Croácia. O romantismo de Split sai caro

Águas límpidas, paisagens dignas de postais, uma inundação de turistas e preços que nos assaltam a carteira e a calma. Do amor à História à paixão pela natureza, a Croácia confunde-nos com uma mistura de emoções.

Foram demasiadas horas de estrada para quem vai encolhido no banco de trás de um carro. Quando finalmente chegámos perto de Split, já era hora de jantar. Tínhamos encontrado no Booking um apartamento a dez minutos da cidade e ficámos por lá; chamava-se Apartmani U Kastelina.Os croatas não têm feições muito simpáticas e muitos dos sorrisos que damos não têm resposta de volta, mas de vez em quando aparece uma cara mais feliz que compensa as outras todas.

Os senhorios eram um casal bastante peculiar. Ela com ar de nova, bastante maquilhada, com umas calças justas que lhe realçavam as curvas. Ele, bem mais velho, parecia ter um metro e noventa, pernas finas, calções demasiado curtos e uma barriga empinada numa camisola interior antiga, de alças. Viríamos a perceber que os homens croatas são de grande porte, no geral. Estávamos em Hrvatska, a casa ficava mesmo em frente a uma praia, dois quartos e uma casa de banho ficaram-nos por 35 euros. O jantar foi numa pizzaria com um terraço verde em frente ao mar. Na entrada havia uma dançarina e o Restaurant Ballet School mostrou-se um canto agradável, embora os funcionários não nos tenham mostrado muitos dentes. Há bastantes gatos na rua, a Diana diz que lhe faz lembrar a Grécia.

As águas do mar da Croácia são efetivamente límpidas mas, habituada às praias portuguesas onde passei tantos verões, fica muito difícil sentir-me impressionada. Até porque, até então, tudo o que vimos foram praias de pedra; areia, só daquela que parece terra: castanha escura, fina, como chocolate em pó.

Essa noite foi mais difícil, havia muitos mosquitos, mas estávamos tão cansados que nem deu para notar as picadelas, só ao outro dia, quando elas se tornaram enormes caroços espalhados pelo corpo todo.

Seguimos em direção a Split, mas antes decidimos parar na fortaleza de Klis, onde se fizeram as filmagens da cidade de Mareen em “Game of Thrones”. O castelo fica numa colina perto de Split e tornou-se uma enorme atração turística graças à série da HBO. Um jovem chamado Mate, sócio de um pequeno café local, diz-nos enquanto olha para as fotografias com os atores da série numa moldura que aquela pequena localidade bateu recordes de dormidas no ano passado, algo que o seu negócio tem agradecido. Um euro equivale a sete kunas croatas e, nesse dia, começámos a perceber o que nos esperava. As porções de comida eram mínimas, ao contrário do que nos pediam por elas; os snacks nos supermercados acabariam por salvar-nos.

O Miguel e o amigo iam em direção a Dubrovnik e, por isso, deixaram-nos em Split, a segunda maior cidade do país. O centro da cidade está entre muralhas. O Palácio de Diocleciano, mandado construir pelo imperador homónimo, está tão bem conservado que nos faz recuar ao tempo entre a Antiguidade clássica greco-romana e aIdade Média. Lê-se em folhetos sobre a cidade que o imperador romano Diocleciano ordenou que se construísse este palácio para que pudesse usufruir dele depois de se retirar do poder. Dentro das muralhas impõe-se um minucioso labirinto de ruas apertadas onde centenas de lojas e restaurantes se encaixam para receber os milhares de turistas que por ali passam todos os meses. A cidade, porém, vai além das muralhas e as 2800 horas de luz solar durante o ano atraíram ao longo dos tempos multidões que se decidiram a viver por lá. Hoje contam-se cerca de 180 mil habitantes, que nomearam Split “Flor do Mediterrâneo”.

