de segredos aos ouvidos. O Kosovo é uma nação recente e ainda existem muitos países que não lhe reconhecem a independência da Sérvia conquistada de forma unilateral em 2008, tais como a Rússia, o Brasil, a Espanha e a China que temem movimentos separatistas do género e que este seja considerado um exemplo internacional.

O autocarro não ia cheio como é costume. A maioria das pessoas eram já de idade avançada e ninguém falava inglês. Por dentro, a cor era de um vermelho aveludado, dando uma sensação mística à viagem. No meio da viagem o senhor que nos perguntou sobre o nosso verdadeiro destino começou a vender bilhetes. Quando chegou a nós pediu-nos sete euros. Ainda tínhamos marcos bósnios e, por sorte, lembrei-me que tinha comigo alguns euros guardados. Apesar de não fazer parte da Zona Euro, os habitantes do Kosovo começaram a utiliza-la assim que a Alemanha o fez, ainda em 2002.

Assim que nos disse sete euros houve uma gargalhada geral. Falava-se albanês e percebemos que estavam a rir-se de nós. Pela primeira vez em toda a viagem não sabíamos se estávamos no roteiro previsto ou no autocarro certo, muito menos com as pessoas certas. Ninguém falava inglês, riam-se de nós a comprarmos um bilhete e quem nos garantia que íamos mesmo para Pristina? Restou confiar.

Como a viagem ia ultrapassar as doze horas e era já noite cerrada, acabei por adormecer tão profundamente que quase não dei conta de pararmos em Novi Pazar. Quando dei conta, tinha uma polícia a pedir-me o passaporte dentro do autocarro.

Estávamos a sair da Sérvia. Lá fora estava um nevoeiro cerrado. Não percebi se era um rio, se era um lago que nos acompanhava. Mas estávamos no meio do nada. Veem-se uns contentores, nitidamente prontos para serem transportados assim que necessário, a servirem de pouso administrativo. Os passaportes voltam a ser recolhidos e agora carimbados. Do outro lado, quem vem de lá para a Bósnia, tapam-se as matrículas dos carros. Estamos oficialmente no Kosovo.

O salário mínimo por aqui é o mais baixo de toda a região, 130 euros para pessoas com menos de 35 anos e 170 para os que são mais velhos. Segundo o Eurostat estes valores não se alteram desde 2011. O contraste é enorme quando comparado a outros países dos Balcãs a ocidente, como a Eslovénia que conta com um salário mínimo de 805 euros, ou a Croácia com 433 euros mensais. Mas o Kosovo não está assim tão desfasado de países como a Albânia cujo salário mínimo é de 155 euros.

Apercebemo-nos nos outros países que existem vários mitos sobre a população do Kosovo que, pelo menos ao que vamos conhecer, não correspondem com a realidade. Falam-se em clãs de famílias, em subsídios pós guerra que sustentam o desemprego. Explicam-nos que o ódio instalado nos Balcãs é milenar. E sobre a população albanesa que reclamou o direito ao Kosovo como independente desenha-se a ideia de uma população preguiçosa, limitada, pouco informada.

As capitais nunca representam dignamente o que é um país, já que todo o crescimento se costuma concertar por lá, mas as pessoas que iremos conhecer vieram de fora da cidade, para procurar emprego e uma vida mais digna. Quando pergunto, mais tarde, a Drin Halipi de 27 anos, a viver em Pristina e a trabalhar como assistente técnico de uma empresa de telecomunicações sobre estes factos a cara dele é de choque. “É claro que dizem isso sobre nós, sem nunca terem posto cá os pés”, diz-me enquanto fuma um charro. Pergunto-lhe sobre a existência ou não de mitos, sobre a hipótese de propagação de informação falsa e quais seriam os motivos para que tal acontecesse.

