Resende, 6 de junho de 2019
Dear Duki,
Desculpa falar-te do tempo mas a chuva voltou e com ela vem a melancolia dos dias. Nós bem que precisamos dela, nem que seja para nos obrigar a rever o valor que damos aos dias de sol, esse que não vem sempre que nós queremos. A Terra agradece e eu também. Quem não deve estar feliz é a cambada de turistas que por cá anda. Mas é tão bom sentir vida cair do céu.
Pergunto-me quando te poderei visitar. É tão injusto não poderes viajar porque o Kosovo não é reconhecido internacionalmente. Quem me dera viver num mundo em que o passaporte não é um privilégio, acredito mesmo que todos os seres humanos deveriam ter o direito de circular pelo planeta em que nasceram, alguém te perguntou se querias nascer aí? A mim também não. E é tão injusto que eu possa ir aí mas tu não possas vir cá.
Nunca me hei de esquecer da vez que me disseste “Não sonhas com mais quando não conheces melhor”. Voltei a ler o artigo que escrevi quando te conheci para recordar o Kosovo e a ti. Lembro-me tão bem de chegar ao White Tree Hostel e ver-te ao balcão do bar enquanto escolhias a próxima música para tocar. Nunca falhaste uma, até hoje, já que todas as músicas que trocamos são de uma precisão cósmica. Quando chegámos a Pristina eu e a Di fomos descansar e quando voltámos ao mundo já o Miguel conhecia a tua malta toda, bem como o preço baixo da cerveja fresca que prontamente nos serviste. Esta foto que te envio foi tirada na tal biblioteca do Pólo Universitário que nos disseste para visitar.
É incrível quando olhamos pela primeira vez nos olhos de um desconhecido e temos uma sensação avassaladora de familiaridade, que ultrapassa a dimensão do tempo como a conhecemos. A alegria que me era estar perto de ti sem ter puto de ideia quem eras inspirou-me de formas e jeitos que eu não entendia bem na altura. Mas o que é que nós entendemos afinal?
Quando somos pequenos os amigos vêm pelo contexto que a vida nos dá, depois já mais graúdos até na casa de banho de um bar podemos fazer uma amizade para a vida. Se há coisa que aprendi ao longo dos anos é a não menosprezar conexões pelo que é suposto ou não ser normal nas métricas sociais que, só por acaso, mudam com mais ligeireza que a latitude e longitude do mapa em que se encontram. Essa conversa do que é “normal” faz-me revirar os olhos. Mas mesmo a sério.
Sabes quando ouves pela primeira vez uma música e nos primeiros cinco segundos já te rendeste? Ainda mal começou e aquilo já mexe contigo. Não entendes porquê mas também não perdes tempo a querer saber respostas para isso, não é? Ouvimos, voltamos a ouvir e fica em loop tanto nos headphones quanto na alma. Algumas chegam mesmo a molhar-nos a cueca. A mim, pelo menos. Mas eu também molho a cueca com alguma facilidade, já sabemos.
Há pessoas que nos tocam assim. As cores que vestem, o penteado com que perderam muito ou tempo nenhum antes de saírem de casa, o sítio de onde vêm ou o tipo de dieta que fazem têm absolutamente zero efeito no momento em que os olhos se cruzam pela primeira vez. Quando duas almas velhas se reencontram nesta dimensão a três pisos, o véu cede e as portas para outros mundos ficam escancaradas. Já não somos dois humanos perdidos nos afazeres de uma vida de dramas e histórias contadas e recontadas que nem cêntimos perdidos na carteira; somos dois anciãos cósmicos que finalmente lá conseguiram tramar o suficiente para se voltarem a ver.
E fica o silêncio. Ninguém precisa de dizer nada, ambos sabemos o que acabou de acontecer.
Quantas pessoas olhaste nos olhos hoje?
Não posso fixar os meus olhos muito tempo nos da minha mãe, que já está de mãos no peito e lágrimas prontas para mais uma saída minha. Acreditas que lhe vou falhar o 60º aniversário? Já perdi a conta aos aniversários que lhes falhei. Não dá para ser tudo como nós gostávamos que fosse, pois não? Acho que são as escolhas difíceis que mais nos fazem crescer. A responsabilidade de pesar por conta própria e pagar o que a balança medir. E que balança.
Começa hoje o Primavera Sound, no Porto. Já não estava cá nesta altura há uns anos, mas desta vez não deu para ir, todos os tostões que tenho estão guardados para acabar o filme.
Quando esta fase ficar pronta e estivermos cá sãs e salvas vou organizar um festão. Quem me dera que viesses e passasses as tuas músicas. Molhávamos a cueca juntos.
Ainda hás de ver o mundo Duki, escreve o que te digo.
Ou então escrevo eu:
Ainda hás de ver o mundo, Duki. Ainda hás de ver o mundo.
Já está.
Um beijo enorme.
Gosto imenso de ti.
B.

Fotos: Diana Tinoco
Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.