Mais uma vez, encontrar o hostel não foi fácil e acabámos por perceber que na Croácia as receções tendem a não ser no local onde se dorme. Temos, por isso, de andar mais um pedaço de mochila às costas até podermos finalmente descansar. No hostel conhecemos uma canadiana de 28 anos; chama-se Danielle e começou a viajar sozinha em 2015, aos 26 anos. Tem viajado pela Europa, já visitou 30 países e conta-nos que, hoje em dia, nunca se viaja sozinha porque se acaba sempre por se conhecer gente em todo o lado. Algo que temos comprovado, já que em todos os sítios que passámos temos trazido gente no coração e adicionado números e contactos de Facebook durante toda a viagem.

Na manhã seguinte, os nossos corpos agradeceram que tivéssemos ido ao supermercado recolher mantimentos para o nosso pequeno-almoço. Iogurtes gregos estão em todo o lado e nunca pensei que os cereais que como todos os dias em Portugal viessem a saber-me tão bem fora de casa. Aproveitámos algumas horas da manhã para trabalhar e, um pouco mais tarde, daria de caras com o Robert, um norte-americano que conheci no Generator Hostel, em Veneza, e cujo hostel em Split era a cem metros do nosso. Ele estava de ressaca, tinha voado de Roma nesse dia e ainda não tinha almoçado, por isso fez-nos companhia num restaurante que nos serviu uma pasta incrível. O Robert, que veio do Arizona, é engenheiro e tem 25 anos. Despediu-se do trabalho e decidiu viajar durante três meses. Acompanha-nos enquanto falamos com pessoas nas ruas de Split e, mais tarde, jantámos todos juntos. Estamos todos cansados, há demasiadas pessoas na rua, demasiados selfie sticks, demasiados souvenirs.

O dia acaba na varanda do nosso hostel, enquanto bebemos uma cerveja e comemos amendoins. Não é tarde, mas o dia já deu o que tinha a dar. Ao longe está o mar, as ruínas de Split e uma lua a crescer com uma estranha tonalidade laranja. Marca-se o despertador para cedo. Amanhã seguimos para Dubrovnik.

 

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/582979/croacia-o-romantismo-de-split-sai-caro?seccao=Portugal_i

Croácia. O homem que nunca viu o oceano

Ao quarto dia de viagem, depois da primeira noite em Velenje, levantámo-nos e fomos ao Lúcifer, o mais famoso lugar para ir beber café e ainda provar um doce da casa, já que é lá que se produzem os tão famosos (ficámos a saber) chocolates eslovenos Lúcifer. Esta chocolataria pertence ao filho do socialista fundador da cidade, que infelizmente não estava lá para falar connosco. Passeámos por Velenje, outrora conhecida como “o milagre comunista”, criada em 1959, de onde restam várias filosofias e medidas socialistas. O nome da cidade foi mudado para Titovo Velenje, a Velenje de Tito, em 1981, como homenagem ao líder jugoslavo Josip Broz Tito, que a havia visitado e elogiado várias vezes – líder esse que tem direito a uma praça e à maior estátua do mundo, bem no centro da cidade.

Em Velenje não se pagam transportes públicos, saúde ou educação. Os jovens têm uma cultura de voluntariado ativa e juntam-se nas várias iniciativas culturais que o município apoia. Imagine-se que quem tiver uma banda tem direito a um espaço por cinco euros mensais. Alguns artistas pediram para renovar uma padaria antiga e agora têm um espaço cultural mantido por eles.

Há festivais e dezenas de desportos gratuitos, há sete escolas primárias espalhadas pela cidade para que as crianças não estudem longe de casa e preza-se ao máximo a qualidade de vida dos que lá vivem.

Escrevemos um minilivro de memórias ao casal que nos adotou em Velenje e deixei-lhes as sementes de canábis oferecidas por Pavle, não iria querer problemas na fronteira, certo? Certo.

Ao dar-lhes as sementes, fiquei a saber que na Eslovénia é mais que usual o consumo de canábis. Apesar de ser proibida, a droga vende-se a preços baratos e está ao alcance de todos, o que explica a oferta de sementes pelo sem–abrigo. Mal sabíamos nós que o assunto ia marcar o dia.