“Nós recebemos apoio das nossas famílias que emigraram e enviam-nos dinheiro, mas que eu saiba mais nada”, responde. “Eu trabalho num emprego onde não sou feliz para me sustentar. O desemprego é altíssimo mas os meus amigos que não estudam trabalham todos. As pessoas são loucas. Somos provavelmente as piores criaturas à face da Terra”.

Foto: Diana Tinoco

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Mostar. “Nesta cidade não havia espaço para a morte”

Quando a guerra chegou a Mostar, em 1993, não havia espaço para enterrar os que partiam. Os parques onde as crianças brincavam tornaram-se cemitérios, numa altura em enterrar os entes queridos se tornava uma missão de risco.

Enquanto caminho de mãos atrás das costas e semblante carregado por estes caminhos que nos levam ao centro da cidade de Mostar, lembro-me que Saramago perguntava de que servia o arrependimento, se o puro e simples acto de quem se arrepende em nada pode mudar o que se havia já passado. “O melhor arrependimento é, simplesmente, mudar”, dizia. Em Mostar, os nossos corpos reagiam sempre que cruzávamos novas ruas.

Cada passo equivalia ao relembrar constante de que o tempo não pode apagar a memória do que tudo mudou. Os estômagos encolhem. Inscrições por toda a cidade pedem para que a história não seja esquecida. “Remember 93” aparece em paredes, caixotes do lixo, na entrada da Ponte Velha que, quando destruída, materializou o orgulho ferido, toda a dor e revolta dos que por lá viviam.

Ainda perto da casa de Armar, onde estávamos hospedadas, nos destroços que ficaram de um edifício cujas paredes não venceram a força da gravidade lê-se: “Narnia is closed”. Permanecemos em silêncio a mastigar o que as palavras desenhadas a spray não conseguiram digerir. Nas estradas que circundam a cidade ainda existem avisos para o perigo de minas.

Armar, enquanto nos descreve o que era Mostar antes da guerra a que assistiu aos 13 anos, conta que havia vários parques para as crianças brincarem, “todos eles foram transformados em cemitérios, nesta cidade não havia espaço para a morte”.

“Em tempos de guerra não há tempo para velórios ou funerais à luz do dia. Tínhamos de ir às duas e três da manhã, sem luz, enterrar os nossos e esperar que ninguém morresse enquanto o fazíamos. Era um risco dizer adeus”, descreve enquanto dobra o mapa onde marcou a caneta conselhos para comer bem e barato.

Na Bósnia e Herzegovina os preços das refeições deixam-nos boquiabertas, é tudo tão barato. Uma refeição inteira fica-nos por cinco euros. Almoçámos num restaurante ao ar livre, chama-se Saray e tem à porta o menu em inglês e alemão. Por cá come-se essencialmente veado, mas para quem não come carne também se encontram soluções agradáveis ao paladar. O sol bate-nos nas costas, a funcionária avisa que não se vendem bebidas alcoólicas porque o restaurante fica colado à mesquita que iremos agora visitar.

O tecto não é o original, foi renovado porque o anterior foi bombardeado. Um antigo professor de História guarda a entrada de uma das dezenas de mesquitas da cidade. Esta foi construída em 1557 e guarda o mais antigo Corão em toda a Bósnia, oferecido pela Turquia depois da calamidade. “Um país tão forte tornou-se nada. As pessoas quando estão em guerra ficam loucas, tudo a que se podem agarrar é a Deus”, diz o antigo professor que ora mistura inglês, ora lhe mete uns ares de italiano à mistura.

Na Bósnia e Herzegovina ficaremos sempre a meias que perdidas em traduções mal arranhadas. São poucos os que entendem e falam inglês, mas todos fazem um enorme esforço por comunicar. Quando há falta de melhor vocabulário, os gestos e os sorrisos de quem não faz ideia do que lhes estão a dizer lá nos safam.

