Tão mais do que isso

Macedon, NY, USA

Eu divirto-me com os simbolismos das coisas que me acontecem na vida. 2018 começou comigo agarrada a uma sanita a vomitar sem parar, graças a uma paragem de digestão. Podia ser sido de bezana ou de aditivos, mas vai daí que este ano foi mesmo comida mal mastigada que me levou a passar o primeiro dia do ano inteiro numa cama de hospital. Fazia lá eu ideia que este seria o ano em que me dedicaria às limpezas.

Hoje fazem quatro meses que deixei de tomar antidepressivos. A medicação estava doseada para me ajudar no processo de quem lida com ansiedade crónica. Nunca cheguei a ter uma depressão mas andei por lá perto, uma vez que estas são condições que por norma se dão bem, lado a lado. Tomava medicação relacionada com a ansiedade desde os 17 anos.

Não é por acaso que não me têm lido. Pela primeira vez em muitos anos, decidi colocar-me em primeiro lugar e tomar conta de mim. Isso também me afetou a escrita.

Esta coisa de nos dizerem que temos de nos amar, que somos os nossos melhores amigos e blabláblá fica muito bem em posts e ilustrações bonitas, mas dar de caras com quem somos sem tretas e falinhas mansas, enfrentarmos os nossos demónios, as nossas fraquezas e estarmos disponíveis para cuidar delas a sério, isso é de uma coragem que eu, que achava conhecer-me bem, desconhecia por completo.

Os antidepressivos que o médico me receitou há anos, permitiram-me abafar os ataques de pânico, as tremuras e as insónias, mas nunca por um momento me ajudaram a perceber de onde vinha afinal todo esse arsenal de mau estar.

Este ano vivi ao máximo este processo de limpeza de relações, ambientes e padrões de pensamentos tóxicos. Encarei traumas, mudei hábitos e reconectei-me com partes de mim que já nem sabia existirem.

Crescer é difícil para crl, é uma constante derrapagem e desengane-se quem achar que vai ser uma volta de carrocel com unicórnios e algodão doce.

É um puto de um processo inacreditável de mutações e de aprendizagens contínuas, sim. É uma maré de aflições, de contagem de tostões e de planos adiados, sim. É vermos os nossos queridos morrerem, percebermos a nossa impotência e aceitar que não vai ser tudo como tínhamos imaginado. Pode tudo correr absurdamente mal,sim.

Mas caramba. E daí?
Estar vivo também é tão mais do que tudo isso.

No age for it

Sandra Jones was traveling the world in the 70’s when, randomly, ended up in Deià, right in the middle of the mountains in Mallorca. After all the places and countries that she had visited and experienced, she couldn’t leave this magical place. In the 70’s a wave of foreigners came to Deià and never left, artists from all around the world, hippies searching for meaning in their lives, families starting their stories from zero, all meeting in the same energetic point, still so active, still so wonderful. I’ve met Sandra Jones when I was looking for a gift to my mother.

She is living in Deià for ages and I ended up in her beautiful store. Her eyes told me more than she wanted to talk in the beginning, but soon she would tell me her story and how the love of her life, also from Australia, would pack everything to search for her and meet her in Mallorca when they were young. He stayed with her until two years ago, when he passed away. She still has a picture of her in the 70’s, with long hair and a free spirit, took by a foreign photographer that was around at that time.
When she was looking at it I could feel the nostalgia, she looked at me and said:

“I don’t really appreciate photos of me, but this one is special, you can feel my young spirit in this one”
I naturally answered, “but you are still young”.

She looked at me really straight in the eyes, smiled and said: “Oh yeah, that’s right. There’s nothing like youth my dear, and there is no age for it, but only a good photo can capture it.”
“I would love to show my people how beautiful you are, as well as your story. Can I photograph your youth then?”, I asked.
“I think we can make it”, she said.
And we did.

 

Palma ou tudo o que eu preciso

Palma, 27 de Abril de 2018

É sexta-feira, o sol está forte e já me enchi de protetor. As pessoas passam de chinelos e com sorriso que não deixa perceber se vivem cá e estão felizes porque chega hoje o fim da semana, ou se é porque estão de férias na paz do senhor. Palma é um enorme molusco escondido numa concha de turistas, recheada de uma energia que me intriga.
Estou na varanda da casa do Willian. Conhecemo-nos há cerca de dez anos, no Algarve. Eu e os meus amigos de Resende tínhamos um t1 alugado para oito pessoas e eram as nossas primeiras férias juntos fora da vila. Um grupo de miúdos de 16 anos em Portimão durante uma semana, tinha tudo para correr bem. E correu.

