Resende, 3 de junho de 2019
Dear Duki,
Escrevo-te em português porque é assim que as palavras me saem sem que respirar me custe. Ponderei começar em escrever-te, mas as sincronicidades da vida já me bastaram para perceber que chega de pensar e enfim, façamo-nos à vida. Sabes?
Ora então que decido começar bem pela moda que me é mais natural; admito que cartas à mão me sabem a outra menta, mas para a dimensão da coisa estas mãos foram treinadas toda uma vida. Assim que te escrevo diretamente do computador, como tantas vezes me comunico contigo. Há aqui uma eletricidade sempre presente, já reparaste? Desde o momento em que nos vimos pela primeira vez, há dois anos, no Kosovo.
Estou de volta a Resende, terra onde cresci e escrevi pela primeira vez num computador. Estes dias estiveram de um calor absurdo. Foram duas semanas de verão em loop de roupas leves e bebida fresca. Eu adoro o calor, derrete-me o sedentarismo de um inverno custoso e mergulhado em sabores que nos aquecem a alma. O calor faz-me mexer, faz-me procurar a água como um peixe sedento de casa e obriga-me a viver o meu lado mais feliz, social, livre. É como se de repente me apercebesse do pequeno sardão que me tornei, numa procura solar constante, como quem precisa que se lhe aqueça o coração.
O frio faz-me mal aos ossos, traz com ele muito menos luz e eis que dou por mim a mover-me para outros climas e lugares, numa tentativa abelhítica de encontrar outros jardins.
Faltam três minutos para as duas da manhã e como é óbvio estamos a falar pela net. Já não vejo a tua cara há dois anos e é aquele ícone azul indigo arroxeado da tua foto que me transporta visualmente para a tua presença. Nem a tua voz! Duki eu não ouço a tua voz desde que nos despedimos em Pristina em Outubro de 2017. Tenho mesmo de te ir visitar. Como o mundo mudou entretanto…O de fora e o de dentro; sabes.
Ao abrir o Facebook vejo o título “Já chorei pra caramba”, diz Bolsonaro sobre cinco meses de governo, com ar de quem pede socorro. Ahahah! O mundo, Duki… o que é que se passa com o mundo? Além de todos os rodopios, claro. Dos rodopios nós sabemos.
Por falar em mundo e rodopios, hoje é noite de Lua Nova em Gémeos. Acabámos de ler o que a Katie escreveu. Dizes-me “Say whaaat? Sometimes is just too real haha”. E é mesmo.
É mesmo fascinante como nos podemos mesmo sintonizar com o universo. Ele está cá dentro, afinal de contas, não é? Mas às vezes parece que nos esquecemos disso. Eu pelo menos, sei lá. Sinto tanto estas coisas, mas é como se por momentos quase me perdesse por entre outras ondas rádio que se vão metendo pelo caminho. Ainda dão aquele “krrr” de quem até se ouve, mas não declama. Felizmente hoje em dia temos Spotify.
Acabo de saber que vou na próxima semana trabalhar para Montreal, no Canadá. Ai as voltas que a vida dá. Mas esta conto-te quando a processar, preciso de tempo para organizar as ideias.
Olho para as horas são 2:22 da manhã e claro que já comentámos isso. Respondeste-me “it’s on”. Está mesmo, então não está?
A vida tem sido de uma dureza dócil desde que a aceitei sem muito mais porquês. Sinto que este ano cresci várias vidas e hoje lembro-me melhor do que nunca da magia que é estar por cá. No entanto, estou cansada. Mas enfim, quem não está?
Amanhã escrevo-te mais. Boa noite Duki, estou off.
Gosto imenso de ti.
B.

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.