Um rapaz de 28 anos, Hasar, trabalha o cobre num pequeno estabelecimento onde há mais objectos do que espaço livre. O constante martelar ensurdece-nos, mas sempre dá para perceber que se trata de uma arte de família, de há várias gerações. Hoje, ele e o primo mantêm o negócio da família, segredos de um ofício que o pai lhe passou como legado. Nas ruas do centro sentem-se as influências turcas. Há bazares de um lado de do outro, com artesanato, sacos de alfazema, lamparinas, serviços de chá e bijuteria. Raparigas com Hijabs na cabeça olham os manequins que exibem belas túnicas coloridas. Um grupo de crianças ciganas romenas pede enquanto sentadas no chão, junto da mãe cujo ar cansado pede um tostão como ajuda.

O turismo em Mostar foi sempre forte. Conta-se que a virgem Maria apareceu em 1981 a umas crianças numa localidade muito perto da cidade, conhecida por Medjugorje. Católicos de todo lado aproveitam a proximidade do local das aparições à cidade e visitam-na.

Subimos à famosa ponte. O vento corta-nos as caras que não conseguem desviar os olhos da paisagem que se vê dali. Duas comunidades separadas por uma ponte que não separa nada do que se passou ali. “O lado negro foi um só para todos”, dizia Armar mais tarde quando lhe descrevemos a nossa percepção do que se viveu ali. “A Jugoslávia só era má para os que estavam de fora, os que viviam aqui eram felizes”, afirma enquanto nos conta histórias sobre as cinco gerações da sua família que sempre viveram em Mostar. “A minha família tinha várias casas, hoje das que não foram destruídas fizemos hostels, recebemos pessoas nelas, na Bósnia adoramos receber gente em casa”.

Despois da ponte, do lado croata, as ruas são mais cinzentas, há menos lojas e não há sinal de mesquitas. Passámos por um quiosque, está um homem mais velho e um mais novo a espreitar. “English?”, perguntam-nos. Sim, respondo. Somos portuguesas. “Ah Portugalia…”, grita seguindo-se uma lista de todas as cidades portuguesas cujas equipas de futebol se lembrassem.

Porto! Benfica! Sporting!, a estas estamos habituadas a ouvir, mas de repente: “Braga. Guimarães. Setúbal. In Porto…Boavista!!” O nosso ar de espanto. Eu olhava para a Diana, ela para mim. Como é que de forma tão aleatória, do nada, nos chamavam por casa?

Durante a tarde, quando passeávamos por um dos terraços da principal Mesquita da cidade, aproximámo-nos de um dos bazares e trocámos boas tardes com uma mulher muito bem arranjada e que falava um claro inglês.

Arnela, fugiu de casa aos 14 anos, juntamente com a família para se abrigarem da guerra na cidade, onde sempre era mais protegido. Entre um turbilhão de trocas e voltas que vida lhe deu, Arnela, de 39 anos, juntou-se à missão de paz da ONU, onde acompanhava as equipas internacionais da International Police Task Force”e as mediava com as locais. Era um “mundo de gestão logística, de conflito, de terreno. Geríamos desde a luta contra o tráfico humano, quanto os conflitos em jogos de futebol onde as claques lutavam por mais do que futebol”, descreve e completa: “Comigo trabalhava um português”.

Arnela diz-nos que a sua história é demasiado longa, mas que ficou sem trabalho e agora, finalmente, irá deixar o trabalho da loja que gere com o marido, para poder voltar ao trabalho de cooperação internacional, numa ONG de apoio a mulheres na Bósnia e Herzegovinha.

Depois de receber uma entrega de pizza com a inscrição “Porto Pizza”, que nos oferece, olha para fora da loja que lhe foi oferecida por um amigo, quando o marido andava desesperado à procura de emprego e todos prometiam, mas ninguém ajudava. “Depois, do nada aparece este amigo e diz: eu não preciso de três lojas, sabem? Fiquem com esta e tratem bem da vossa vida”, conta Arnela com ar de quem percebe que ninguém está habituado a tal grau de bondade.

“Por cá, temos um ditado antigo que traduzido é algo como: “Se fores demasiado brando, talvez devas repensar a direção, porque podes estar a caminhar para baixo”.