Eu e a Diana seguíamos para Split, na Croácia, e apanhámos boleia com o Miguel e o amigo, que mais tarde seguiriam para o sul. Com eles viria também um português a quem iam dar boleia, apanhando-o já depois de Velenje.

O Miguel, como advogado responsável que é, perguntou se alguém trazia consigo algo que pudesse comprometer-nos na fronteira. Todos respondemos negativamente até que o tal rapaz, que por motivos óbvios se manterá anónimo nesta crónica, diz que “só traz três gramas de canábis”.

O que se seguiu foi um delírio de leis e responsabilidades civis, cortesia do nosso amigo advogado. Foram cerca de 30 minutos em discussão. O rapaz trazia a erva comprada na Eslovénia, “por um preço singelo”, embrulhada num lenço com aroma de menta, como se isso fosse suficiente para esconder fosse o que fosse.

Entre risos e caras sérias, lá se chegou ao consenso geral de que o melhor seria aquilo ser atirado porta fora. Algo que a personagem que deu origem a toda esta odisseia mais tarde viria a lamentar o caminho todo, não fosse a fronteira um suave olhar pelos nossos passaportes sem qualquer tipo de barulho. Passadas várias horas de viagem, chegámos à terceira maior cidade da Croácia, Rijeka – uma cidade portuária e cinzenta, cheia de enormes cargueiros e com a poluição que isso traz às águas.

O contraste entre fronteiras dos dois países não podia ser maior. Depois de termos saído de um paraíso de conforto e acolhimento, ao chegarmos à Croácia vimos, por duas vezes, o nosso alojamento ser cancelado, ficando por isso à nora, sem saber onde dormir.

Estávamos doridas e de ombros a arder quando finalmente demos de caras com um hostel muito fraco, mas com um bom colchão que nos ajudou a passar a noite. Na receção recebeu- -nos um tímido jovem de 19 anos que estudava Engenharia Civil. Explicou- -nos que Rijeka é sobretudo uma cidade universitária onde vivem aproximadamente 128 mil pessoas.

Ao outro dia chovia. Fomos a um supermercado e às 11 da manhã já só se viam homens de vinho e cerveja na mão – disseram-nos que os eslovenos e os croatas bebem quando não sabem o que fazer. Seguimos para sul numa viagem que duraria mais de seis horas. A trovoada e a chuva acompanharam–nos todo o caminho e parámos para almoçar numa pequena aldeia à beira- -mar chamada Karlobag. Atrás de nós estavam as montanhas e respetivo parque nacional, habitat de ursos-pardos, lobos e cobras venenosas. À nossa frente, um cenário paradisíaco e, por momentos, veio o sol.

A olhar para o mar estava um mergulhador de 65 anos. De boné posto e ar hipnotizado, apontou para um cardume de atuns que saltavam no mar. Mais tarde, o dono do restaurante local explicaria que, “há uns anos, os atuns desapareceram, mas agora voltaram porque fogem das redes dos chineses”.

O homem, que preferiu guardar o nome dele no silêncio, perguntou-me de onde era. “Sou de Portugal”, respondi.

Continuou em silêncio até me olhar nos olhos: “Que sorte.”

Admirada, perguntei-lhe porquê. “Tens o Atlântico aos pés, filha. Eu já nadei em sete mares, mas nunca vi o oceano”, respondeu-me sem tirar os olhos dos atuns que já não saltavam, voavam. Então sorri, olhei para o chão e pensei nas sortes de que só nos apercebemos ter ao pé quando outros nos falam delas.

Velenje. Fomos adoptadas na Eslovénia

Ao terceiro dia de viagem, depois de duas boas noites em Ljubljana, fizemo-nos à estrada mais uma vez. Apanhámos boleia com um casal esloveno que não falava inglês e não fazemos ideia de como correu a viagem porque a fizemos toda a dormir, mais uma vez. Passadas cerca de duas horas estávamos a pagar os quatro euros pela boleia enquanto tentava entrar em contacto com a Tina.