À porta da Catedral conhecemos um grupo de rapazes de Santa Maria da Feira que jamais esqueceria: o Willian, o Freitas, o Zé e o Pedro, quase todos com mais de 20 anos e com um andamento incomparável ao meu estilo de vida na altura. Chamavam-se Los Bandidos e tinham nos olhos tanto de malandros quanto de amor. Todos eles de coração bom, caras bonitas e olhos malandros. Na altura eu tinha o meu primeiro namorado e demoraria vários anos a alguma vez vir a experimentar a versão carnal de uma viagem.

De todos, foi o Willian e o Freitas que mantiveram mais contacto ao longo dos anos. Há umas semanas o Willian contou-me num pranto o desastre que havia aberto a passagem do Freitas para uma outra dimensão.

Quando escrevi no Facebook que procurava quem vivesse em Maiorca não quis acreditar que nos iríamos reencontrar uma década depois, mas agora ali estávamos os dois, a tomar o pequeno almoço na varanda enquanto lembrávamos aquela semana que nos parece ter sido já há duas vidas.

No dia anterior levou-me a jantar ao Calixto, nome do dono que serve às mesas a “melhor Paella de toda a ilha”. Falava devagar, com pronúncia maiorquina e com os dentes todos à mostra. Está na ilha desde criança, a família tinha negócio de supermercados e restaurantes, os pais dele decidiram ficar-se por Palma. As seis mesas cobertas com toalhas aos quadrados calham bem com a música que sai do rádio da cozinha. Há ali uma mistura de épocas condensadas numa esplanada cujos limites se desenham por inúmeros vasos que servem de base a plantas enormes. “Às vezes não sei se vêm cá comer porque ouviram falar ou se foi por curiosidade pelas plantas”, diz-me e logo completa “nem foi pensado, comecei a comprar plantas e tive esta ideia. Fica bonito, não acham?”.

Depois da sangria fresca e da Paella devidamente digerida, o Calixto ofereceu-nos um chopito tradicional com sabor a anis – sinceramente aquele aroma não me traz grandes recordações –  éramos já os últimos no seu canto familiar. O jantar ficaria por 20 e poucos euros a cada um, mas era jantar de boas-vindas, tudo bem. Brindámos, saímos e caminhámos até à cidade velha. Maiorca é demasiado peculiar, ora nos lembra as ramblas de Barcelona, ora surgem umas ruas de bares pequenos como em Vigo, ora surge um Benidorm ali do nada, com meia dúzia de grupos de ingleses em crise de meia idade e com níveis alcoólicos graves, mas que mesmo que quisesse, não consigo julgar.

Passeámos pela parte antiga da cidade, aí já me lembrava Salamanca. A Lua começava a encher e o reflexo fazia ver-se no Mediterrâneo pasmacento. A Catedral gótica, uma das maiores da Europa, impõe-se pelo nosso caminho.

“Como é que antigamente se construíam coisas destas tudo à mão?”

Ficámos em silêncio a admirar a vista. Eu não via o Willian há 10 anos mas é como se nunca tivéssemos deixado de ser os miúdos que se encontraram em Portimão. A presença dele era confortável e a forma como tratava as mulheres viria a mostrar-se encantadora.

Pelo caminho três rapazes cruzaram-se connosco. “São tugas, tenho a certeza”, disse-me. “Vocês são portugueses!”, gritou-lhes.

Eram três rapazes na casa dos vinte e poucos anos, dois deles acabavam de se mudar para a base daquela ilha. Também trabalhavam na aviação.

“É um bom sítio para se viver, estávamos cansados do Porto”, disse um deles. “Escolheram bem, esta ilha é qualquer coisa”, respondeu-lhes o Willian.

Embora eu não tenha vindo para esta viagem no mood de noite e como já não apanho uma bebedeira há 11 meses, não tinha muito interesse em sair ali, no entanto acabámos por ir até um bar tipicamente espanhol com música pop – todos sabemos que isso signidica reggaeton-  tipicamente espanhola. Já mais tarde, apanhou-se um táxi e fomos para casa.

Seria já ao outro dia que eu iria conhecer a Niko, eslovaca a partilhar casa com o Willian e um italiano, o Lucca, que também viria a conhecer um dia depois.

Alta, de corpo escultural e cabelos longos, andava de um lado para o outro com cestos da roupa. Montou a tábua de passar a ferro e começou a engomar roupa não só dela, como também deles.

“Passas-lhes a roupa a ferro?”

“Sim, não me custa nada e eles cozinham e eu não”.

Pareceu-me uma boa troca. Os olhos castanhos dela ficavam ainda mais rasgados de cada vez que se ria. Às vezes uma gargalhada saía mais alto enquanto olhava para o telemóvel. Não tardaria a aperceber-me que havia encontrado uma alma gémea, não só em relação à forma de estar na vida, como também no humor com que a encaramos.