Foto:Diana Tinoco
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Mostar. A cidade que renasceu das cinzas

A memória dos habitantes de Mostar não deixa que se apaguem as marcas de uma cidade fustigada pela guerra. As fachadas dos prédios ainda mostram as cicatrizes de quem testemunhou o pior lado da humanidade

Chegar à Bósnia e Herzegovina é perceber que não percebemos nada. Sabíamos que íamos sair do conforto da União Europeia, em que não há nada com que tenhamos de nos preocupar, está tudo assegurado pela universalidade das regras e das normativas de um mercado único que uniformiza muito do nosso dia-a-dia sem que nos apercebamos.Passamos a fronteira e estamos no desconhecido. Sobre o país, sabemos o que os media, os professores e os livros que lemos nos ensinaram. Nada se assemelhará aos testemunhos vivos que encontraremos nas ruas daquele que é o país que até hoje mais me pesou. A guerra foi-nos sempre um conceito distante. O sítio onde nascemos foi-nos dado por um fortuito acaso, mas nem todos tiveram a mesma sorte dos que nasceram na bela costa ocidental europeia.

Tudo o que virá a partir desta fronteira será de aprendizagem permanente, choque cultural, avalanche de informação e overdose de emoções. Os novos eram demasiado novos quando a guerra lhes chegou, mas a memória demasiado forte para que se esqueçam, os velhos eram demasiado velhos para que não se esqueçam. Estão abertas as cicatrizes dos tiros, das bombas, os edifícios ainda têm marcas de horror e pobreza. Tudo o que vemos e visitamos brotou da resiliência e da luz de um povo que é demasiado bom a receber estranhos.

Ainda no autocarro de Dubrovnik até Mostar, que nos custou 101 kunas croatas – aproximadamente 13 euros –, senta-se ao meu lado Øystein Nybø. De grande porte, olhos azuis e uma careca a descascar graças ao sol que apanhou no sul da Croácia, o norueguês de 55 anos sorri enquanto distribuem os passaportes, depois de passarmos a fronteira para a Bósnia e Herzegovina. “Aposto que nem vai tentar ler o meu nome”, diz-me a rir-se. Estava certo. Depois de pronunciar tudo que era nome de gente naquele autocarro, a senhora que distribuía os documentos de identificação bem tentou, mas acabou por desistir e guiar-se apenas pela fotografia. Øystein deu uma gargalhada: “É sempre assim.”

Daí surgiu a conversa que só terminou quando saímos, em Mostar. Øystein continuaria até Sarajevo e daí voltaria à Noruega. Nunca foi a Portugal, mas conta-nos que um amigo encontrou o seu grande amor em Lisboa, enquanto passava férias e trazia uma t-shirt com a inscrição “I love Sydney” vestida. “Ele vivia em Sidney e não se tinha apaixonado, é preciso ir a Lisboa com uma t-shirt daquelas para uma australiana ir ter com ele, a perguntar se conhecia a cidade, para até hoje ainda estarem casados”, conta, entusiasmado. Já ouviu falar muito bem da comida e da história portuguesa. Mas é um apaixonado pela Bósnia e Herzegovina e esta é já a quarta vez que vai a Sarajevo. Trabalhou para a NATO numa missão de paz no norte da Croácia na altura do pós-guerra, já depois de 93. Escreve artigos para revistas militares e garante que este país que estou prestes a conhecer “é a verdadeira pérola da Europa, sem que nada se assemelhe a ele”. Mais tarde vou perceber porquê mas, por enquanto, apenas me aguça a curiosidade.

Despedimo-nos e trocámos contactos. O autocarro chega finalmente a Mostar.