Não acredito, por muito que já me tenha esforçado, que as coisas aconteçam por puro acaso ou coincidência. Com todo o historial de coisas extraordinárias pelas quais tenho passado, com as encruzilhadas, os sarilhos em que me meto e as pessoas inacreditáveis que me aparecem pelo caminho, com todas as lições e chapadas nesta cara de miúda meio parva, meio feliz, parece-me improvável que toda esta sorte chegue até mim só porque sim, só porque calhou. Prefiro acreditar que cada tropeção, cada vez que esfolo os joelhos, cada vez que sou ajudada por pessoas lindas é porque tenho algo a aprender com isso. Não me revejo na conceção de um deus, de uma história já escrita, mas quero acreditar que a energia das coisas é enorme e que nos faz atrair uns aos outros.

Quando, em junho, viajei até Forlì, em Itália, para um encontro sobre jornalismo e comunicação, tive um desses tropeções “kármicos”. O grupo de portugueses que ali se formou era de uma unicidade inexplicável e o primeiro contacto que tivemos com o grupo de eslovenos indicava que aquilo não ia ser só mais uma pseudoamizade de circunstância. Foi lá que conheci a força da Tina, a calma da Anna, a timidez do Lukas, a genialidade do Theo, a doçura do Matija e a loucura do Marcus. Foram dias de partilha e, quando nos despedimos, prometemos que não tardaria até nos vermos de novo. Explicaram-me o quão fundamental era que os visitasse, já que viviam em Velenje (lê-se Valenia), cidade em que encontraria vários tipos de conteúdos para a minha escrita.

Agora, ao fazermos esta viagem, todos estranhavam quando lhes dizia que de Ljubljana íamos para Velenje. Nunca tive paciência para turismo de massas, gosto pouco de confusões e já tenho tido provas de que alguns dos locais que vêm nos guias turísticos são sobrevalorizados. Vai daí que me pareceu perfeito seguir os conselhos deles e sugeri à Diana que os visitássemos.

A Tina veio ter connosco ao McDonald’s. Nenhuma de nós entrava nesta cadeia de restaurantes há meses, mas calhou termos fome e estar ali à mão. O cheiro a batatas fritas tornou-se estranhamente familiar e, de repente, não sabíamos bem se estávamos em Velenje, no meio das montanhas, ou no Rossio. Descobrimos que, na Eslovénia, o molho de salsa para as batatas não existe, mas há umas dez variedades que lhe tentam fazer jus.

Quando a Tina chegou demos um enorme abraço que matou saudades, mas ao mesmo tempo fez parecer que não nos víamos desde o dia anterior. Ela tem 28 anos mas é muito “old school”, não gosta de tecnologias e evita as redes sociais, por isso, durante estes meses, o mais normal seria termos perdido ligação, o que não aconteceu de todo. Seguimos no carrinho cor de laranja dela até à casa que descreveu como um cantinho modesto. Quem nos dera a nós algum dia conseguirmos um cantinho modesto daqueles para viver. Eu e a Di vivemos em Lisboa, onde se paga um ordenado por cada quarto alugado. Eles, por volta de 200 euros, têm um apartamento confortável, equipado e com direito à presença da Fiona, a boxer mais querida com quem já partilhei espaço.

Depois de nos termos acomodado, levou-nos a almoçar num restaurante no lago Škalsko, do qual deixarei mais detalhes na reportagem sobre esta cidade utópica pela qual acabámos por apaixonar-nos. No restaurante, tudo o que era peixe veio diretamente das canas de pesca dos vários pescadores que se estendem pelas margens e foi aí, no meio de uma cidade perdida do norte da Eslovénia, que ouvimos gritarem-nos “surpresa!!!” no meio da cidade. E assim, sem saberem o que dizer, dois queixos caíram.

