Só a justiça recupera a paz

Numa das nossas viagens à Palestina, estávamos dentro de casa, eu e a Diana, quando passou um avião e ouvimos uma explosão imensa. O chão tremeu, as janelas vibraram e nós em pânico não sabíamos o que fazer. Olhámos uma para a outra com cara de “Fodeu”. Escondíamos-nos? Abraçávamos-nos? Peguei no telemóvel e liguei ao Khalid. “O que se passa?? O que foi isto?! Está tudo bem contigo?”. Do outro lado, uma gargalhada. Deu-me nervos. Qual seria a graça? “Ah, não se preocupem… os Israelitas fazem isto para nos assustar, vêm libertar o ar dos aviões em treino aqui por cima”.

Como não percebo nada de aviões, não sei que tipo de explicação foi esta, mas por todo o tipo de massacre psicológico (e não só) com o qual já tínhamos sido confrontadas, automaticamente voltámos ao “safe mode” e respirámos.
Mas perdemos o ar várias vezes. Os intermináveis e infinitos checkpoints, as provocações nos colonatos ilegais, tivemos amigos presos, dois personagens do nosso documentário capturados, um deles ainda sem se saber bem porquê nem até quando.

Quando tremíamos de medo ao ouvir os tiros de armas automáticas no campo de refugiados, lembrava-me de todas as vezes que adormeci ao som de grilos e cigarras e perguntava-me como seria crescer num lugar assim.

De manhã, alguém nos contaria das detenções da polícia Israelita a meio da noite e lamentaríamos não termos conseguido filmar. Os humanos precisam de imagens para acreditar. Por isso é que se escolhem muito bem as imagens que se passam nas nossas televisões.

Já perdi a conta às vezes que ouvi gente discursar sobre liberdade. Ai a liberdade… Se imaginássemos o que é nascer e crescer em estado de lockdown permanente, falar de liberdade batia diferente.

Das quatro vezes que voltei da Palestina, a minha família já sabia. “Vens em silêncio outra vez, não é?, perguntava-me a minha irmã Xaninha aborrecida. “Porque é que ficas sempre tão estranha? Mais vale não ires!”.

A minha mãe, por sua vez, olhava o silêncio nos olhos e dava-me colo.

Até hoje me custa a crer que algum dia seja capaz de encontrar as palavras certas para tudo o que testemunhámos ali. As palavras têm tanto poder. Têm de ser bem pensadas, trazem com elas uma carga histórica e podem mudar o mundo. Podem ser desconfortáveis, causar embaraço coletivo. Mas faz uma diferença absurda chamar as coisas pelos nomes.

O meu pai, que sempre se informou muito bem pelas notícias, tinha dificuldade em receber as informações que eu lhe trazia do outro lado do muro. Eu sentia-me tão frustrada. Como é que eu lhe explicava que as palavras que ele recebe cá são esfregadas em lixívia? Como é que eu posso fazer sentir o terror que testemunhei e a pressão, o nível de stress e a tensão que vivi na pele ao atravessar fronteiras e interrogatórios invasivos? Como é que eu lhe explico que criei personagens e inventámos histórias e celebrámos de cuecas e soutien num quarto de hostel na Jordânia, o termos cumprido a missão com sucesso, sãs e salvas?

O silêncio perante a catástrofe é complacente. A alteração da narrativa é criminosa.
A colonização da Palestina começou muito antes da II Guerra Mundial abrir portas para uma necessidade urgente de encontrar casa para uma população massacrada. Não podemos compactuar com a disseminação de propaganda manchada de humilhação e sangue.

Vivemos até hoje um paradigma em que o poder e o dinheiro desculpam e pagam o silêncio perante um flagelo humanitário sem fim em nome do sionismo e de um Deus elitista.
A limpeza étnica dá-se seja pelos tanques, bombas, aviões, mísseis ou granadas. Do outro lado as pedras dos destroços que deixam pelo caminho. A diferença dos nossos dias? O povo tem telemóvel e o nível da propaganda é um estado declarado e está à vista de todos os que quiserem ver.

A colonização da mente entranha-se como o pior dos vírus e ainda assim os palestinianos resistem. Desde o século XIX. Mas não podem resistir sozinhos. Os crimes contra a humanidade exigem que a humanidade se una por justiça.
Já vai demasiado tarde, mas é agora ou nunca.
Está na hora de nos lembramos de uma vez por todas que somos todos feitos do mesmo.
Como diz o Mazin Qumsiyeh, só a justiça recupera a paz. 

Texto original publicado no Facebook a 11 de maio de 2021

Perdi o meu passaporte

Perdi o meu passaporte. Fui três mil vezes aos mesmos sítios, esvaziei cada gaveta, caixa, mala e bolsinha. Revirei tudo. Antigamente, eu nunca sabia o paradeiro de nada, o caos interior manifestava-se em todos os possíveis mini caos da vida mundana e o perder coisas ou não saber delas? Uma constante.

Digamos que, entretanto, não tive muita escolha e a vida obrigou-me a tornar-me organizada. Volta e meia claro que ainda se dão fenómenos de camisolas vestidas ao contrário, ou lembrarem-me que estou a ir embora descalça, mas muita coisa mudou na última década de existência e uma delas foi eu passar a saber das minhas coisas que, por sua vez, também passaram a ser cada vez menos.

O passaporte é suposto estar num lugar super lógico, prático, acessível. Mas não está. Será que o deitei ao lixo nas mil revisões feitas? Estive dois dias à procura até ter dado como caso arrumado: “mistério do ano”. Por motivos de despedidas e corações apertados, a minha mãe veio até ao Porto estes dois dias. Já me tinha perguntado um milhão de opções onde poderia estar. “Não mãe, já vi aí… oh mãe achas que eu já não fui aí?”.

Ontem, estava eu a caminho de tratar de uns afazeres de última hora e liga-me com a boa-nova: “Naná encontrei o teu passaporte!”. Jura. Muito obrigada, mas ONDE? “Estava na latinha da tua mesinha de cabeceira!!”. Não é possível. A primeira lata a que me dirigi e que eu esvaziei mais que uma vez? Até debaixo da lata vi. “Era a primeira coisa que se via ao abrir a lata”, disse-me com ar meiguinho.

Quando a minha mãe me encontrava milagrosamente coisas das quais eu não sabia, além de dar graças pela criação das mães, sentia-me idiota. Desta vez, porém, foi diferente. Eu tinha tanta certeza que sabia onde estaria, fui tantas vezes a todos os sítios possíveis que mais parecia um fenómeno à Toy Story.

Isto não era mais um caso básico do quotidiano de quem tem a vida de pernas para o ar, entendem? Eu falhei simplesmente em ver algo que estava, de uma forma muito descarada, bem em frente ao meu nariz.

Às vezes estamos tão preocupados em encontrar algo que aquilo pode estar escancarado à nossa frente e para nós… népia. Sem sinal. Foi-se a bateria do detetor.

Por muito independentes que nos tornemos,
por muito que façamos da auto-suficiência um objetivo de vida, há uma verdade que é me é imperativa e que se revela em vários momentos simbólicos, como este: nós precisamos uns dos outros. E vamos precisar sempre, em diferentes dimensões. Não só para nos tornarmos melhores pessoas, para ultrapassarmos tempestades e festejar as alegrias da vida.

Às vezes estamos desesperados à procura de algo que é nosso, está ali, escarrapachado em frente ao nosso nariz e passa-nos ao lado. Não são precisos grandes esforços e aventuras, às vezes tudo o que precisamos é de uma dose de paciência e carinho, o suficiente para com cuidado abrir a p*ta de uma latinha na mesinha de cabeceira. 

Texto original publicado no Facebook a 8 de abril de 2021

O mundo mudou, papá

O meu pai dá aulas na escola pública há 41 anos. Já encolhemos os ombros juntos muitas vezes. Lembro-me do corpo atlético dele e da paciência e entusiasmo com que ensinava, em pequena sempre gostei de assistir a várias aulas dele. Era vigoroso, destemido, exemplificava com o corpo. Ensinava os “crescidos” do secundário, tratava-os por engenheiros. Toda gente lhe tinha muito respeitinho mas eu também reconhecia a admiração geral. Em Resende criou as Férias Desportivas, como o meu avô tinha criado os Jogos Juvenis em Gaia, dando oportunidade a que todas as aldeias do concelho praticassem desporto nas férias e nos pudéssemos encontrar, conhecendo realidades diferentes enquanto crescíamos. Fora isso, treinava um grupo de ginástica e aproveitava o pavilhão para ainda pôr um grupo de senhoras a mexer o rabo.

Quando nasceu, os astrólogos leram que o Sol estava em Virgem e a verdade é que tem dedicado a vida dele ao trabalho e a ajudar os outros a conectarem-se com o seu corpo. Já encolhemos os ombros juntos várias vezes. Ora lhe congelaram a progressão na carreira, ora adiaram a idade a que poderá finalmente reformar-se, cada novidade que os governantes lhe davam era mais um motivo de suspiro.

Foi diretor da escola dois anos e quando novas regras vieram e a coisa se tornou em mega agrupamento, esteve mais nove anos como subdiretor. Cresci rodeada de professores, dos que trabalham em escolas públicas, que passam décadas em colocações ora aqui ora acolá, em modo instabilidade constante, mergulhados entre a dualidade de querer formar o mundo e a frustração de fazer parte de um sistema da idade da pedra.

Não conheci muitos professores felizes com o ofício, embora tenha conhecido muitos que deram o seu melhor enquanto ignoravam por períodos de de 45 ou 90 minutos o descontentamento coletivo da profissão.Ao meu pai, com 41 anos de ensino e 61 de idade, ainda faltam seis anos para se reformar. O corpo e a mente já não se alinham com o desporto como outrora, mas ainda vejo nele os olhos doces, que agora pedem óculos, e o compromisso em dar o melhor que pode.