Chegámos à estação de autocarros da cidade, levantámos dinheiro e levámos logo com uma taxa de seis euros por estarmos fora da rota da UE. Recebemos a mensagem do roaming, um megabyte de internet equivale a seis euros, acabaram-se os dados móveis e tudo será feito offline. Um marco conversível bósnio (KM) equivale a 50 cêntimos. Com a ajuda da tecnologia, mais uma vez, com o mapa offline descarregado do Google Trips, seguimos até ao Hostel Lovely Home. Poupam-se uns quantos trocos em usar mapas digitais; caso contrário, teríamos colecionado mapas a viagem toda.

Mostar é verde e, embora cidade, parece uma aldeia grande, onde as ruas são cobertas por uma calçada irregular, de pedras gordas, redondas.

Depois de andarmos 600 metros virámos por uma rua que nos levou a uma viela apertada, com quintais e portões grandes, até que uma criança de cinco anos, com óculos redondos, numa bicicleta já sem rodinhas, nos pergunta com um enorme sorriso “Hostel Lovely Home?”, enquanto com o braço nos faz sinal para a seguirmos.

Já à porta aparece o pai do miúdo, nosso anfitrião. Armar tem 39 anos, mas a idade pesa-lhe no rosto. “As primeiras bombas caíram tinha eu 13 anos, quem cresce na guerra nunca mais esquece, compreendes? Oh, claro que não compreendes. Fico feliz que não compreendam”, diz-nos enquanto nos serve café feito por ele, à moda do seu país, com uma valente borra no fundo. Enquanto nos recebe desenha-nos no mapa tudo o que precisamos saber sobre Mostar.

“Esta cidade era linda, era a capital da Herzegovina. No tempo da Jugoslávia éramos tão, tão felizes. Destruiu-se tudo, hoje somos assim, pobres, não temos nada”, lamenta, enquanto mostra vídeos do bombardeamento da imagem de marca da cidade: a famosa Ponte Velha, construída no tempo do Império Otomano e que se erguia no rio Neretva há 427 anos até que foi completamente destruída pela Guerra da Bósnia em 1993.

Armar fala-nos da situação política do país, que foi mais tarde confirmada por todos os habitantes da Bósnia e Herzegovina que viríamos a conhecer: “É caótica, tudo funciona muito mal. Vejam que Mostar não tem eleições desde 2008!”, descreve com indignação.

O transparente rio Neretva é a fronteira natural que divide os bósnios muçulmanos e os sérvios dos croatas. Depois do conflito a maioria dos sérvios deixou a cidade, mantendo-se apenas uma pequena porção desta comunidade étnica. Hoje, apesar de separadas pelo rio, as três etnias vivem em paz, sendo a maior porção da população croata.

Ainda ao pequeno-almoço, Armar diz que as estatísticas são feitas só para o poder e os jornalistas: “Nós nunca quisemos saber da etnia de ninguém, vivíamos todos felizes e misturados. Sabemos respeitar o conceito de multiculturalismo. Até que quiseram separar-nos a todos. E conseguiram. A guerra levou-nos tudo.”

Foto: Diana Tinoco

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Dubrovnik. Da antiga república à loucura de Game of Thrones

É a cidade mais cara de toda a Croácia. A História consagrou-a como especial e hoje em dia é atração da indústria cinematográfica. De “Game of Thrones” a “Star Wars”, eis a viagem à antiga República de Dubrovnik

A manhã começa muito cedo em Dubrovnik e as ruas já se transformaram num mar de gente.

A “Old City”, como todos lhe chamam sem traduzir para qualquer outra língua, tem uma entrada imponente, mas na primeira noite ficámo-nos por um hostel fora das muralhas de Dubrovnik.

Ao pousarmos as mochilas decidimos descansar o corpo por algumas horas. Mais tarde, deparámo-nos com a realidade mais óbvia: estamos na cidade mais cara de toda a Croácia. Aqui não haverá bolso que aguente comer fora, daí que o segredo é ir ao supermercado comprar o habitual salvador dos pobres e oprimidos: o atum.

A sensação em Dubrovnik é a de estarmos numa espécie de parque de diversões. Chamam-lhe a Pérola do Adriático.