O Miguel, com quem partilhamos casa em Lisboa e que andava em viagem pelo centro da Europa e nos bombardeava com localizações diferentes todos os dias na janelinha do messenger, aproveitou uma das que lhes enviámos e apareceu–nos à frente, com um amigo português.

As reações épicas ficaram registadas numa fotografia que nos tirou sem autorização prévia, e juntaram-se a nós sem que contássemos. O jantar ficará para sempre nas memórias dos nossos corações e estômagos.

O namorado da Tina, Josip, não só se revelou um coração de ouro como também se mostrou um cozinheiro de mão- -cheia e preparou-nos uma refeição maravilhosa, não só para nós os quatro mas para os restantes membros do grupo que conheci em Forlì e que se juntaram para o convívio. Éramos quatro nortenhos de Portugal em completa confraternização com seis nortenhos da Eslovénia.

Explicaram-nos o quão importante é para eles acolher pessoas nas suas casas, a felicidade que lhes traz o proporcionar uma boa estadia a amigos que lá passam. Pela comida, vinho, cerveja, licores e sobremesas, pelas conversas e discussões sobre a origem do mundo e a capacidade da natureza de unir seres humanos, não restava qualquer dúvida.

Partilharam-se músicas de cá e de lá, projetaram-se tours de amigos músicos para o futuro e à nossa frente estava não só uma rapariga aleatória do norte da Eslovénia. À nossa frente estava a compressão de vários seres num só. Jornalista. Amiga. Mãe. Guerreira. Uma menina. A mulher e todo o seu espírito feminino.
Enquanto pensava na minha sorte e me sentia orgulhosa por poder apresentar pessoas tão especiais e juntá-las no mesmo contexto, eu olhava-a com admiração.

Senti o conforto da família que escolhemos ao longo da vida, sem ligações de sangue ou genética à mistura. Até que me apanhou a olhar para ela e me disse: “Sabes que mais, Balolas? Sinto que podiam ficar cá para sempre, e assim poderia adotar-vos como minhas.”

 

Foto: Diana Tinoco

Ljubljana. “Não é com os olhos que se vê a natureza das coisas”

Está sol. Há luz em todo lado e as montanhas estão cobertas de neve. No nosso quarto,um casal de viajantes com alguma idade arruma as coisas para ir embora, não me dizem mais do que um bom dia sorridente. A Diana ainda dorme, viajou quase 48 horas seguidas. Desço as escadas e dou de caras com um bar de hostel cheio de locais a almoçar. As refeições fazem-se mesmo cedo, as pessoas comem a uma velocidade estonteante e às dez da noite, por ser tarde, já não se servem cafés nos restaurantes.

Saímos a pé para conhecer Ljubljana. Não quisemos ver fotografias antes de chegar, sabemos apenas que não podemos perder a oportunidade de conhecer o Museu das Ilusões que abriu há um ano. As ruas de Ljubljana são limpas, não há trânsito, as pessoas parecem-nos um pouco carrancudas, mas não tarda até percebermos que não é mais do que um lamuriar instintivo contra a chegada do outono.Passeámos pelas pontes, sentimos o ar fresco do rio gelado. Um senhor de 70 anos passeia três cães terapêuticos. “São educados para ajudarem a fazer as pessoas felizes, podem pegar-lhes”, diz-nos, com um sorriso enorme no rosto. Crianças aproximam-se, a terapia baseia-se em não deixar que a solidão “nos coma os ossos”.

Em viagem tudo é posto em perspetiva. Eu, que sempre adorei viajar sozinha, sem correntes, sem horários, sem planos, temia que viajar em equipa, em trabalho, fosse tornar-se um peso ao amor que tenho pela minha solidão. Mas vai daí que é impossível sentir-me mal quando a sincronia se compara a dois membros de um só corpo, ao ponto da Di se apresentar como Ana e apontar para mim como Diana e logo se aperceber da barbaridade que acabou de deixar escapar. Dizem-se frases ao mesmo tempo e as pessoas riem-se com a simbiose de duas colegas e boas amigas.