Vejo-o a adaptar-se à idade e ao mundo, mas nota-se o cansaço. “E ainda faltam seis…” e eu que já trabalho há dez até troco os olhos com as contas. Nunca há de se ter imaginado a dar aulas sentado no sofá. Eu e a minha irmã vamos rindo, também nunca nos imaginamos a assistir a aulas dele na cozinha.

Entre vídeos, links e fichas, exercícios e alterações de definições do “teams”, faz-nos “shhh” que vai iniciar mais uma lição. Lá faz uma pergunta sobre um tal vídeo que tinha pedido para verem. Fica a olhar para o ecrã e nos auriculares não há sinal de movimento. Olha por cima dos óculos e suspira. “Bem, vou pôr isto de outra forma. Quem é que daqui VIU o vídeo?”……………”.

Mais um suspiro enquanto procura o tal do link, partilha o ecrã e eu vou num instante dar uma ajudinha para que não lhe falte o som. Sento-me no maple em frente, do outro lado da mesa em que normalmente comemos e olho para ele com carinho. Sobe um degrau com as sobrancelhas e espreita por cima dos óculos.

O mundo mudou, papá… e nós lá encolhemos os ombros juntos, mais uma vez.

Texto publicado no Facebook a 17 de fevereiro de 2021

Happy 420, Maria

Even though I’m in an extended period of no consumption of any kind of substance (besides sugar😬), I want to honor my medicine. The Mother of my healing process and one of my biggest Teachers. The Plant that helped me to deal with the worst moments of physical pain, and that worked as a gateway for so many difficult answers.


I am sorry that you are being exploited, as so many sacred medicines, I am sorry for the constant genetic abuse and mixtures, and mostly for all the unconscious use that make you a threat instead of a healing tool.


Every time I felt your shadow, you were the one telling me it was enough. Every time I misused you, you came and told me to stop. My meditations and journeys with you took me to the most beautiful places within and for that I’m deeply grateful. When any conventional medicine could help me, your elements supported me with love. You also taught me how toxic alcohol was in my life and how I didn’t need a single drop of it.
You brought me relief, you brought me peace and then you taught me about connection, but mostly freedom.


You supported my reborn and helped me to learn how to walk by myself. I see you as much as you see me. I feel you as an Entity of consciousness and I respect you as my Teacher. I don’t crave you, I don’t need you at this point of my life, but I love you, and I honor you. Happy 4/20 everyone. Happy Happy day, Maria 🌿
(Photo wasn’t taken in Portugal)

P.s- My dad just shared this post and after so many years of dialogues and fights around this subject, this was the best gift I could get on this 4/20. Communication heals. Love and Respect are everything ♥️

The End of the F***ing World

Quando era miúda encontrava imensas pessoas famosas na rua. Ao contrário do que acontece agora, sabia sempre quem eram e reconhecia toda gente da televisão.

Cheguei a ter um caderninho só para autógrafos e fiquei mesmo ofendida quando, para aí aos seis anos, as Tentações me recusaram uma assinatura num restaurante em Resende. Que más.

A vida vingou-se e acabei a dançar com os Anjos em direto na Praça da Alegria aos 10 anos, quando fomos lá falar sobre o facto de Resende ter tido a primeira escola preparatória do país com um programa de intercâmbio europeu para professores e alunos. Só saí do estúdio quando tive o meu caderno devidamente assinado por toda e qualquer possível alma que eu tivesse reconhecido da televisão. Aquilo era mesmo importante para mim, ora não ficassem ali guardados, na minha história, aqueles seres que partilhavam ecrã com os meus desenhos animados preferidos.

Com o tempo veio a noção de que aquelas pessoas eram tão normais quanto eu. No final do dia, todos eles comem, cagam e choram, não é verdade?

Além do mais, deixou de ser suficiente partilharem o ecrã com os meus heróis preferidos, a maioria dos ditos famosos revelavam-se pessoas cujo trabalho não puxava muito pela minha admiração. Tal e qual como acontecia na minha vida, já não bastava simplesmente aparecer para ganhar uns pontos de consideração. No meu caderninho, comecei a guardar nomes menos conhecidos mas que me trouxeram as memórias mais lindas.

Além disso, a timidez. Na adolescência, foram dias e dias seguidos fechada no quarto a ouvir música, a ler e escrever, ou a fazer recortes em revistas e jornais, mas sobretudo a debater-me com a necessidade de estar sozinha.

Começava a ganhar as primeiras noções de espaço e a perceber que só conseguia ser extrovertida com determinados grupos, em momentos e contextos próprios e a ideia de ir ter com uma pessoa desconhecida e pedir-lhe um autógrafo assim, só porque sim, tornou-se bizarra.

No entanto, em dimensões paralelas, davam-se os meus primeiros passos de coragem para partilhar o que ia escrevendo e aprendi o quão saudável pode ser um gesto de validação artística, o quão bem sabe ser acarinhado em resposta ao amor e dedicação que pomos na nossa manifestação criativa.

Por isso, como em tudo, o truque é encontrar o equilíbrio e se eu gosto e admiro o trabalho de alguém, seja ou não conhecido, dando-se a oportunidade certa, o filtro cai e lá deixo que o coração diga o resto, às vezes de formas que até a mim surpreendo.

A vida ensinou-me que há formas lindas e subtis de expressar admiração e reconhecimento sem invadirmos o espaço de ninguém. E sabe tão bem aos dois lados!

Há uns meses, estava eu a trabalhar na gestão das operações do Waking Life, na entrada do festival, quando um dos voluntários me pergunta entre dentes: “Balolas. Balolas! Este não é o ator do The End of the F***ing World?”.

Ora estava eu a morrer de sono, acabada de entrar no turno e a distribuir os sacos do lixo que o pessoal tinha de mais tarde devolver cheios, quando o Alex Lawther pára à minha frente.
Se o rapaz não me tivesse chamado à atenção, distraída como sou provavelmente nem reparava, mas realmente… só podia ser ele.

Como sou boa a passar momentos embaraçosos, numa de precaução, a única coisa que me saiu depois da saudação de boas vindas automática e sentida foi: “Sorry, is it possible that I may know your face from somewhere?”

Muito tímido, simples, com ar de miúdo fofo e com um sorriso atrapalhado respondeu-me “hum… I don’t know… but it’s not impossible, I am an actor in England… maybe is that?”

Sorri e não me saiu nada. Na-da. A timidez dele ativou a minha e pronto, eu que adorei a representação dele na série da Netflix, bloqueada pela aleatoriedade da coisa perdi uma bonita oportunidade de lhe dar um “passou bem” emocional.

Disse-me adeus com a mão e eu atrapalhada respondi. Que naba. Zero. Qual validação artística… nem uma das minhas saídas com graça, nem uma piada ao lado, nada. Mas enfim, dei-lhe um saco do lixo. Ri-me sozinha.

O festival foi passando e ainda me cruzei com ele uma vez perto do lago. Não me viu mas eu fiquei feliz por constatar que se estava a divertir. É que tem mesmo ar de bom miúdo.

Depois de uma semana para lá de intensa, com muitas emoções à mistura, muita dança, muito amor e muito trabalho, chegou por fim a última e derradeira tarefa da nossa equipa, já sem voluntários: organizar os autocarros para que o pessoal fosse embora feliz e contente da vida.

Um calor abrasador a la Crato, pessoal de ressaca filas e filas e filas e autocarros e autocarros e autocarros. Nós? Cheios de pica. Estava quase quase quase. Já meia a derreter, meia a desidratar, lá andava eu toda feliz a distribuir o pessoal e a contar lugares por preencher.

Sentia-me realizada, não só tínhamos sobrevivido quanto constatado que a terceira edição do festival tinha sido um sucesso. O Waking Life é um projecto incrível, fruto da boa vontade de uma comunidade intercultural do qual me sinto feliz por fazer parte.

As pessoas amaram o festival, havia aquela sensação de nostalgia no ar, eu mandava piadas para o pessoal se animar e ordenava-lhes que regressassem no próximo ano.

1,2,3….. Ok entram mais dois! Afinal mais um. Oh! O casal tinha saído para trocar a mochila. Estes dois que entraram, afinal têm de sair, constato. Lá volto a entrar para os avisar quando de repente prontos a alapar o rabo depois do Tetris das mochilas eles lá se viram. Claro que era o Alex e ao lado o amigo.

Ahahah ri-me por dentro. Ora dou um saco do lixo para a mão, ora sou portadora de más notícias! A vida e o seu sentido de humor lá me traziam a oportunidade não planeada de contar mais uma história.

Meiguinha e já a prever o ar de calimero a surgir-lhes no rosto, pedi desculpa pelo incómodo mas expliquei-lhes que teriam de sair porque, afinal, aqueles lugares já estavam ocupados. No entanto, nada havia a temer: tinham lugar no autocarro estacionado imediatamente atrás daquele.

O ar de calimero concretiza-se. O amigo bufa. O Alex levanta-se, novamente de costas organiza as coisas e eu dirijo-me para o meio do autocarro.

Ora, eu bem sei como estas coisinhas chateiam, não tivesse eu Mestrado em “Colecção e Sobrevivência a Pequenos Azares da Vida” que logo me levaram ao Doutoramento em “Paciência Infinita, Copo Meio Cheio e Outras Artes da Mente”.

O único truque para sobreviver a este mundo é mudar as lentes dos óculos que usamos para enxergar o que nos rodeia.
A decisão de nos agarrarmos à lamentação é nossa e é mesmo possível coar os grãos do drama à nossa volta. Há coisas que simplesmente não merecem o nosso aborrecimento porque em nada dependem de nós. É como quem se lamenta constantemente sobre o tempo. Ele não vai mudar por acumulação de queixas! Podemos ficar com uma nuvem cinzenta à nossa volta o resto do dia, ou simplesmente rir destas tropelias. Eu prefiro rir de tudo, não consigo levar nada demasiado a sério.