À volta, tudo é verde, as encostas estendem-se mar adentro, e quem vê ao longe a imponência das muralhas sente-se hipnotizado.

Dentro das muralhas há milhares de turistas que se empurram e tropeçam para tirar a melhor selfie no melhor ângulo possível. Há lojas alusivas a “Game of Thrones” em todo lado. Veem-se curiosos de todas as idades.

Uns chegam cá pelo que Dubrovnik representa na história do mundo, outros vêm matar a sede de quem vê muito cinema e televisão.

Dubrovnik tem sido cenário principal da série “Game of Thrones”, mas também “Star Wars” foi este ano filmado dentro das muralhas e contam-nos em segredo que se diz que as filmagens do próximo James Bond podem passar-se lá. Afinal de contas, diz-se que o espião jugoslavo Dusko Popov – nome original da personagem histórica que deu origem ao herói das telas de cinema criado por Ian Fleming – viveu em Dubrovnik a certa altura.

Em Split, um senhor que conheci num café tinha-nos dado o contacto de uma pessoa em Dubrovnik para que pudéssemos encontrar um guia de qualidade. Depois de entrar em contacto com esse número e de essa pessoa entrar em contacto com outra pessoa que conhecia a pessoa certa, eis que se marcou o tal encontro. Na manhã seguinte, bem cedo, o sol já queimava. Depois de nos mudarmos para um quarto dentro das muralhas, aproveitámos para lavar a pouca roupa que trouxemos.

Não tardámos a reparar que o esforço das tentativas de contacto com os guias turísticos valeu a pena.

À nossa frente teríamos uma guia sensacional que, na verdade, estava longe de ser uma especialista em turismo aleatória. Jelena Šimac, ex-jornalista premiada de 36 anos, sentava-se à nossa frente para um café e falava-nos do quanto se dececionou com a forma como se faz jornalismo hoje em dia.

“Já não se vai para a rua. Eu queria um jornalismo de pessoas, de contacto humano, mas fechavam-me na redação.” Recebeu em 2013 o prémio da Croatian Association of Journalists como melhor jornalista online, juntamente com a colega Ana Benaci, mas a profissão já não a fazia feliz e decidiu enveredar pelo ensino. Mais tarde, quis algo diferente e decidiu certificar-se pelo Ministério do Turismo da Croácia para poder trabalhar como guia turística em Dubrovnik, de onde é natural.

Jelena adora viver na cidade, ainda que hoje em dia seja economicamente impossível viver entre muralhas. Há quem assegure que o custo de vida em Lisboa consegue ser 13% superior ao de Dubrovnik nos dias que correm.

A beleza natural rodeia Dubrovnik, bem como todo o movimento da cidade. “Mas a História, isso sim, enche o espírito”, repete-nos Jelena com um sorriso no rosto. As muralhas foram construídas no séc. xii, para que a então República de Ragusa se defendesse de ameaças de invasores. Já em 1120 se elegiam os seus governantes. Jelena fala-nos do poder dos mercados marítimos da antiga república, das técnicas diplomáticas que a tornaram famosa e das amizades económicas com povos distantes, como os da Índia.

A ex-jornalista está grávida de seis meses, mas continua a fazer o percurso diário de três horas a pé, entre escadas e fortalezas, para acompanhar os turistas que querem saber mais sobre a origem daquele pequeno paraíso.

Jelena conta-nos que a cidade não teve de se recompor apenas do terramoto que a deixou em mau estado em 1667. Entre 1991 e 1992, a guerra também chegou a Dubrovnik, apanhando toda a população desprevenida. “Ninguém achou que chegaria aqui, então ninguém tinha armas, mantimentos, esconderijos.” Hoje, a UNESCO tem os olhos postos na cidade que, apesar de pequena, conserva monumentos de vários estilos arquitetónicos, como o gótico, barroco e renascentista.