Sentamo-nos numa esplanada à beira rio e começa a nossa jornada de adoração ao café por estas bandas – mais tarde haveríamos de perceber que, talvez fosse a sorte, talvez seja a norma, o café da Eslovénia mostrar-se-ia como algo a repetir. De repente as ruas estão cheias de pessoas felizes, que passeiam em bicicletas, de mãos dadas, com os filhos. Tantos filhos, tantas crianças, tanta vida.

Comem-se gelados com casacos compridos vestidos, há livros nas mãos dos que se encostam em recantos luminosos. A época do turismo desenfreado já terminou e consegue-se perceber a rotina dos que cá vivem.

Lembrei-me de mandar mensagem à Olga, eslovena com quem vivi três meses em Roma, na casa do Davide, italiano que nos acolheu nessa altura. Já não a via há seis anos e reencontrá-la foi não só refrescante à alma como também nos deu uma enorme ajuda, já que com o jantar viria um enorme conjunto de conselhos sobre a viagem. No Museu das Ilusões revivemos a infância e a admiração com que olhámos para as novidades quando éramos crianças. A ideia surgiu em Zagreb, de dois amigos arquitetos que queriam criar algo único e o resultado são mais de 40 tipos de ilusão de ótica, hologramas, jogos da mente, criando um conceito único de diversão e aprendizagem em toda a Europa.

A Olga estava mesmo em Ljubljana e veio ter connosco. No meio das ilusões, estávamos de volta ao mundo feliz e universal, como o que nos faz recuar aos dias de praia em que brincávamos com estranhos, mesmo que não falássemos a mesma língua, ou das tardes em jardins com crianças que não conhecíamos a atirar pão aos peixes em lagos turvos. Não houve como sentir constrangimento da distância e do tempo que passou estando no meio de tanta alegria. Fomos jantar a um restaurante tailandês, já que a comida tradicional eslovena, segundo os próprios, é um terrível aglomerado de carnes.

Estava à procura de maneira para chegar a Velenje, mas não havia BlablaCar nenhum. Foi aí que a Olga nos explicou que, na Eslovénia, a app mais famosa de boleias é a Prevoz, criada há muitos anos por um estudante universitário. Encontrámos logo boleia para lá por apenas quatro euros.

Depois de nos levar de carro até às muralhas do castelo de Ljubljana, despedimo-nos da Olga já à porta de Metelkova, o bairro alternativo onde ficava o nosso hostel. Era o regresso noturno àquele lugar e por isso, já que esta noite havia luzes, queríamos descobrir música e pessoas. Num placar lia-se uma ordem para não se tirarem fotografias, a cerveja ficou por um euro e vinte. Sentámo-nos a observar os tantos jovens que circulavam até que um homem passa com ar de quem está com a cabeça num sítio longe dali.

À primeira não nos falou em inglês, respondia em esloveno, mas insisti. Não me disse a idade, pediu-me que adivinhasse mas como nunca faço ideia das idades das pessoas tive de lançar uns simpáticos 35 anos para o ar. Riu-se à gargalhada, tínhamo-lo conquistado.

Pavle nasceu em Ljubljana há muitos anos, assistiu ao governo a tentar demolir Metelkova e aos estudantes que mobilizaram a população através da rádio para salvarem o bairro que era de ninguém e de todos. Tem viajado por onde pode e a casa vai alternando conforme os dias.

Os biscates trazem-lhe “as bananas e o leite mais o pãozinho” que comprara naquele dia. Não nos pede dinheiro, não nos chora nada. Fala só com um sorriso enorme no quanto agradece poder ser vivo e saudável. Diz ser feliz. Fala-nos da sua paixão pela Bósnia, pelos rios que chegam a Ljubljana e conta-nos lendas de dragões e castelos.