Os dois amigos viram-se cabisbaixos, finalmente prontos. A ironia do momento é digna de gargalhada, não fosse o protagonista da série em questão.

Com ar dócil mas quase de beicinho, encolhe os ombros e com um sorriso de esguelha olha-me nos olhos com ar de quem está habituado a que estas coisas lhe aconteçam. Passa por mim para descer as escadas, ficamos a poucos centímetros um do outro pelo que me sai da boca fora em tom fofo mas gingão:

-Come on maaaan, it’s not the end of the fucking world. :)))

Assim que o digo, o amigo levanta a cabeça curioso. Eu dou um salto ao aperceber-me do que acabava de acontecer. O Alex olha num instante para trás com um sorriso de orelha a orelha enquanto me pisca o olho e acena.

Aceno e pisco o olho de volta. Desço as escadas enquanto solto umas gargalhadas sozinha. Que incrível.

Dou sinal ao autocarro para seguir, ainda faltam uns quantos. Mas quando todos se forem embora, hei de ir para a tenda a correr: afinal é este tipo de histórias que me dá gosto escrever no tal do meu caderninho.

Oh Meninah!

(No regresso ao Porto)

A tarde prolongou-se sem que nos déssemos por ela e de repente já é noite quando saio da casa de uma das minhas melhores amigas.

Bato a porta de casa dela enquanto coloco os headphones e procuro a música que quero que me acompanhe até casa da minha irmã.

Está já escuro e há um beco mesmo à minha frente, ao descer o degrau para a rua vejo que não há sinal de pessoas no caminho que vou seguir. Estão apenas dois homens a conversar no lado da rua que ficará atrás de mim, do lado direito da casa dela.

Vou de saia e meias rendadas, tudo em tons escuros, como já é costume. Não foram precisos mais do que vinte segundos para ouvir:

– OH MENINAH

O alerta do costume dá-me um aperto no estômago de quem já está preparada para ouvir uma merda qualquer desagradável.

Já todas perdemos a noção das enxurradas de frases e palavras asquerosas que homens de todas as idades nos presenteiam nos seus comentários de quem não tem tento na língua. Os últimos 4 anos em Lisboa criaram uma programação instantânea para chaves no meio dos dedos, ouvidos moucos e cabeça defensiva. Sigo em frente e finjo que não ouvi.

– OH MENINAAAH

Quando é assim respiro fundo e não aguento. O tom com que me chamava dava asas a demasiados tipos de interpretações. Esqueço a programação e olho para trás. A minha postura à primeira vista confiante insinua um gentil mas resistente “Sim, meu senhor, diga lá”.

De cigarro na mão e já com alguma saudade dos seus 50 anos, dá mais um bafo e diz com a pronúncia mais linda deste país: 
– Oh meninah!!! Tem a sua sainha lebantanda!!

Oh meu Deus. Ponho as mãos no rabo.

Está mesmo. Todo à mostra. Yep. Eis-me de pandeireta ao léu, de padrão rendado e coração a mil.

Sai-me automaticamente um sorriso maior que eu em tom de reconhecimento. Tiro a saia presa no elástico e levo as mãos ao peito enquanto olho para ele agradecida e com aquele ar de quem sabe que se nos viu o rabo, ali ao léu bem descarado, está tudo bem.

– Ai meu Deus!! Muito obrigada!! 
– De nada meninah!! De nada!!!

Viro-me de saia composta e dignidade recuperada, um “meninah” no coração e a nalga um bocadinho mais arejada. E pronto, lá sigo de música nos ouvidos e de alma cheia como quem acaba de ser salva com carinho, a rir-me de coração grato.

Que maravilha é estar de volta ao meu rico Porto ♥️

Mais uma volta ao Sol

Dei mais uma volta ao Sol e desde há um mês para cá, todos os dias a minha rica mãe, sempre com jeitinho, solta a derradeira pergunta em tom que suplica por verdade: “Balolas, diz-me lá, não te sentes muito só?”
Consigo sentir na voz dela a dor antecipada que se deixa escapar, só com a ideia que a sua menina se possa sentir sozinha.
“Só? Não mãe…só não”


Não me levem a mal, a pergunta vem cheia de amor e cuidado, tomara que todos os seres deste mundo tivessem alguém que lhes dedicasse cuidado sobre o quão invadidos pela solidão possam estar.


Isto de se sentir desde muito cedo que se é de todo lado e não se é de lado nenhum tem muito que se lhe diga. Mesmo que eu tivesse pavor a não estar provida de companhia humana, a verdade é que as tão infinitas e nunca demasiadas voltas que esta malha quente da vida me vai dando, também me treinaram desde muito cedo para enfrentar essa coisa que é estar apenas na minha própria companhia.


Estar sozinho é um constante mergulho gélido em todos e quaisquer poros abertos da pele que vamos vestindo desde o primeiro dia que nos expõem ao mundo.


É só quando temos tempo e espaço para o silêncio, para a reflexão e para os momentos “tcharan” do nosso espírito, que conseguimos realmente perceber quem é a voz por trás dos milhares de pensamentos que nos invadem diariamente, o que é que este corpo em que cresço gosta ou não, onde está cada um dos finos cabelos que nos caem na pele e que nos dão comichão.


Eu não julgo minimamente quem não quer nunca estar sozinho. É um grande salto que se dá o de termos de lidar constantemente com quem somos. Há tantas, mas tantas coisas que nos podem envergonhar, massacrar, espezinhar, se não olharmos para quem somos com um pouco de compaixão e paciência.


Se por vezes me questiono onde é que se pode ter tanta angústia guardada, por outro lado, também me assola a questão de como é que posso ser tanto amor?


Tive desde sempre a tendência para amar sem medida e já todos sabemos o quão boa sou a esfolar os joelhos. Mas o que é eu posso fazer em relação a isto? Não há rolha que pare uma queda de água. Ou tentem lá controlar a força do mar contra uma falésia!


Este amor todo cá dentro tem me permitido, desde muito cedo, uma ligação especial com a maioria dos seres humanos com quem me cruzo. Já fiz muita borrada, mas sabem quando até as borradas guardam com carinho?
As conexões que a vida me doou desde muito cedo ficaram em mim para sempre e apesar da distância e da velocidade com que o tempo corre, sei que as amizades e o amor são eternos. E tenho em mim o consolo que haverá sempre, numa das infinitas realidades paralelas a que podemos aceder com a nossa memória, um ponto do tempo e do espaço em que ainda partilhamos o mesmo ar.


Daí que não minta quando digo que, inevitavelmente, nunca chego a estar verdadeiramente sozinha. Tenho-me permitido guardar com cuidado todos os bonitos seres com quem me cruzo e sou uma felizarda por me menterem nas vidas deles a mim também.


Tendemos a culpar os factores externos para a nossa solidão. Com o verdadeiro equilíbrio, vivemos num dos tempos mais extraordinários da nossa civilização. Esta sorte ridícula que temos hoje em dia de podermos pegar num aparelho que nos transporta a qualquer parte do mundo e nos deixa conectar a todos os seres bonitos com quem nos cruzámos um dia, é uma sorte dada por garantida.


Dei mais uma volta ao Sol e pela primeira vez não deu para organizar uma festa com os meus mais queridos para celebrar a maravilha que é estar vivo, quando se cresce com amor. São as voltas que a vida dá e nunca pensei estar tão bem com isto.


Foram precisas 27 voltas ao Sol para finalmente saber apreciar a maravilha que é estar na minha própria companhia – que nem sempre é agradável, mas é deveras fascinante. Isto nunca seria possível sem toda a dose infinita de amor que me rega a vida diariamente, especialmente em dias como os do aniversário através de cada mensagem, chamada e demonstração de carinho. Sou-vos eternamente grata. A vocês e à vida.


Que bom é isto de a minha rica mãe não ter de esperar cinco meses por uma carta amassada que lhe garanta:
“Descansa mamã linda, descansa que eu já não me sinto só.”

Vem do Grego Antigo


Ao longo dos anos comecei a apreciar com curiosidade os vários tipos de reacções que vêm assim que lanço o desafio de saberem lidar com o nome com que me apresento.

À distância, quase consigo adivinhar o tipo de pessoa que se aproxima. Balolas. Parece que se abre um portal diretamente até ao coração das pessoas com quem me vou cruzando.

É engraçado, não é? Como uma coisa tão simples como a reação a um nome pode dar tanta informação sobre a índole do carácter de uma pessoa.

Os meus amigos, fartos desta epopeia, já suspiram. Eu já não guardo mágoas. A culpa não é do nome, é do meu atrevimento em querer manter-me fiel à pessoa de dois anos de idade que se agarrava aos tubos de Pintarolas com a alegria de quem agarra a sua própria vida.

Nunca foi minha intenção criar um mito à volta do nome, as pessoas e a forma maliciosa como tendem a lidar com o que não se encaixa no que conhecem é que fez disto uma cena.

Tenho muito carinho pelo nome que os meus pais me deram, mas há que perceber que quando me deram um nome ninguém me conhecia. Ninguém sabia quais eram as minhas paixões, como soava a minha gargalhada ou o que me deixaria de estômago apertado.

Antigamente, quando as palavras eram sagradas, os nomes eram dados com cuidado. O nome anunciava o ser singular que ali se manifestava. Eram proféticos. No entanto, os meus pais quando escolheram como haveriam de me chamar, não procuraram significados nem leram mitos associados. Seguiram o gosto do quão bem lhes soava e dali veio um nome que a meu ver até é bem bonito, mas que quer gostem, quer não gostem, não tem nada que ver comigo.

As minhas primeiras memórias vêm dos meus dois anos e meio, três anos. Ainda a Xaninha não tinha nascido. As memórias coincidem com o aparecimento do nome Balolas. Foram aquelas cores todas e aquelas bochechas com caracóis que dava beijinhos e abraços como quem respira que lhe deram o significado que até hoje o nome evoca.