Jelena conta-nos que a antiga República de Dubrovnik era muito avançada para a época, sendo pioneira em várias instituições públicas. “A abolição da escravatura é um dos grandes marcos da nossa história. Em Dubrovnik foi completamente proibida qualquer espécie de escravatura em 1418”, conta-nos, orgulhosa.

Fazemos a Free Walking Tour – “Secrets of Dubrovnik” com Jelena e torna-se óbvia a paixão que nos descrevia pelo contacto humano e a história da cidade. Há quem se vista a rigor pelas ruas de Dubrovnik, os que dançam e cantam, na fortaleza veem-se os preparativos para um casamento. Mais tarde passeamos pela cidade e somos surpreendidos por uma tempestade. A chuva cai sem piedade e abrigamo-nos numa loja de souvenirs.

Karla tem 18 anos, mas parece bem mais velha. Com um sorriso doce, diz-nos para nos chegarmos mais para dentro, não vá o vento surpreender-nos também. Abrigadas connosco e bem-dispostas estão quatro inglesas de alguma idade. Tal como o rapaz do hostel do norte da Croácia que estudava Engenharia, Karla faz este biscate para pagar a faculdade.

A chuva não abrandava e decidimos correr pelo labirinto de ruas e ruelas, agora completamente vazias. São demasiadas esquinas e as esplanadas e os pontos de referência haviam desaparecido todos. Não nos lembramos de como chegar ao hostel, abrigamo-nos num toldo. Víamos o dilúvio e lembrávamo-nos da recente alegria de quem tinha visto um sol quente que anunciava secar a nossa roupa estendida, finalmente lavada. A ironia dos timings. Daí a nada, desanimadas e de roupa colada ao corpo, lá demos com a nossa pequena e acolhedora fortaleza, para onde corremos com os pés submersos num rio prestes a desaguar no Adriático.

https://ionline.sapo.pt/artigo/583196/dubrovnik-da-antiga-rep-blica-a-loucura-de-game-of-thrones-?seccao=Portugal_i

Croácia. O romantismo de Split sai caro

Águas límpidas, paisagens dignas de postais, uma inundação de turistas e preços que nos assaltam a carteira e a calma. Do amor à História à paixão pela natureza, a Croácia confunde-nos com uma mistura de emoções.

Foram demasiadas horas de estrada para quem vai encolhido no banco de trás de um carro. Quando finalmente chegámos perto de Split, já era hora de jantar. Tínhamos encontrado no Booking um apartamento a dez minutos da cidade e ficámos por lá; chamava-se Apartmani U Kastelina.Os croatas não têm feições muito simpáticas e muitos dos sorrisos que damos não têm resposta de volta, mas de vez em quando aparece uma cara mais feliz que compensa as outras todas.

Os senhorios eram um casal bastante peculiar. Ela com ar de nova, bastante maquilhada, com umas calças justas que lhe realçavam as curvas. Ele, bem mais velho, parecia ter um metro e noventa, pernas finas, calções demasiado curtos e uma barriga empinada numa camisola interior antiga, de alças. Viríamos a perceber que os homens croatas são de grande porte, no geral. Estávamos em Hrvatska, a casa ficava mesmo em frente a uma praia, dois quartos e uma casa de banho ficaram-nos por 35 euros. O jantar foi numa pizzaria com um terraço verde em frente ao mar. Na entrada havia uma dançarina e o Restaurant Ballet School mostrou-se um canto agradável, embora os funcionários não nos tenham mostrado muitos dentes. Há bastantes gatos na rua, a Diana diz que lhe faz lembrar a Grécia.

As águas do mar da Croácia são efetivamente límpidas mas, habituada às praias portuguesas onde passei tantos verões, fica muito difícil sentir-me impressionada. Até porque, até então, tudo o que vimos foram praias de pedra; areia, só daquela que parece terra: castanha escura, fina, como chocolate em pó.

Essa noite foi mais difícil, havia muitos mosquitos, mas estávamos tão cansados que nem deu para notar as picadelas, só ao outro dia, quando elas se tornaram enormes caroços espalhados pelo corpo todo.

