Cartas para Vadios//6

Porto, 13 de junho de 2019

Dear Duki, 

Começou a roda-viva. Ah como eu gosto desta vida que roda que nem aquela saia da Carolina que nos fartávamos de cantar em crianças a caminho de São Martinho de Mouros, para visitar os meus avós.

“As pessoas perguntam-me muito, sabes… se ainda não te cansaste deste rodopio”, dizia-me a minha mãe agarradinha a mim enquanto aproveitámos o último quarto de hora antes da minha tia chegar e me dar boleia até aqui ao Porto. Olho para ela com carinho e testemunho o que tantas milhares de mães desta nossa geração devem sentir.

Todos os que voam têm de poisar, isto é sabido por todos. Hoje entendo melhor que nunca o poder de estar mais perto. Têm sido tempos muito intensos, Duki. “Meu Deus do céu”, diz-me ela banhada em lágrimas. Olha que eu admiro tanto a minha mãe.

Estudas psicologia, de certeza que já ouviste falar de fibriomialgia e da depressão que ela costuma trazer às cavalitas. Entrou de rompante pela nossa casa dentro, quando eu tinha oito anos. A minha mãe era tão nova, Duki. Em Resende perguntavam-lhe “se era alguma coisa terminal”, não por maldade ou descuido, queriam muito bem à minha mãe, mas ninguém estava preparado para a ver assim.
“Tu sabes que és a minha grande musa”, dizia-lhe eu no tal último cigarro que fumaremos em muito tempo. “Oh, tens cada uma”, respondeu-me com um sorriso tímido. “És mãe; claro que és: Ou tu não vês o quanto escrevo sobre ti? É esse amor, essa força toda que me inspira.” As mães são uma força divina. E quantas mais mães conheço, mais a vida me fascina.
À minha dói-lhe na alma que eu saia tanto, e enquanto sente aquele pesar tão genuíno, acaba por nem ter espaço para se lembrar que sou só mais um fruto de uma linhagem de mulheres que saíram de casa para seguirem os sonhos que tinham. A minha avó, a minha mãe, as minhas tias, todas elas ,Duki, tiveram de deixar as mães para viverem a vida que as esperava. 

A minha avó, que era menina de boas famílias, deixou tudo pelo amor infinito ao seu Amadeuzinho; O pai, primeiro professor das redondezas e a mãe senhora das diplomacias e bons costumes viram-na de malas feitas para ir viver no monte o amor que à partida de lhe dariam pés frios, mas lhe causava arder de peito. Era a rebelde da família, a minha avó Teresinha, ela que haveria de partir com o mesmo sorriso de uma menina.

A minha mãe saiu de casa da mãe dela para estudar aos seis anos. Seis anos Duki, não foi aos 18. Em casa da avó tinha responsabilidade de adoptar todos os primos da cidade que visitavam a aldeia. Uns do Porto, outros de Vila Real e a ganapa não só fazia camas como cortava unhas, dava banhos e punha a mesa para os grandes encontros de família que se davam ao fim-de-semana. Aos seis saía do monte para a aldeia e aos dez mudava-se para Vila Real, onde estudou no liceu até se mudar para o Porto e começar a Universidade. Aos onze tinha as duas irmãs com ela, começou-lhe cedo a maternidade.

Mãe Anabela em Afife// Agosto de 2018

Entendes a responsabilidade que a minha mãe assumiu para se fazer à vida? É uma história inacreditável Duki, a dela e das minhas tias. Mas isso daria para livros e eu escrevo-te cartas.
Sempre que as ouço contar todas as histórias que nos coloriram natais, páscoas e todas as lareiras da alma, embevecia-me a simplicidade e alegria com que cresceram. 

A gratidão que sinto tem raízes profundas, e cada vez que a minha mãe chora as minhas saídas, ela banha os nossos beijos com as lágrimas que também lhe choraram as mães antigas da família, e as tias, e as primas.

Lembro-me de ser miúda e a minha mãe trazer sempre com ela na carteira uma folha dobrada em quatro. Quando estava entre amigos e pessoas de confiança lá puxava da sua incrível capacidade de rir e em voz alto lia uma anedota longa e bem escrita, das que os adultos enviam por mail. Com aquele ar de menina que sempre participou em teatros e declamava poesia de cor, lá contava o encontro de um génio da lâmpada e um homem e que ali poderia expressar o seu maior desejo.