Ser a Balolas é ser vulnerabilidade desde o momento em que me apresento ainda que tenha um enorme orgulho na decisão que fiz para aí aos 12 anos, numa tarde de TPCs, quando os meus colegas ouviram pela primeira vez a minha mãe chamar-me assim.

“Sou a Balolas” 
E às vezes ainda coro, é só o raio de um nome. Mas com o tempo também aprendi a responder tanto quanto o tom da pergunta o pede. Como é que as pessoas se levam sempre tão a sério?

“Não te podes chamar assim. Que horror”
“Vem do grego antigo”
“O que é que significa?”
“Ba significa “eu chamo-me” Lolas vem do “como eu bem quiser”.

Foto: Miguel Oliveira

Freaking cold

Last summer I had the fantastic opportunity to work with Daniel Kluken and Ingvild Molenaar. I learned some breathing techniques, part of the Wim Hof method. These days have been between of -12 and -8 Celsius degrees over here in upstate New York. All my mind could think while walking outside with full snow clothes on was ”you must try it here.”
I finally got the ovaries to say it at loud and ask Nalini Therese to support me in this trial of experiencing the cold almost naked and finally did it. Well, it was damn cold indeed, and she carried me on her back to the car after this, because my feet were frozen.
You know, there are loads of cliche quotes out there about the power of our minds but the thing is, our thoughts create our world indeed, and it’s fucking awesome to play with them. ❄️

Tão mais do que isso

Macedon, NY, USA

Eu divirto-me com os simbolismos das coisas que me acontecem na vida. 2018 começou comigo agarrada a uma sanita a vomitar sem parar, graças a uma paragem de digestão. Podia ser sido de bezana ou de aditivos, mas vai daí que este ano foi mesmo comida mal mastigada que me levou a passar o primeiro dia do ano inteiro numa cama de hospital. Fazia lá eu ideia que este seria o ano em que me dedicaria às limpezas.

Hoje fazem quatro meses que deixei de tomar antidepressivos. A medicação estava doseada para me ajudar no processo de quem lida com ansiedade crónica. Nunca cheguei a ter uma depressão mas andei por lá perto, uma vez que estas são condições que por norma se dão bem, lado a lado. Tomava medicação relacionada com a ansiedade desde os 17 anos.

Não é por acaso que não me têm lido. Pela primeira vez em muitos anos, decidi colocar-me em primeiro lugar e tomar conta de mim. Isso também me afetou a escrita.

Esta coisa de nos dizerem que temos de nos amar, que somos os nossos melhores amigos e blabláblá fica muito bem em posts e ilustrações bonitas, mas dar de caras com quem somos sem tretas e falinhas mansas, enfrentarmos os nossos demónios, as nossas fraquezas e estarmos disponíveis para cuidar delas a sério, isso é de uma coragem que eu, que achava conhecer-me bem, desconhecia por completo.

Os antidepressivos que o médico me receitou há anos, permitiram-me abafar os ataques de pânico, as tremuras e as insónias, mas nunca por um momento me ajudaram a perceber de onde vinha afinal todo esse arsenal de mau estar.

Este ano vivi ao máximo este processo de limpeza de relações, ambientes e padrões de pensamentos tóxicos. Encarei traumas, mudei hábitos e reconectei-me com partes de mim que já nem sabia existirem.

Crescer é difícil para crl, é uma constante derrapagem e desengane-se quem achar que vai ser uma volta de carrocel com unicórnios e algodão doce.

É um puto de um processo inacreditável de mutações e de aprendizagens contínuas, sim. É uma maré de aflições, de contagem de tostões e de planos adiados, sim. É vermos os nossos queridos morrerem, percebermos a nossa impotência e aceitar que não vai ser tudo como tínhamos imaginado. Pode tudo correr absurdamente mal,sim.

Mas caramba. E daí?
Estar vivo também é tão mais do que tudo isso.

No age for it

Sandra Jones was traveling the world in the 70’s when, randomly, ended up in Deià, right in the middle of the mountains in Mallorca. After all the places and countries that she had visited and experienced, she couldn’t leave this magical place. In the 70’s a wave of foreigners came to Deià and never left, artists from all around the world, hippies searching for meaning in their lives, families starting their stories from zero, all meeting in the same energetic point, still so active, still so wonderful. I’ve met Sandra Jones when I was looking for a gift to my mother.

She is living in Deià for ages and I ended up in her beautiful store. Her eyes told me more than she wanted to talk in the beginning, but soon she would tell me her story and how the love of her life, also from Australia, would pack everything to search for her and meet her in Mallorca when they were young. He stayed with her until two years ago, when he passed away. She still has a picture of her in the 70’s, with long hair and a free spirit, took by a foreign photographer that was around at that time.
When she was looking at it I could feel the nostalgia, she looked at me and said:

“I don’t really appreciate photos of me, but this one is special, you can feel my young spirit in this one”
I naturally answered, “but you are still young”.

She looked at me really straight in the eyes, smiled and said: “Oh yeah, that’s right. There’s nothing like youth my dear, and there is no age for it, but only a good photo can capture it.”
“I would love to show my people how beautiful you are, as well as your story. Can I photograph your youth then?”, I asked.
“I think we can make it”, she said.
And we did.

 

Palma ou tudo o que eu preciso

Palma, 27 de Abril de 2018

É sexta-feira, o sol está forte e já me enchi de protetor. As pessoas passam de chinelos e com sorriso que não deixa perceber se vivem cá e estão felizes porque chega hoje o fim da semana, ou se é porque estão de férias na paz do senhor. Palma é um enorme molusco escondido numa concha de turistas, recheada de uma energia que me intriga.
Estou na varanda da casa do Willian. Conhecemo-nos há cerca de dez anos, no Algarve. Eu e os meus amigos de Resende tínhamos um t1 alugado para oito pessoas e eram as nossas primeiras férias juntos fora da vila. Um grupo de miúdos de 16 anos em Portimão durante uma semana, tinha tudo para correr bem. E correu.

À porta da Catedral conhecemos um grupo de rapazes de Santa Maria da Feira que jamais esqueceria: o Willian, o Freitas, o Zé e o Pedro, quase todos com mais de 20 anos e com um andamento incomparável ao meu estilo de vida na altura. Chamavam-se Los Bandidos e tinham nos olhos tanto de malandros quanto de amor. Todos eles de coração bom, caras bonitas e olhos malandros. Na altura eu tinha o meu primeiro namorado e demoraria vários anos a alguma vez vir a experimentar a versão carnal de uma viagem.

De todos, foi o Willian e o Freitas que mantiveram mais contacto ao longo dos anos. Há umas semanas o Willian contou-me num pranto o desastre que havia aberto a passagem do Freitas para uma outra dimensão.

Quando escrevi no Facebook que procurava quem vivesse em Maiorca não quis acreditar que nos iríamos reencontrar uma década depois, mas agora ali estávamos os dois, a tomar o pequeno almoço na varanda enquanto lembrávamos aquela semana que nos parece ter sido já há duas vidas.

No dia anterior levou-me a jantar ao Calixto, nome do dono que serve às mesas a “melhor Paella de toda a ilha”. Falava devagar, com pronúncia maiorquina e com os dentes todos à mostra. Está na ilha desde criança, a família tinha negócio de supermercados e restaurantes, os pais dele decidiram ficar-se por Palma. As seis mesas cobertas com toalhas aos quadrados calham bem com a música que sai do rádio da cozinha. Há ali uma mistura de épocas condensadas numa esplanada cujos limites se desenham por inúmeros vasos que servem de base a plantas enormes. “Às vezes não sei se vêm cá comer porque ouviram falar ou se foi por curiosidade pelas plantas”, diz-me e logo completa “nem foi pensado, comecei a comprar plantas e tive esta ideia. Fica bonito, não acham?”.

Depois da sangria fresca e da Paella devidamente digerida, o Calixto ofereceu-nos um chopito tradicional com sabor a anis – sinceramente aquele aroma não me traz grandes recordações –  éramos já os últimos no seu canto familiar. O jantar ficaria por 20 e poucos euros a cada um, mas era jantar de boas-vindas, tudo bem. Brindámos, saímos e caminhámos até à cidade velha. Maiorca é demasiado peculiar, ora nos lembra as ramblas de Barcelona, ora surgem umas ruas de bares pequenos como em Vigo, ora surge um Benidorm ali do nada, com meia dúzia de grupos de ingleses em crise de meia idade e com níveis alcoólicos graves, mas que mesmo que quisesse, não consigo julgar.

Passeámos pela parte antiga da cidade, aí já me lembrava Salamanca. A Lua começava a encher e o reflexo fazia ver-se no Mediterrâneo pasmacento. A Catedral gótica, uma das maiores da Europa, impõe-se pelo nosso caminho.

“Como é que antigamente se construíam coisas destas tudo à mão?”

Ficámos em silêncio a admirar a vista. Eu não via o Willian há 10 anos mas é como se nunca tivéssemos deixado de ser os miúdos que se encontraram em Portimão. A presença dele era confortável e a forma como tratava as mulheres viria a mostrar-se encantadora.

Pelo caminho três rapazes cruzaram-se connosco. “São tugas, tenho a certeza”, disse-me. “Vocês são portugueses!”, gritou-lhes.

Eram três rapazes na casa dos vinte e poucos anos, dois deles acabavam de se mudar para a base daquela ilha. Também trabalhavam na aviação.

“É um bom sítio para se viver, estávamos cansados do Porto”, disse um deles. “Escolheram bem, esta ilha é qualquer coisa”, respondeu-lhes o Willian.