Não quer cerveja porque tem com ele o sumo que conseguiu comprar com o que recebeu pelos talheres que lavou no último restaurante. Há quatro dias comprou um telemóvel novo, é dos antigos, sem internet. Pede-nos uma fotografia com ele, mas não há câmara para selfies – é mesmo com o telemóvel virado ao contrário. No fim, despede-se com abraços, a falar das árvores centenárias e das flores que não são de lá.

Já de bicicleta em andamento, encontra-nos na estrada e pede-me que abra a mão. Sementes verdes, reconheço o cheiro. “Sabe o que é isto, menina?”, pergunta. Sei muito bem, embora nunca tivesse visto sementes, apenas o que se faz das folhas e das flores. “Mas eu não tenho dinheiro para lhe pagar isto”, digo-lhe, sem saber o que fazer com as sementes de canábis que tinha na mão. “Não quero dinheiro nenhum. Isto é para que possa ver a vida como ela é, não é com os olhos que se vê a natureza das coisas, rapariga”, respondeu-me. “Então mas e o que lhe posso dar em troca?”, perguntei. E já ao longe, enquanto pedalava sem olhar para trás, respondeu: “Mandem fotografias da Bósnia.”

 

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/581962/ljubljana-nao-e-com-os-olhos-que-se-v-a-natureza-das-coisas-?seccao=Portugal_i

 

A chegada a Ljubljana

Os aeroportos sempre me fascinaram. Lembro-me perfeitamente de ser criança e participar numa visita de estudo do infantário para conhecer o espaço e a logística que tornavam possível os aviões levarem pessoas para outros lugares. Foi nesse dia que se me desvaneceu o mito, que eu própria havia criado, de que os aviões sabiam as direções certas porque as nuvens tinham placas devidamente assinaladas. Este seria apenas um dos primeiros choques que a realidade traria com o tempo. No final da visita ao Aeroporto Sá Carneiro, quando os meus pais me foram buscar, mal sabiam que, pela nossa vida em diante, muitas vezes me iriam ver a descolar e a voltar àquela pista.Adorava começar este diário de bordo a explicar que adoro viajar sem procurar o que visitar nos locais, sem criar qualquer tipo de expectativa sobre o que vou encontrar, mas a verdade é que desta vez não tive mesmo tempo para preparar absolutamente nada. Quando propusemos à direção deste jornal viajar pelos Balcãs durante um mês, com registo jornalístico e produção de conteúdos constante, limitei-me a aproveitar o pouco tempo que tinha disponível, quando saía da redação ao fim de um dia de trabalho, para estudar melhor a História e os contextos do que iríamos encontrar. Eslovénia, Croácia, Bósnia, Kosovo, Macedónia, Roménia, Sérvia, Hungria e Alemanha: um mês numa viagem que ainda nem tinha começado e já nos alertava para o início de toda uma nova vida.

Chegar a Veneza não foi difícil: bastou apanhar um comboio na Estação Central de Milão. Esperavam-me cerca de três horas de viagem numa carruagem vazia, que me deixou respirar o alívio de quem corre a toda hora contra o tempo e que tantas vezes tarda em encontrar-se pelo meio. O pior foi mesmo orientar-me por Veneza, onde os barcos e as gôndolas não chegam para a invasão de turistas que tão pouco podem informar aqueles que andam desorientados à chuva.

Estava sozinha e já passava da meia noite. Não conseguia perceber como haveria de chegar ao Generator Hostel e o que me valeu foi um casal de italianos idosos que, com muito boa vontade, ampliaram o meu Google Maps e me orientaram pelos barcos até Zitelle, onde me esperava, finalmente, uma cama em condições por 35 euros. Não é possível discutir o quão bonita é Veneza, desde as cores das impermeáveis dos que passeiam pelos edifícios antigos ao nascer do sol a que mais tarde assistiria. Bem sei que a tudo se habitua um ser humano, mas os nervos e o cansaço gritavam-me perante o cenário tão pouco prático que é o de termos de nos deslocar de barco, com todos aqueles barulhos, abanões e, pior de tudo para o meu estômago, aquela maldita ondulação.