O homem não sabia nadar e humildemente desejava a construção de uma ponte que unisse Lisboa ao Açores (não sei se eram estes os pontos, mas fica a ideia) e o génio ria-se à gargalhada. “Estás louco? Sabes o que envolve construir uma ponte dessa envergadura homem? Os quilómetros, a profundidade, toda a maquinaria e material necessários…”. O pedido era uma loucura, pelo que o homem teve de pensar noutro desejo. Ora o homem deu voltas e mais voltas,  a tentar encontrar um desejo que honrasse aquela oportunidade única e assim se fez luz. “Já sei! Toda a minha vida vi a minha mãe chorar, a minha irmã, mais tarde a minha mulher. Partiu-me sempre o coração assistir a todas aquelas lágrimas. Génio eu desejo saber porque choram as mulheres”. A minha mãe fazia uma pausa e assim preparava o momento. O Génio ao ouvir ao pedido, nem hesitou. “Queres a merda da ponte com duas ou quatro faixas?” Ah! Ainda ecoam em mim as gargalhadas dela.
Todos os filhos sabem quando custa ver a nossa mãe a chorar e, por muito tempo, a minha mãe não conseguiu mais chorar. Também me aconteceu, quando tomei medicação para a ansiedade. E sei bem o quanto faz falta a alquimia que transforma a emoção em água e sal.

Os antigos mestres da cultura Zen falam do poder do agora e de honrarmos cada momento como uma benção aceitando as lições que a vida nos traz. Isto nos livros tem sempre outro sabor, o pôr em prática é que costuma causar alguma comichão. Nos dias de hoje em que corremos e o trânsito entope até que o abrandar significa para por tempo indeterminado, ui Duki não é tarefa fácil. 

A minha mãe nunca cedeu à doença. Embora com o tempo as capacidades dela tenham ficado absolutamente limitadas; a minha mãe nunca permitiu que as pessoas sentissem muito a dor dela. Só estes meus últimos dez anos de dor ciática, brinde que veio no bolo de ter duas hérnias discais, é que consegui finalmente calçar parte dos sapatos dela.

Que força Duki, meu Deus do céu. A dor de costas veio quando também eu saí do ninho, já viste o simbolismo da coisa? Até para ter asas é preciso transmutar. É fácil o meu corpo associar aquela casa a dor. Apesar de ser o núcleo de todo amor e carinho, aquelas paredes já absorveram e muito, o que é sentir no corpo a exaustão de respirar. A fibromialgia é um monstrinho que chega e não quer ir embora, custe o que custar.
E custa muito, Duki. Mas a mãe Anabela entre muito cuidar, passar e tricotar, ainda ganha coragem de baixar a medicação e eis que volta a alquimia de quem consegue chorar.

Agora voltei a casa de coração aberto e cicatrizes curadas, estar ali não é senão motivo de agradecimento e reflexo de nutrição. Logo de manhã ligo a coluna e começamos a dançar enquanto aqueço o meu chá de menta. Eu e a minha mãe conversamos com tempo, apesar de eu passar tantas horas ao computador a trabalhar. E rimos tanto, mas tanto. É tão bom estar de volta, Duki. Mas agora tenho de voltar a voar. E então estamos ainda ali agarradinhas até que a minha tia telefona, que me veio buscar.

No outro dia estava eu em Lisboa e a minha mãe ligou-me, como já é costume, a meio da tarde. “Como estás mamã?, perguntei eu com saudades de lá.

“Olha minha filha cá ando. Mas queres saber uma coisa?”, pergunta-me com tom de felicidade.
“Quero sim, mamã”.
Então fez uma daquelas suas pausas, de menina que fez teatros e declama poesia de cor e preparou-me para um grande final.
“Hoje, meu amor, já não voltei a chorar”.


E pronto, por hoje é tudo. Vou apanhar a roupa; já secou, por este andar.
Um beijo enormi Duki,

Gosto imenso de ti. 

B.