Embora eu não tenha vindo para esta viagem no mood de noite e como já não apanho uma bebedeira há 11 meses, não tinha muito interesse em sair ali, no entanto acabámos por ir até um bar tipicamente espanhol com música pop – todos sabemos que isso signidica reggaeton-  tipicamente espanhola. Já mais tarde, apanhou-se um táxi e fomos para casa.

Seria já ao outro dia que eu iria conhecer a Niko, eslovaca a partilhar casa com o Willian e um italiano, o Lucca, que também viria a conhecer um dia depois.

Alta, de corpo escultural e cabelos longos, andava de um lado para o outro com cestos da roupa. Montou a tábua de passar a ferro e começou a engomar roupa não só dela, como também deles.

“Passas-lhes a roupa a ferro?”

“Sim, não me custa nada e eles cozinham e eu não”.

Pareceu-me uma boa troca. Os olhos castanhos dela ficavam ainda mais rasgados de cada vez que se ria. Às vezes uma gargalhada saía mais alto enquanto olhava para o telemóvel. Não tardaria a aperceber-me que havia encontrado uma alma gémea, não só em relação à forma de estar na vida, como também no humor com que a encaramos.

A partilha de memes seria imediata, não tivessemos nós estilos de vida e maneiras de pensar semelhantes. Agora as gargalhadas passariam a ser em conjunto e em breve os rapazes lá de casa torceriam o nariz a esta união feminina tão forte e não planeada.
Durante a tarde iria fazer o meu primeiro e único dia de turismo por Palma. Fomos até uma praia de água limpa e transparente, bem como Cabo Verde me havia habituado e acabei por me deixar dormir ao sol.
Vimos a que horas seria o pôr do sol, mas antes o Willian quis-me mostrar a melhor vista para Palma, que ele descobriu por “acidente”, uma das vezes em que se perdeu pela ilha. No topo do lugar havia um santo que não cheguei a perceber qual era, mas parecia estar a olhar pela cidade.

A Niko veio connosco de carro até Sa Foradada. Aluguei logo no primeiro dia um Fiat Panda no Royal Rent, em Camí de C’an Pastilla 10, um renting car de um senhor maiorquino, que me fez um super desconto assim que lhe perguntei com um choradinho simpático em espanhol “no me puedes hacer un descuentito? Soy una chiquitita portoguesa, no tengo mucho diñero na verdad”.

O Pandita aguentou-se mais que bem, andei os dez dias a conduzi-lo pelas montanhas e até em dias de tempestade não me deixou ficar mal. Sa Foradada viria a mostrar-se um dos sítios mais bonitos que vi na vida, com um miradouro inacreditável para um dos mais extraordinários pores do sol que alguma vez vi. O sol iria descer lentamente, as pessoas que ali se encontravam partilhavam o silêncio de quem aprecia a grandiosidade da natureza que nos rodeia e quando finalmente se põe o sol, como quase um ritual, costuma aplaudir-se o início de um novo descanso para a estrela que nos ilumina, pelo menos por mais um dia. Nesse dia havia nuvens na linha do mar em que o sol se punha. Não se bateram palmas, manteve-se o silêncio.

Como a fome já apertava e o frio também se fazia sentir, comemos por ali mesmo em Valdemossa. A comida estava deliciosa e não podia esperar mais por aquele sofá incrível na sala do Willian.
Há aqui uma sensação estranha de familiariedade com esta ilha, não sei o que me espera ainda pelo resto da viagem mas só pode ser algo bom. Afinal de contas, assim que peguei naquele Pandita e o conduzi, liguei a rádio e bem alto a primeira coisa que ouvi foi um sonante Roy Orbison a cantar:

Anything you want, you got it
Anything you need, you got it
Anything at all, you got it
Babyyyy

E meu deus… I know I do.

A todos os loucos que vão

26 de Abril de 2018

Estou a caminho de Mallorca, vim de Lisboa até ao Porto de boleia com o meu primo Fernando, que também vai tirar uns dias só para ele, mas em Barcelona.

Vivemos tempos de alegria. Chegou a primavera, o sol começa finalmente a aparecer e sente-se cada célula dos nossos corpos a celebrar a natureza. Sigo para a viagem menos planeada de toda a minha vida. Eu sei que já comentei o quanto adoro viajar sozinha, sem expectativas ou planos, mas desta vez abusei, abusei ao ponto de, pela primeira vez, sentir stress antes de me mandar para um aeroporto.

Cheguei duas horas antes do voo, tive tempo para ver tudo e mais alguma coisa, comprar umas prendas e comer descansada. Quando indicaram a porta de embarque desci as escadas e estava mais do que preparada para me afiambrar à fila prioritária, já que desta vez uma promoção xpto me deu essa regalia.
É precisamente nesse momento que me apercebo de que não tenho o cartão de cidadão. Socorro. Tirei tudo da mochila até que me lembrei: “tirei-o do bolso na zona de segurança”. É muito cansativo viver neste corpo, admito.
Desatei a correr até à zona dos raio-x e pedi aos seguranças que confirmassem se não teria lá ficado caído um cartão de cidadão.

“Não há aqui nada”.

Bonito. Vou perder o voo. Voltei a revirar a mochila, a apalpar-me toda, não acredito que vou perder o avião. Respira. Não faz sentido stressar, tudo vai ficar bem, não faz sentido perder o avião. Mais uns apalpões e reviravoltas e, quando faltavam cinco minutos para a porta fechar, um segurança veio a correr enquanto berrava “VAI VAI VAI”. E eu fui. Então não fui. Já não corria assim há anos.

Como os portugueses são péssimos com horários fui mais do que a tempo de embarcar na mesma exata fila interminável de sempre, já que a única prioridade que me ocorria era entrar no avião.
Toda a minha vida sou avisada que não posso colocar-me em situações de stress, mas não há médico nenhum neste mundo que algum dia venha a perceber que o meu ritmo de ser e estar é o caos em si mesmo. Daí que no meu quarto haja um quadro mal emoldurado de um Bob Dylan jovem a fumar um cigarro com a citação “I accept chaos, I’m not sure whether it accepts me.”

Para explicar esta viagem tenho de regressar a agosto do ano passado, quando conheci uma pessoa que me escancarou as portas que eu já tinha semi abertas, mas que não sabia como as explorar.

Uma das coisas que mais me fascina em relação à vida é o facto de sentir que cada pequeno passo que damos está intimamente ligado com os tropeções e saltaricos que vamos dar a seguir. Somos pequenos grãos de areia que pouco sabemos sobre o significado de tudo isto que nos rodeia e nos ultrapassa, mas se estivermos atentos aos detalhes, não é difícil perceber onde descansa a magia das coisas.

No verão passado estava prestes a mergulhar num buraco negro, no jornal em que trabalhava era altura de férias, a equipa era ainda mais pequena, os incêndios tinham-nos marcado para o resto da vida e não parava de receber chamadas com dados e informações sobre todos os possíveis erros que haviam sido cometidos por diversas frentes.
Crescemos rodeados de medos, levamos todos os dias com um banho de desastres, sangue, intrigas. Os media tornaram-se uma constante lembrança do pior que há no mundo e é-nos demasiado fácil tomar o “dark side” como garantido.

Mas não é o lado negro das coisas que me desperta. Cresci rodeada de histórias e experiências que me mostraram que a vida tem essa face estranha, que é possível sentirmos o mundo com uma agonia desmesurada e fecharmo-nos na nossa concha até que alguém nos diga ao ouvido: já passou, podes voltar.

Essa é provavelmente a fase mais difícil de quem entra na idade adulta, a altura em que nos tiram o lençol branco que nos cobria do pó até então e nos dizem “bem-vindos ao mundo”. A partir daí temos duas hipóteses: ou escolhemos cobrir-nos de pó e deixar que o bicho nos deixe os ossos carcomidos, ou decidimos aceitar que haverá sempre pó que nos cubra mas que o podemos sacudir sem alergias, sem obstipações, como um ritual de limpeza que terá de ser feito para o resto das nossas vidas.

Esta é uma decisão que nos exige coragem, entender que o caminho não vai ser sempre a subir, que vamos cair um milhão de vezes e esfolar o raio dos joelhos muitas mais vezes do que era suposto, mas que podemos sempre começar de novo e vai sempre poder ser melhor do que foi.

Era agosto e eu tinha menos do que um tostão no bolso, como é já habitual, mas tinha também uma vontade maior que eu de sair de Lisboa e ir a correr até aos que me são tudo.
Trabalhei quatro semanas seguidas para poder tirar as folgas dos fins-de-semana e decidi ir ter com alguns dos meus melhores amigos ao Sonic Blast, em Moledo.
O SB é um dos festivais mais pequenos do país mas é o meu preferido. Para não falar da localização entre o mar e um enorme pinhal, tem um cartaz incrível e um ambiente super descontraído atraído pela música, mais do que qualquer outra coisa.

Com a pressa de me fazer à estrada, nem sequer comprei bilhete para o festival. Nunca na vida teria problemas em comprar bilhete à porta, por isso foi só pegar no carro, em alguma roupa e fui. Sem tenda, comida, nada.
A Rita tinha feito match no tinder com um australiano que, pelos vistos, ia ao mesmo festival que eu e obviamente pedi-lhe que lhe dissesse que havia lugares vazios e que seria melhor que o mel dividir despesas de gasolina e portagens. O Adam lá entrou em contacto comigo e perguntou se uma rapariga australiana que ele tinha acabado de conhecer também podia ir. Que maravilha.
Quando chegou a hora de nos encontrarmos, lá estavam os dois à minha espera. Ele alto e magro, vestido de preto, sem nada que me chamasse muito a atenção. Ela de cabelo azul, óculos e braços todos tatuados, com uma t-shirt dos Black Sabbath, teve toda a minha atenção assim que a vi.
Como ia conduzir durante horas com dois desconhecidos, achei por bem assim que comecei a viagem começar por meter conversa e perguntar como que raio estavam a caminho de um festival que nem os portugueses sabem que existe.