Nas escadas do hostel estava um australiano a cair de bêbedo e um norte-americano mais jovem a fumar um cigarro. Deram-me as boas-vindas e falaram-me das suas estadias prolongadas pela “cultural e extravagante Europa”. Com o hostel a abarrotar, foi uma sorte ter encontrado onde dormir. Na minha camarata mais sete jovens viajantes deixariam ao outro dia o quarto para prosseguir viagem. Uma camarata cheia de norte-americanos a desbravar território europeu.

A Diana, minha companheira de viagem, finalmente chegou a Itália. Encontrámo-nos em Santa Lucia para apanhar um autocarro para Veneza Mestre, onde teríamos de encontrar o nosso autocarro para Ljubljana. Entre telefonemas e correrias pedi-lhe que me fosse comprando o bilhete. De impermeáveis e mochilas gigantes às costas, com computadores, máquinas de fotografar, filmar, baterias suplentes, carregadores e outros gadgets que tais, abraçámo-nos em pleno autocarro como se não nos víssemos há mais de vinte anos. Todos nos olhavam com estranheza e de repente a viagem até Mestre parecia interminável. Ao relembrar como arranhar o meu italiano de outrora, decido perguntar quanto tempo nos restava para a estação. “Estão a ir na direção errada, já deviam ter saído há muito”. De repente vi os bilhetes do autocarro para a Eslovénia a esvoaçarem pela carteira fora. Saímos do autocarro em pânico, a tentar relembrar todas as orações que os nossos avós faziam em momentos em que precisavam de chamar a sorte. Quando apertado, até um ateu reza e assim fomos nós a cambalear até outro autocarro que em contrarrelógio nos levou até Mestre. Bendita seja a pontualidade italiana, devemos dizer, já que não só não chegámos atrasadas como ainda deu para esperar à chuva e comprar jantar. O hostel que havia marcado para a primeira noite na Eslovénia afinal foi cancelado e escolhi o primeiro que o Hostel World me recomendou.

Da viagem lembro-me pouco, já que a passei de boca aberta e olhos fechados. Mas a chegada à Ljubljana foi épica. Eram duas da manhã, queríamos comer e os preços do Box Bar diziam que era ali mesmo que devíamos parar para um enorme hambúrguer vegetariano por três euros e meio. Seguimos as coordenadas e com a ajuda da tecnologia lá fomos as duas a pé até ao bairro que deveria ser o nosso.

Devo dizer que por vezes é um perigo confiarmos à tecnologia o discernimento de se virar para a direita ou para a esquerda. Ali estávamos nós. Exaustas, curvadas, de pés inchados, com impermeáveis e kispos, enquanto a seta nos indicava para virar à direita. Desse lado havia um portão de ferro, um monte de cartazes que me eram familiares de festivais de Metal e Hardcore, pinturas em todas as paredes. Não se via vivalma, só um monte de instalações metálicas, representações daquilo que nos pareciam aliens, com expressões de horror e mãos enormes. O silêncio era aterrador e a Diana agarrava-se a mim como se um abraço nos pudesse salvar do apocalipse. “Que sinistro, que cena do mal”. Não fazíamos ideia de onde estávamos e temíamos por todo o material que guardávamos connosco. E ser mulher nunca ajuda nestas alturas. Um homem saiu da escuridão, saltámos – hostel nem sinal dele. Há escadas, não há escadas. Há perigo, não há perigo. Um suspiro de alívio: vemos luzes acesas. Estamos vivas e vamos dormir.

Ao pequeno almoço, um funcionário fala-nos em português e tudo se torna mais familiar. Vem de Cabo Verde. Ao sairmos pela porta, a realidade faz agora mais sentido. Estamos no coração de Metelkova, o bairro alternativo que já foi terra de ninguém, centro da vida antissistema e da pseudoanarquia, o pulsar do limite da sociedade. Estamos no coração da arte e da resistência. Metelkova ao nascer do dia, afinal, é só cor. Tudo o que nos faltava era um pouco de luz.

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