O mundo mudou, papá

O meu pai dá aulas na escola pública há 41 anos. Já encolhemos os ombros juntos muitas vezes. Lembro-me do corpo atlético dele e da paciência e entusiasmo com que ensinava, em pequena sempre gostei de assistir a várias aulas dele. Era vigoroso, destemido, exemplificava com o corpo. Ensinava os “crescidos” do secundário, tratava-os por engenheiros. Toda gente lhe tinha muito respeitinho mas eu também reconhecia a admiração geral. Em Resende criou as Férias Desportivas, como o meu avô tinha criado os Jogos Juvenis em Gaia, dando oportunidade a que todas as aldeias do concelho praticassem desporto nas férias e nos pudéssemos encontrar, conhecendo realidades diferentes enquanto crescíamos. Fora isso, treinava um grupo de ginástica e aproveitava o pavilhão para ainda pôr um grupo de senhoras a mexer o rabo.

Quando nasceu, os astrólogos leram que o Sol estava em Virgem e a verdade é que tem dedicado a vida dele ao trabalho e a ajudar os outros a conectarem-se com o seu corpo. Já encolhemos os ombros juntos várias vezes. Ora lhe congelaram a progressão na carreira, ora adiaram a idade a que poderá finalmente reformar-se, cada novidade que os governantes lhe davam era mais um motivo de suspiro.

Foi diretor da escola dois anos e quando novas regras vieram e a coisa se tornou em mega agrupamento, esteve mais nove anos como subdiretor. Cresci rodeada de professores, dos que trabalham em escolas públicas, que passam décadas em colocações ora aqui ora acolá, em modo instabilidade constante, mergulhados entre a dualidade de querer formar o mundo e a frustração de fazer parte de um sistema da idade da pedra.

Não conheci muitos professores felizes com o ofício, embora tenha conhecido muitos que deram o seu melhor enquanto ignoravam por períodos de de 45 ou 90 minutos o descontentamento coletivo da profissão.Ao meu pai, com 41 anos de ensino e 61 de idade, ainda faltam seis anos para se reformar. O corpo e a mente já não se alinham com o desporto como outrora, mas ainda vejo nele os olhos doces, que agora pedem óculos, e o compromisso em dar o melhor que pode.

Vejo-o a adaptar-se à idade e ao mundo, mas nota-se o cansaço. “E ainda faltam seis…” e eu que já trabalho há dez até troco os olhos com as contas. Nunca há de se ter imaginado a dar aulas sentado no sofá. Eu e a minha irmã vamos rindo, também nunca nos imaginamos a assistir a aulas dele na cozinha.

Entre vídeos, links e fichas, exercícios e alterações de definições do “teams”, faz-nos “shhh” que vai iniciar mais uma lição. Lá faz uma pergunta sobre um tal vídeo que tinha pedido para verem. Fica a olhar para o ecrã e nos auriculares não há sinal de movimento. Olha por cima dos óculos e suspira. “Bem, vou pôr isto de outra forma. Quem é que daqui VIU o vídeo?”……………”.

Mais um suspiro enquanto procura o tal do link, partilha o ecrã e eu vou num instante dar uma ajudinha para que não lhe falte o som. Sento-me no maple em frente, do outro lado da mesa em que normalmente comemos e olho para ele com carinho. Sobe um degrau com as sobrancelhas e espreita por cima dos óculos.

O mundo mudou, papá… e nós lá encolhemos os ombros juntos, mais uma vez.

Texto publicado no Facebook a 17 de fevereiro de 2021