A Katie vinha da Australia de propópsito para o Sonic Blast e depois ia aproveitar para conhecer o país, wow. O Adam estava a tentar encontrar trabalho por cá. Perguntei-lhes o que faziam e foi aí que se deu um clique que mudaria para sempre a minha percepção das coisas.
O Adam respondeu-me que era project manager, sinceramente não percebi muito bem o que é que ele pretendia encontrar por cá. Mas quando chegou a vez da Katie dizer qual era a sua profissão o cenário mudou completamente.
“Sou astróloga”.

Ao longo do meu caminho já me tinha cruzado com algumas pessoas especiais, com capacidades que pensamos não estar ao alcance de qualquer um, mas como assim uma rapariga da minha geração se apresenta como sendo astróloga, sem qualquer embaraço ou constrangimento? Deu-se um clique e a partir daí tudo o que viria da nossa amizade seria um longo caminho de partilhas e ensinamentos. A Katie viria a mostrar-se imensamente paciente com a minha inconsolável curiosidade e foi graças a ela que acabei por ler e tornar-me seguidora de várias pessoas que partilham na internet os seus conhecimentos e sensações.

Portugal tem uma cultura mística antiquíssima, mas a não ser o pessoal da treta e horóscopos humilhantes em revistas, por norma ninguém assume publicamente este tipo de gostos, capacidades, dons- não pelo menos que eu estivesse consciente disso, até então. Há sempre uma “bruxa” escondida em cada aldeia, alguma avó com conhecimentos para lá da vida, um tio que lê cartas, mas é sempre em tom de segredo, de medo, ou não tivesse havido sempre público para a queima destas pessoas em praça pública.

Desde que me conheço que o mundo do oculto e as pessoas diferentes me atraem. Por isso, foi mais do que natural que aquela viagem fosse só o primeiro nó de uma enorme amizade que nasceria a partir do pretexto de tudo isto.
Entretanto cheguei ao festival sem bilhete, feliz da vida por reencontrar os meus amigos. Tinham-me arranjado tenda onde dormir, a Mariana tratou de tudo e ficámos pela sombra fresca do pinhal enquanto toda gente se preparava para os concertos. Podia finalmente acender um e respirar o descanso de estar entre a natureza.

“Já foste trocar o bilhete por pulseira?”, perguntou-me o Souto.
“Não, tenho de comprar bilhete ainda”, respondi com a maior calma de sempre.
“Os bilhetes esgotaram Balolas” – disseram-me todos em tom alarmado. 

Ri por dentro. Como assim esgotados? Foi a primeira vez que fui para um festival mandada à campeã e não podia ter tido mais pontaria. A minha solução nem sequer foi pensada, estava tão feliz por estar ali com eles que só quis aproveitar ao máximo o que me fosse possível experimentar.

A única coisa que separa o skatepark dos concertos é uma lona verde, que não só nos deixa ver lá para dentro, como também não interrompe minimamente o som que nos chega sem problemas. Foram dois dias incríveis, eu não cabia em mim de felicidade por poder desfrutar de tudo sem qualquer stress, chamada de trabalho, nuvem negra que me chovesse em cima.
Os meus amigos estavam mil vezes mais preocupados com o facto de eu não ter bilhete do que eu e, o que é certo, é que por ter de ficar à porta, reencontrei dezenas de pessoas lindas que já não via há anos e com quem não falava há mais tempo do que queria admitir. Entretanto vinham ter comigo dezenas de pessoas em pânico à procura de bilhetes.
“Não tenho, desculpa; na verdade também preciso de um” dizia antes de levar logo com um ar muito surpreendido seguido de um “E estás aqui sentada na boa?”.

Na última noite, precisamente antes da banda que eu mais queria ver, uns desconhecidos apareceram com o João, um amigo de quem gosto muito, e disseram que tinham forma de me deixar entrar. O que é certo é que entrei. Não podia estar mais agradecida à aleatoriedade e abundância que me rodeiam, afinal de contas, rendi-me às evidências para aceitar o que as circunstâncias me permitiam viver.

Não sei se já passaram por algum momento assim nas vossas vidas, mas este seria o primeiro de muitos momentos de rendição completa ao que o universo, a vida, o que lhe quisermos chamar, têm para oferecer, numa aceitação completa do que vem, com alegria e gratidão.

Mais tarde voltaria para Lisboa, depois de uns três dias bonitos com os meus pais em Afife e voltaria a encontrar a Katie. Como não sabia nada do panorama da astrologia em Portugal perguntei a um amigo e ele acabou por me falar do Luís Resina, que viria a conhecer e a entrevistar poucos dias depois.

Tenho vindo a aperceber-me que a minha missão é a de escrever e contar todas estas histórias, apresentar ao mundo todas estas pessoas que a sincronicidade e a sorte trazem até ao meu caminho, para que mais pessoas conheçam e se sintam inspiradas a procurar o tal bright side que nos querem fazer acreditar ser quase impossível existir.

É graças à Katie que hoje viajo para Mallorca, onde me aguarda um sofá oferecido pelo o Willian, amigo que conheci há 10 anos e com quem nunca mais estive, para encontrar uma das mentes mais fascinantes que me foi apresentada pela Internet, por indicação dela.

Kaypacha, um norte americano, astrólogo profissional há mais de 40 anos, que dedica-se a descrever as mudanças da humanidade através do reflexo dos movimentos dos astros e do cosmos. Assim que vi o primeiro vídeo dele soube que teria de o conhecer um dia e não descansei enquanto não fiz por vir encontrá-lo.

Sem bilhete para o curso que ele veio dar, sem muito tostão no bolso, só com um bilhete de avião e uma rendição completa ao que a vida me quiser oferecer, vim até Mallorca para perceber quem é, afinal, este tal Kaypacha.

Quando cheguei a Palma e expliquei ao Willian o que me trazia a reencontrá-lo tantos anos depois, de copo de vinho na mão e Paella do Calixto à frente, os olhos azuis dele estavam arregalados e a boca semi-aberta.

– És louca. Vais encontrar-te com ele onde?
– Nas montanhas. Queres vir? Ajudas-me a segurar na câmera.
– Ai. Olha que eu também sou maluco.
– Anda, vai ser uma experiência bonita.
– Já estou arrepiado. Vá, um brinde então.
– Incrível. Brindemos então: a todos os loucos que vão.

A fila de cantina

Quando o vi na fila da cantina da faculdade, éramos putos de 18 anos, ele estava com ar sisudo, sobrancelha franzida, casaco de cabedal castanho. Olhava para o nada, à espera da vez dele e já tinha despertado a atenção do mulherio todo, era novo no curso. Fui ter com ele e perguntei-lhe se era sempre assim tão sério. Ele sorriu. De tão má que sou a fazer apostas não podia ter feito pergunta mais ao lado, tinha acabado de conhecer aquele que para sempre inventaria as mais simples formas de me desfazer em riso. Éramos miúdos de poucos anos e as nossas cores nunca mais se desgrudaram.
Nos corredores chegaram a pintar romance, mas eles sabiam lá da existência dos amores sagrados.
Passeávamos agasalhados pelas ruas do Porto quando toda a cidade dormia, ainda não tinha nascido a vida noturna durante sete dias da semana, àquelas tantas só os vagabundos e os que dormem na rua se cruzavam. Foi-se embora do curso que abominou e cada um tem seguido o seu caminho, sempre de mãos dadas pelo trilho dos que têm mais perguntas do que respostas. É que gostávamos tanto de poder entender o mundo…Os anos passam, as dúvidas multiplicam, não sabemos nada. Ao certo não se chega a entender ninguém. “É um mundo estranho. Somos muito estranhos” “Enfim”, costuma ler-se nas legendas dos nossos verões. Será que antigamente também era assim? Hoje de manhã apareceu-me duas horas de curvas e contra-curvas depois, em Resende, com mais uma prova de que as almas gêmeas existem e nem todas são desenhadas para se beijarem na boca. Há amizades que são sagradas. Esta tarde, comíamos o bolo de chocolate que a minha mãe acabava de tirar do forno enquanto nos ouvia a trocar conselhos sobre dilemas do que mais amamos na vida: escrever. Eu tentava explicar-lhe o quanto admiro e me perco nos contos que ele imagina e num momento de silêncio a minha mãe perguntou-lhe:
-Foi por isso que chegaste a estudar um ano de jornalismo,então…por gostares tanto de escrever?
Ele riu-se enquanto acabava a garfada que ainda fumegava, deu um gole no chá verde e respondeu com voz de alma velha:
-Não, não de todo. Com o tempo apercebi-me que na verdade eu só fui mesmo parar àquele curso para conhecer a sua filha, naquela fila de cantina.
♥️🛸

 

Munique. Portugal palpita no coração da cidade alemã

Trotinetes, bicicletas e muito verde. As folhas amarelas e vermelhas pintam o chão da cidade. Munique está cheia de sol, mas é no primeiro restaurante português da cidade que encontramos o verdadeiro significado de calor

A estação de comboios de Viena mais parece um aeroporto. No comboio os bancos são confortáveis, há tomadas para os carregadores dos vários aparelhos eletrónicos e a internet não só existe, como também funciona. A viagem dura quatro horas e Munique recebe-nos já tarde, mas não está frio como esperávamos.O Uli, é um amigo alemão que nos dará estadia estes dias. Veio-nos buscar à estação de comboios e mais tarde leva-nos a um bar espanhol para beber um copo de vinho de boas vindas. A casa é partilhada por cinco amigos que se conhecem há muitos anos e dos cinco apenas um deles não tem irmãos gémeos. Pergunto-lhes em tom de brincadeira se o nascimento de gémeos é algo típico do país, todos se riem mas comentam que por acaso conhecem várias pessoas com irmãos gémeos.Amanhece e o sol surge com uma intensidade surpreendente. “Não estamos habituados a estas temperaturas nesta altura do ano”, diz-nos o Uli enquanto prepara o pequeno almoço. Como é preparador físico de atletas profissionais, a rotina está bastante entranhada no seu dia-a-dia e vai daí que nos convida para fazermos exercício de manhã.Apesar das pessoas circularem de mangas curtas, enquanto se passeiam de bicicleta e trotinetes, a verdade é que o Outono já chegou e Munique é um mar de tons amarelos, vermelhos e laranja. Crianças pequenas dão gargalhadas enquanto empurram com os pés as milhares de folhas que cobrem os caminhos das cidade.