Seguimos em direção a Split, mas antes decidimos parar na fortaleza de Klis, onde se fizeram as filmagens da cidade de Mareen em “Game of Thrones”. O castelo fica numa colina perto de Split e tornou-se uma enorme atração turística graças à série da HBO. Um jovem chamado Mate, sócio de um pequeno café local, diz-nos enquanto olha para as fotografias com os atores da série numa moldura que aquela pequena localidade bateu recordes de dormidas no ano passado, algo que o seu negócio tem agradecido. Um euro equivale a sete kunas croatas e, nesse dia, começámos a perceber o que nos esperava. As porções de comida eram mínimas, ao contrário do que nos pediam por elas; os snacks nos supermercados acabariam por salvar-nos.

O Miguel e o amigo iam em direção a Dubrovnik e, por isso, deixaram-nos em Split, a segunda maior cidade do país. O centro da cidade está entre muralhas. O Palácio de Diocleciano, mandado construir pelo imperador homónimo, está tão bem conservado que nos faz recuar ao tempo entre a Antiguidade clássica greco-romana e aIdade Média. Lê-se em folhetos sobre a cidade que o imperador romano Diocleciano ordenou que se construísse este palácio para que pudesse usufruir dele depois de se retirar do poder. Dentro das muralhas impõe-se um minucioso labirinto de ruas apertadas onde centenas de lojas e restaurantes se encaixam para receber os milhares de turistas que por ali passam todos os meses. A cidade, porém, vai além das muralhas e as 2800 horas de luz solar durante o ano atraíram ao longo dos tempos multidões que se decidiram a viver por lá. Hoje contam-se cerca de 180 mil habitantes, que nomearam Split “Flor do Mediterrâneo”.

Mais uma vez, encontrar o hostel não foi fácil e acabámos por perceber que na Croácia as receções tendem a não ser no local onde se dorme. Temos, por isso, de andar mais um pedaço de mochila às costas até podermos finalmente descansar. No hostel conhecemos uma canadiana de 28 anos; chama-se Danielle e começou a viajar sozinha em 2015, aos 26 anos. Tem viajado pela Europa, já visitou 30 países e conta-nos que, hoje em dia, nunca se viaja sozinha porque se acaba sempre por se conhecer gente em todo o lado. Algo que temos comprovado, já que em todos os sítios que passámos temos trazido gente no coração e adicionado números e contactos de Facebook durante toda a viagem.

Na manhã seguinte, os nossos corpos agradeceram que tivéssemos ido ao supermercado recolher mantimentos para o nosso pequeno-almoço. Iogurtes gregos estão em todo o lado e nunca pensei que os cereais que como todos os dias em Portugal viessem a saber-me tão bem fora de casa. Aproveitámos algumas horas da manhã para trabalhar e, um pouco mais tarde, daria de caras com o Robert, um norte-americano que conheci no Generator Hostel, em Veneza, e cujo hostel em Split era a cem metros do nosso. Ele estava de ressaca, tinha voado de Roma nesse dia e ainda não tinha almoçado, por isso fez-nos companhia num restaurante que nos serviu uma pasta incrível. O Robert, que veio do Arizona, é engenheiro e tem 25 anos. Despediu-se do trabalho e decidiu viajar durante três meses. Acompanha-nos enquanto falamos com pessoas nas ruas de Split e, mais tarde, jantámos todos juntos. Estamos todos cansados, há demasiadas pessoas na rua, demasiados selfie sticks, demasiados souvenirs.

O dia acaba na varanda do nosso hostel, enquanto bebemos uma cerveja e comemos amendoins. Não é tarde, mas o dia já deu o que tinha a dar. Ao longe está o mar, as ruínas de Split e uma lua a crescer com uma estranha tonalidade laranja. Marca-se o despertador para cedo. Amanhã seguimos para Dubrovnik.

 

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/582979/croacia-o-romantismo-de-split-sai-caro?seccao=Portugal_i