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Mais uma volta ao Sol

Dei mais uma volta ao Sol e desde há um mês para cá, todos os dias a minha rica mãe, sempre com jeitinho, solta a derradeira pergunta em tom que suplica por verdade: “Balolas, diz-me lá, não te sentes muito só?”
Consigo sentir na voz dela a dor antecipada que se deixa escapar, só com a ideia que a sua menina se possa sentir sozinha.
“Só? Não mãe…só não”


Não me levem a mal, a pergunta vem cheia de amor e cuidado, tomara que todos os seres deste mundo tivessem alguém que lhes dedicasse cuidado sobre o quão invadidos pela solidão possam estar.


Isto de se sentir desde muito cedo que se é de todo lado e não se é de lado nenhum tem muito que se lhe diga. Mesmo que eu tivesse pavor a não estar provida de companhia humana, a verdade é que as tão infinitas e nunca demasiadas voltas que esta malha quente da vida me vai dando, também me treinaram desde muito cedo para enfrentar essa coisa que é estar apenas na minha própria companhia.


Estar sozinho é um constante mergulho gélido em todos e quaisquer poros abertos da pele que vamos vestindo desde o primeiro dia que nos expõem ao mundo.


É só quando temos tempo e espaço para o silêncio, para a reflexão e para os momentos “tcharan” do nosso espírito, que conseguimos realmente perceber quem é a voz por trás dos milhares de pensamentos que nos invadem diariamente, o que é que este corpo em que cresço gosta ou não, onde está cada um dos finos cabelos que nos caem na pele e que nos dão comichão.


Eu não julgo minimamente quem não quer nunca estar sozinho. É um grande salto que se dá o de termos de lidar constantemente com quem somos. Há tantas, mas tantas coisas que nos podem envergonhar, massacrar, espezinhar, se não olharmos para quem somos com um pouco de compaixão e paciência.


Se por vezes me questiono onde é que se pode ter tanta angústia guardada, por outro lado, também me assola a questão de como é que posso ser tanto amor?


Tive desde sempre a tendência para amar sem medida e já todos sabemos o quão boa sou a esfolar os joelhos. Mas o que é eu posso fazer em relação a isto? Não há rolha que pare uma queda de água. Ou tentem lá controlar a força do mar contra uma falésia!


Este amor todo cá dentro tem me permitido, desde muito cedo, uma ligação especial com a maioria dos seres humanos com quem me cruzo. Já fiz muita borrada, mas sabem quando até as borradas guardam com carinho?
As conexões que a vida me doou desde muito cedo ficaram em mim para sempre e apesar da distância e da velocidade com que o tempo corre, sei que as amizades e o amor são eternos. E tenho em mim o consolo que haverá sempre, numa das infinitas realidades paralelas a que podemos aceder com a nossa memória, um ponto do tempo e do espaço em que ainda partilhamos o mesmo ar.


Daí que não minta quando digo que, inevitavelmente, nunca chego a estar verdadeiramente sozinha. Tenho-me permitido guardar com cuidado todos os bonitos seres com quem me cruzo e sou uma felizarda por me menterem nas vidas deles a mim também.


Tendemos a culpar os factores externos para a nossa solidão. Com o verdadeiro equilíbrio, vivemos num dos tempos mais extraordinários da nossa civilização. Esta sorte ridícula que temos hoje em dia de podermos pegar num aparelho que nos transporta a qualquer parte do mundo e nos deixa conectar a todos os seres bonitos com quem nos cruzámos um dia, é uma sorte dada por garantida.


Dei mais uma volta ao Sol e pela primeira vez não deu para organizar uma festa com os meus mais queridos para celebrar a maravilha que é estar vivo, quando se cresce com amor. São as voltas que a vida dá e nunca pensei estar tão bem com isto.


Foram precisas 27 voltas ao Sol para finalmente saber apreciar a maravilha que é estar na minha própria companhia – que nem sempre é agradável, mas é deveras fascinante. Isto nunca seria possível sem toda a dose infinita de amor que me rega a vida diariamente, especialmente em dias como os do aniversário através de cada mensagem, chamada e demonstração de carinho. Sou-vos eternamente grata. A vocês e à vida.


Que bom é isto de a minha rica mãe não ter de esperar cinco meses por uma carta amassada que lhe garanta:
“Descansa mamã linda, descansa que eu já não me sinto só.”