Há uma bicicleta destinada ao nosso passeio matinal e a falta de hábito e o tamanho do banco proporcionam três quedas seguidas, o Uli olha-nos com estranheza mas acha piada à situação. Perguntamos-lhe onde podemos encontrar os portugueses que por cá vivem, mas não temos muita sorte com a informação. Não tarde, porém , a ser-nos útil com as chamadas telefónicas que terá de realizar para nos manter informadas sobre um esfaqueamento no metro. Traduz as informações que lhe dão para inglês. Houve seis feridos mas os suspeitos foram presos, “está tudo tranquilo e voltou tudo à normalidade”.

Passeamos pelas margens do rio Isar, onde várias famílias aproveitam as temperaturas e a greve que a chuva fez esta semana. Fazem-se piqueniques, há cervejas nas mãos dos adultos, casais de namorados que se abraçam a ver o rio correr. Muitos chamam-lhe a cidade verde e percebe-se porquê, já que há enormes parques que acompanham a cidade, em ambas as margens do rio.

Continuamos a pé pelas ruas do centro de Munique e eis que a noite começa a espreitar. O sol põe-se cedo, mas as temperaturas não estão muito mais baixas, pelo menos por enquanto. Na Breisacher Str. 22 damos de caras com um dos mais famosos cantos portugueses de toda a Baviera. Ao fim de 35 dias em viagem sem contacto com portugueses, encontrar o Lisboa Bar é respirar Portugal.

No balcão vê-se carne de porco à alentejana, canapé de bacalhau espiritual, boquerones, entre outras pratos dos quais temos saudades. Chegam dois amigos bem dispostos, de casaco de cabedal e fazem festa ao gerente. Vieram de mota, pedem uma cerveja cada um e ao saberem que somos portuguesas nem nos dão hipótese: “Querem super ou sagres?”. Anselmo, gerente do Lisboa Bar, está atarefado e tem pouco tempo para conversar com os amigos. “A casa hoje até não está muito cheia, acredita”, diz-me com sotaque de Guimarães. Tem 34 anos, nesta cidade vive há onze anos, mas mudou-se para a Alemanha há 20. “Já compensou mais viver aqui, agora estar aqui ou noutro lugar é praticamente igual. Deixou de ser interessante”, diz enquanto um cliente alemão espera pela conta. A servir à mesa também há alemães, mas na cozinha são todos portugueses: “ A cozinha portuguesa tem de ser feita por portugueses. Já tivemos um espanhol e um albanês mas não é a mesma coisa, mudam sempre alguma coisa. A comida portuguesa tem de ter alma”.

Era ainda adolescente quando veio com a família para a Alemanha. “Fiz cá o décimo primeiro e décimo segundo. Aprender a língua foi só difícil no início, depois é sempre a andar”. Quando lhe pergunto se não ensinam os funcionários alemães a falar português responde-me com uma gargalhada: “eles só querem aprender palavrões. É que o alemão parece uma língua agressiva mas não é, eles não usam disso. São cuidados”.

Anselmo traz as cervejas aos dois amigos que agora escolhem uma mesa. Valter também é de Guimarães, tem 37 anos e está em Munique desde os 18. Tiago tem 34 anos, é de Santarem e já está por estas bandas há 24 anos. “É sempre aqui que vimos, não há nada como este bar. Depois há uns restaurantes mas é tudo muito pimba. Aqui é outra classe, não há piropos às mulheres no meio do bar, é outro ambiente”. O dono, José Fonseca, abriu o restaurante quando veio estudar alemão para Munique, há 28 anos. Foi o primeiro canto português da cidade. José fala do Lisboa Bar com orgulho, e não é só porque a casa tem o nome da sua cidade.

“Eu não vinha de famílias ligadas à restauração, estava a estudar hotelaria na Suiça e decidi vir para cá estudar a língua que me faltava para acabar os estudos”. Para ter sucesso, garante que o segredo é saber adaptar-se ao lugar em que se está. “Tem de ser uma cozinha portuguesa bem feita mas aconchegada ao ambiente em que se está. Se eu der um bacalhau tipicamente português a um alemão ele vai achar salgado. Se lhe der umas sardinhas com tripas ele não come, tem nojo. Se der uma salada de orelha, levanta-se da mesa, se nos vir a comer caracóis começa a vomitar. Há muitos cuidados a ter em conta num país diferente”. Quando visitam a cidade, é aqui que param os jogadores de futebol, o embaixador e demais personalidades portuguesas. José é amigo de Valter e Tiago, são do mesmo grupo de motares, fazemos passeios por aí todos juntos, calminhos, vocês deviam vir connosco”.

À mesa já chegaram gambas à guilho, ainda a ferver. Há cestos de pão e não tarda chegam as alheiras e os bifes. Enquanto fazem um brinde José remata:“Isto aqui é um ponto de encontro. É a nossa casa, é aqui que nos sentimos portugueses”.

 

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Viena. Aqui se juntam os resistentes da literatura austríaca

Depois de deixarmos a escura Budapeste, chegamos a uma Viena iluminada cheia de pessoas que nos sorriem. Numa antiga fábrica de locomotivas encontrámos um dos palcos da cultura alternativa da cidade

A cidade de Budapeste ficou-nos guardada com carinho, pelas maravilhosas construções e pelo estilo cosmopolita que se vive naquelas ruas. Apesar de nos expulsarem dos restaurantes às 22h00 e de haver comentários sexistas até em menus de restaurantes onde “picante o suficiente para raparigas” se podia ler numa ementa de um restaurante asiático supostamente moderno onde os funcionários e gerente eram, na sua maioria, húngaros.Apesar de ficarmos a saber que os nossos amigos não estão propriamente felizes com a vida em Budapeste, embora recebam salários bem mais justos do que os que lhes ofereciam em Portugal para as mesmas funções e apesar da vida ser mais barata, a verdade é que não estamos habituados a viver sob um governo limitado e ditador, nem com uma homogeneidade de comportamentos xenófobos e homofóbicos. “Em Portugal, ainda que existam pessoas assim é raro assistirmos a situações. Mas uma vez uns amigos nossos iam no comboio e um deles ia ao lado da namorada, mas à conversa com o amigo. Levou uma chapada de um húngaro que começou a implicar a achar que eram gays só porque iam entretidos a conversar. São ridículos”, conta-nos Gustavo a viver há aproximadamente um ano em Budapeste.

A estação de comboios onde apanhámos o comboio para Viena era no outro lado do mundo e isso resultou, como já se estava a prever, em perdermos o comboio que tínhamos planeado. A sorte é que no centro da Europa os transportes internacionais circulam com muita regularidade e vai daí que só tivemos de esperar meia hora pelo próximo.

Quando chegámos a Viena já era noite, o Andreas, cuja mãe é portuguesa e o pai é Austríaco emprestou-nos o sofá durante os três dias que se seguiram. Tinha jantar pronto para nós e falou-nos dos resultados das eleições cujos que acabavam de confirmar as sondagens, ganhando o Partido Popular graças ao jovem Kurz, que fica para a História como o primeiro ministro mais novo de sempre em todo mundo. “Ele foi muito esperto e teve um discurso anti muçulmanos que agradou aos mais velhos que vivem fora das cidades e têm medo. É o resultado do populismo”, dizia-nos enquanto nos servia uma cerveja artesanal, feita por ele mesmo. Vínhamos preparadas para enfrentar uma cidade gélida mas enganámo-nos. Na manhã seguinte Viena recebeu-nos com raios de sol e um céu azul límpido. A cidade tem muita luz, o que comparada às cidades que havíamos visitado durante todo este tempo nos fez matar um pouco das saudades que já tínhamos de Lisboa.

Viena está dividida por distritos e nós ficámos hospedadas no oitavo. No meio de tantas lojas e galerias, decidimos perguntar na rua a um casal onde nos aconselhavam a almoçar. Indicaram-nos que seguíssemos em frente até encontrarmos uma antiga fábrica de locomotivas e máquinas chamada Wuk. Quando demos com o lugar, encontrámos um enorme edifício cujo túnel daria acesso a um terraço luminoso, onde se estendia uma esplanada. Crianças brincavam, saltavam e rebolavam num parque de areia à porta de um infantário. Adultos com cabelos de várias cores, piercings e roupas ousadas bebem cerveja em no bar. Uma mesa está ocupada por um grupo com ar mais corporativo.

O edifício cor de tijolo, que se transformava num enorme quadrado coberto por heras pintadas pelas cores de outono, é hoje palco da cultura “underground” de Viena. Funciona como uma enorme oficina de arte e consideram-no um centro cultural alternativo. Desde as artes cénicas, a ateliês de belas artes, a bares e a um cinema, há ainda espaço para workshops e cursos, bem como para uma pequeno espaço cheio de livros que nos desperta a atenção. À porta vemos o Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago. No meio de autores alemães lê-se “António Lobo Antunes”. Decidimos entrar.

