Só a justiça recupera a paz

Numa das nossas viagens à Palestina, estávamos dentro de casa, eu e a Diana, quando passou um avião e ouvimos uma explosão imensa. O chão tremeu, as janelas vibraram e nós em pânico não sabíamos o que fazer. Olhámos uma para a outra com cara de “Fodeu”. Escondíamos-nos? Abraçávamos-nos? Peguei no telemóvel e liguei ao Khalid. “O que se passa?? O que foi isto?! Está tudo bem contigo?”. Do outro lado, uma gargalhada. Deu-me nervos. Qual seria a graça? “Ah, não se preocupem… os Israelitas fazem isto para nos assustar, vêm libertar o ar dos aviões em treino aqui por cima”.

Como não percebo nada de aviões, não sei que tipo de explicação foi esta, mas por todo o tipo de massacre psicológico (e não só) com o qual já tínhamos sido confrontadas, automaticamente voltámos ao “safe mode” e respirámos.
Mas perdemos o ar várias vezes. Os intermináveis e infinitos checkpoints, as provocações nos colonatos ilegais, tivemos amigos presos, dois personagens do nosso documentário capturados, um deles ainda sem se saber bem porquê nem até quando.

Quando tremíamos de medo ao ouvir os tiros de armas automáticas no campo de refugiados, lembrava-me de todas as vezes que adormeci ao som de grilos e cigarras e perguntava-me como seria crescer num lugar assim.

De manhã, alguém nos contaria das detenções da polícia Israelita a meio da noite e lamentaríamos não termos conseguido filmar. Os humanos precisam de imagens para acreditar. Por isso é que se escolhem muito bem as imagens que se passam nas nossas televisões.

Já perdi a conta às vezes que ouvi gente discursar sobre liberdade. Ai a liberdade… Se imaginássemos o que é nascer e crescer em estado de lockdown permanente, falar de liberdade batia diferente.

Das quatro vezes que voltei da Palestina, a minha família já sabia. “Vens em silêncio outra vez, não é?, perguntava-me a minha irmã Xaninha aborrecida. “Porque é que ficas sempre tão estranha? Mais vale não ires!”.

A minha mãe, por sua vez, olhava o silêncio nos olhos e dava-me colo.

Até hoje me custa a crer que algum dia seja capaz de encontrar as palavras certas para tudo o que testemunhámos ali. As palavras têm tanto poder. Têm de ser bem pensadas, trazem com elas uma carga histórica e podem mudar o mundo. Podem ser desconfortáveis, causar embaraço coletivo. Mas faz uma diferença absurda chamar as coisas pelos nomes.

O meu pai, que sempre se informou muito bem pelas notícias, tinha dificuldade em receber as informações que eu lhe trazia do outro lado do muro. Eu sentia-me tão frustrada. Como é que eu lhe explicava que as palavras que ele recebe cá são esfregadas em lixívia? Como é que eu posso fazer sentir o terror que testemunhei e a pressão, o nível de stress e a tensão que vivi na pele ao atravessar fronteiras e interrogatórios invasivos? Como é que eu lhe explico que criei personagens e inventámos histórias e celebrámos de cuecas e soutien num quarto de hostel na Jordânia, o termos cumprido a missão com sucesso, sãs e salvas?

O silêncio perante a catástrofe é complacente. A alteração da narrativa é criminosa.
A colonização da Palestina começou muito antes da II Guerra Mundial abrir portas para uma necessidade urgente de encontrar casa para uma população massacrada. Não podemos compactuar com a disseminação de propaganda manchada de humilhação e sangue.

Vivemos até hoje um paradigma em que o poder e o dinheiro desculpam e pagam o silêncio perante um flagelo humanitário sem fim em nome do sionismo e de um Deus elitista.
A limpeza étnica dá-se seja pelos tanques, bombas, aviões, mísseis ou granadas. Do outro lado as pedras dos destroços que deixam pelo caminho. A diferença dos nossos dias? O povo tem telemóvel e o nível da propaganda é um estado declarado e está à vista de todos os que quiserem ver.

A colonização da mente entranha-se como o pior dos vírus e ainda assim os palestinianos resistem. Desde o século XIX. Mas não podem resistir sozinhos. Os crimes contra a humanidade exigem que a humanidade se una por justiça.
Já vai demasiado tarde, mas é agora ou nunca.
Está na hora de nos lembramos de uma vez por todas que somos todos feitos do mesmo.
Como diz o Mazin Qumsiyeh, só a justiça recupera a paz. 

Texto original publicado no Facebook a 11 de maio de 2021

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