Dentro da apertada “Evolutions Bibliothek” está Nikolaus Scheibner, um homem magro, com pouco cabelo, veste uma camisola coçada que está a ouvir atentamente Ilse Kilic, uma figura feminina imponente, quase bruta. Atenta à conversa está também a jovem de 37 anos Michaela Hinterleitner que é poetisa e faz teatros de marionetas. Sonha com os Estados Unidos. Ilse, outrora artista “punk” é casada com Fritz Widhalm com quem já escreveu dez livros em conjunto. “Cada um desenha e escreve uma página e o outro completa a história sem nunca poderem apagar o que o outro disse antes. É uma delícia”, explica Nikolaus, de 41 anos, que se vem a revelar uma testemunha viva do que é ser um artista resistente. Nikolaus é um poeta, um apaixonado pela literatura, é presidente da associação sem fins lucrativos “Zeit Zoo” – O zoo do tempo – e fala do amor que tem aos livros com os olhos de uma criança.

O espaço onde estão hoje, no Wuk, nos anos setenta foi ocupado por artistas que não permitiam que se fechasse o ponto de encontro de tantos artistas e ativistas nacionais. Nos anos 90 Nikolaus juntou-se ao grupo de escritores que se encontrava na “Arena”, como lhe chamavam e aí sonharam criar uma revista literária onde publicassem os vários poemas que esta pequena comunidade produzia. Hoje é o presidente do Zoo do Tempo e da respetiva editora e admite que é de uma imensa dificuldade sobreviver como poeta aos tempos modernos.

A conversa é interrompida por um toque monofónico. Nikolaus tem o telemóvel mais antigo que vimos nos últimos anos, ainda é preciso abrir a tampa para atender a chamada. O pequeno espaço onde estamos é uma biblioteca comunitária que quer dar à população a oportunidade de ler livros de autores menos conhecidos, de todo mundo. “Há tantos escritores extraordinários que são menosprezados. São sempre os mesmos a receber os prémios, os apoios do governo, mas quem escolhe esta vida já sabe que é assim”, diz-nos enquanto sorri ao desfolhar um dos seus livros de poemas. “Mas não é pelo dinheiro que um homem escolhe ser poeta. O poeta é rico pelo que tem dentro de si. O dinheiro serve apenas para que o poeta sobreviva”.

 

Foto: Diana Tinoco

Hungria. “Estão a falsificar a nossa história”

Em Budapeste sente-se a pressão de um governo ditatorial e nacionalista que tenta alterar o passado em proveito próprio. Mas há ativistas que não desistem de manter vivo o respeito pelas vítimas da história de um país que parece ter esquecido o seu legado

A viagem da Sérvia até à Hungria ganhou o prémio na categoria de “a mais desconfortável da vida”. Foi a primeira que fizemos em modo interrail, cujo passe nos permitia deslocarmo-nos de comboio durante cinco dias por quaisquer países incluídos no serviço. Com o passe da Eurail, é raro termos de reservar lugar nos comboios, mas sendo este um noturno foi preciso passar por uma bilheteira e pedir dois lugares de Belgrado até Budapeste.A modalidade da reserva incluía uma “cama” e daí que a nossa ingenuidade nos levou a pensar que as próximas oito horas seriam as de maior conforto de toda a experiência balcânica. Estávamos absolutamente erradas. Quando demos de frente com a cabina que nos estava destinada, demos connosco num estreitíssimo compartimento cujas camas se resumiam a seis tábuas forradas a tecido, três de cada lado da cabina, cuja estabilidade era no mínimo duvidosa.

Chegámos à conclusão que o mais seguro seria optar por escolher as camas do terceiro andar, não fôssemos nós levar com aquilo na cabeça. As escadas improvisadas provocaram alguns ataques de riso e a quase impossibilidade de as usar provocaram uma reprimenda em sérvio do revisor, que nos viu a tentar apoiar os pés numa das camas improvisadas. O calor provocado por um exagerado aquecimento central tornou-se insuportável e decidimos abrir as janelas do corredor, com esperança que corresse um pouco de ar fresco. O ar lá fora era gélido, o luar refletia-se nas enormes planícies que corriam a alta velocidade, num cenário digno de um filme de Hayao Miyazaki.

Bem encostadas, cada uma do seu lado da cabina, lá acabámos por adormecer e só acordámos quando a polícia das fronteiras nos bateu à porta. Estivemos imenso tempo parados, tanto na saída da Sérvia como na entrada para a Hungria, cujas normas fronteiriças estão mais estritas que nunca. De novo de olhos fechados, já só voltaríamos a acordar com os berros do mesmo revisor rezingão e de alguns dos passageiros que nos avisavam sobre a chegada a Budapeste. Eram seis da manhã, já havia imenso movimento nas ruas. Em frente à estação estava um dos imensos Starbucks da cidade. Eu nunca havia entrado num porque os preços sempre me pareceram ridículos, e com razão, já que dei por mim a pagar seis euros por um sumo de laranja natural que chorei durante todo o dia. A moeda ainda não era o euro, mas o ar era o mais ocidental que respirávamos em dias que nos pareciam meses. A noção do tempo em viagem é sempre confusa, um dia pode demorar um ano ou uma hora, as datas deixam de ser assim tão importantes e a luz do sol é o ponteiro que melhor nos guia.

Em Budapeste ficámos hospedados em casa de um casal amigo que está a trabalhar há um ano na cidade. O emprego fica numa multinacional, trabalham com vários conterrâneos e têm direito a ir a Portugal uma vez por mês, viagem essa comparticipada pela empresa.

A casa onde vivem é digna de um cenário de filme clássico italiano. Ao entrarmos por um portão de madeira já muito gasta, um enorme terraço circundado por varandas imponentes e várias plantas nos beirais dão um ar sublime àquilo que, por fora, parecia só a entrada para uma casa velha.

Com enormes pilares verticais, ao cimo vê-se o céu azul limpo, indicador de que também em Budapeste vamos ter sorte com a meteorologia.

Depois de repostas as energias fomos até ao museu Casa do Terror, cujo objetivo é imortalizar as vítimas dos regimes fascistas e comunistas. O museu, inaugurado em 2002, é massivo, interminável e exaustivo. As enormes salas estão desenhadas e pensadas ao pormenor para que o visitante sinta o desconforto natural de uma casa que serviu de teto a inúmeras torturas e mortes de vítimas de sistemas desumanos. Porém, para quem tiver algum conhecimento mais aprofundado da História, é nítida a tentativa de alteração de contextos e cenários políticos em favorecimento de um sistema nacionalista.

Assim o reclamam ativistas húngaros, maioritariamente de gerações mais velhas porque “os mais novos não se podem mostrar contra o sistema, caso contrário ficam sem emprego”, explicam-nos mais tarde. Consideram o museu um atentado à história da Hungria, numa tentativa de tentar minimizar a participação húngara no desfecho da limpeza étnica durante a ii Guerra Mundial. Maria Schmidt, diretora e curadora do museu, tem sido acusada de alterar a história e ignorar o Holocausto, focando-se na ocupação soviética e ignorando a participação da Hungria nos horrores da ii Guerra Mundial.

“É mais uma aliada do sistema de Orbán, ela faz parte do governo dele, a mesma historiadora que considera Schengen o fim da soberania do seu país, que afirma que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é o maior causador da crise europeia por colocar os direitos humanos em primeiro plano em vez da defesa das fronteiras”, lê-se num dos documentos de protesto contra a “falsificação da História”.

“Quando vieram para o poder, há sete anos, a primeira coisa que fizeram foi reescrever a Constituição e mudar o primeiro parágrafo, como se 60 anos de História não tivessem existido. Como se a minha existência nunca tivesse acontecido”, diz-nos Andrew, cruzando os braços e falando calmamente. É professor de História e tem dois filhos. O cabelo branco não o impede de estar no seu turno de protesto todas as semanas, mesmo sendo de fora da cidade. Nascido em 1957, assistiu ao domínio soviético, os pais foram vítimas dos nazis e a avó foi baleada na cabeça nas margens do Danúbio, uma vez que todos eram judeus.

O memorial chama-se “Memorial às Vítimas da Invasão Alemã”. Deveria homenagear as vítimas do Holocausto e tudo parecia bem até que, depois de construído, uma parte da população se apercebeu de que “tudo estava errado”. “A estátua mostra o Anjo Gabriel de maçã real na mão e a águia alemã pronta para caçar. Eles querem fazer parecer que a Hungria foi uma vítima da ocupação alemã quando a História está farta de nos provar que a Hungria foi aliada dos Alemães. Isto não é correto. Nós não fomos ocupados.”

Também o sistema eleitoral foi alterado assim que subiram ao poder, desde a organização geográfica ao número de rondas de votos. O que faz com que este governo, com apenas 44% dos votos, tenha o poder, uma vez que assim foi possível conseguirem dois terços dos lugares no parlamento.

Frente à estátua está um conjunto de elementos que os ativistas colocaram como lembrança constante das vítimas do Holocausto. “A minha mãe morreu em Auschwitz”, lê-se num dos cartazes. Há traduções em várias línguas do documento que explica a todos que visitam o monumento a gravidade do que ele representa. “O que me preocupa mais são as gerações mais novas. O sistema de ensino é tão mau que eles não fazem ideia do que se passa, não conhecem a história, não têm posição política”, explica Andrew. “Os meus filhos, com mais de 20 anos, descredibilizam constantemente o perigo desta ditadura pseudodemocrática e nem sequer entendem o populismo. É assustador que a maioria dos apoiantes da extrema-direita sejam os jovens.”

Na sua opinião, o complexo de inferioridade ajuda ao crescimento de uma sociedade machista, racista, xenófoba e homofóbica. Propaga-se uma ideia de soberania e poder de um país que, na verdade, está em constante desmoronamento. Mas o que mais o revolta é que os maiores propagadores destes ideais são os jovens: “Como pode haver tanto ódio numa geração tão jovem quando eles nem passaram pelos sistemas como nós? Deviam ser eles a mudar mas, neste país, os mais velhos são os que têm a mente mais aberta.”

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/585972/hungria-estao-a-falsificar-a-nossa-historia-?seccao=Portugal_i