A partilha de memes seria imediata, não tivessemos nós estilos de vida e maneiras de pensar semelhantes. Agora as gargalhadas passariam a ser em conjunto e em breve os rapazes lá de casa torceriam o nariz a esta união feminina tão forte e não planeada.
Durante a tarde iria fazer o meu primeiro e único dia de turismo por Palma. Fomos até uma praia de água limpa e transparente, bem como Cabo Verde me havia habituado e acabei por me deixar dormir ao sol.
Vimos a que horas seria o pôr do sol, mas antes o Willian quis-me mostrar a melhor vista para Palma, que ele descobriu por “acidente”, uma das vezes em que se perdeu pela ilha. No topo do lugar havia um santo que não cheguei a perceber qual era, mas parecia estar a olhar pela cidade.

A Niko veio connosco de carro até Sa Foradada. Aluguei logo no primeiro dia um Fiat Panda no Royal Rent, em Camí de C’an Pastilla 10, um renting car de um senhor maiorquino, que me fez um super desconto assim que lhe perguntei com um choradinho simpático em espanhol “no me puedes hacer un descuentito? Soy una chiquitita portoguesa, no tengo mucho diñero na verdad”.

O Pandita aguentou-se mais que bem, andei os dez dias a conduzi-lo pelas montanhas e até em dias de tempestade não me deixou ficar mal. Sa Foradada viria a mostrar-se um dos sítios mais bonitos que vi na vida, com um miradouro inacreditável para um dos mais extraordinários pores do sol que alguma vez vi. O sol iria descer lentamente, as pessoas que ali se encontravam partilhavam o silêncio de quem aprecia a grandiosidade da natureza que nos rodeia e quando finalmente se põe o sol, como quase um ritual, costuma aplaudir-se o início de um novo descanso para a estrela que nos ilumina, pelo menos por mais um dia. Nesse dia havia nuvens na linha do mar em que o sol se punha. Não se bateram palmas, manteve-se o silêncio.

Como a fome já apertava e o frio também se fazia sentir, comemos por ali mesmo em Valdemossa. A comida estava deliciosa e não podia esperar mais por aquele sofá incrível na sala do Willian.
Há aqui uma sensação estranha de familiariedade com esta ilha, não sei o que me espera ainda pelo resto da viagem mas só pode ser algo bom. Afinal de contas, assim que peguei naquele Pandita e o conduzi, liguei a rádio e bem alto a primeira coisa que ouvi foi um sonante Roy Orbison a cantar:

Anything you want, you got it
Anything you need, you got it
Anything at all, you got it
Babyyyy

E meu deus… I know I do.

A todos os loucos que vão

26 de Abril de 2018

Estou a caminho de Mallorca, vim de Lisboa até ao Porto de boleia com o meu primo Fernando, que também vai tirar uns dias só para ele, mas em Barcelona.

Vivemos tempos de alegria. Chegou a primavera, o sol começa finalmente a aparecer e sente-se cada célula dos nossos corpos a celebrar a natureza. Sigo para a viagem menos planeada de toda a minha vida. Eu sei que já comentei o quanto adoro viajar sozinha, sem expectativas ou planos, mas desta vez abusei, abusei ao ponto de, pela primeira vez, sentir stress antes de me mandar para um aeroporto.

Cheguei duas horas antes do voo, tive tempo para ver tudo e mais alguma coisa, comprar umas prendas e comer descansada. Quando indicaram a porta de embarque desci as escadas e estava mais do que preparada para me afiambrar à fila prioritária, já que desta vez uma promoção xpto me deu essa regalia.
É precisamente nesse momento que me apercebo de que não tenho o cartão de cidadão. Socorro. Tirei tudo da mochila até que me lembrei: “tirei-o do bolso na zona de segurança”. É muito cansativo viver neste corpo, admito.
Desatei a correr até à zona dos raio-x e pedi aos seguranças que confirmassem se não teria lá ficado caído um cartão de cidadão.

“Não há aqui nada”.

Bonito. Vou perder o voo. Voltei a revirar a mochila, a apalpar-me toda, não acredito que vou perder o avião. Respira. Não faz sentido stressar, tudo vai ficar bem, não faz sentido perder o avião. Mais uns apalpões e reviravoltas e, quando faltavam cinco minutos para a porta fechar, um segurança veio a correr enquanto berrava “VAI VAI VAI”. E eu fui. Então não fui. Já não corria assim há anos.

Como os portugueses são péssimos com horários fui mais do que a tempo de embarcar na mesma exata fila interminável de sempre, já que a única prioridade que me ocorria era entrar no avião.
Toda a minha vida sou avisada que não posso colocar-me em situações de stress, mas não há médico nenhum neste mundo que algum dia venha a perceber que o meu ritmo de ser e estar é o caos em si mesmo. Daí que no meu quarto haja um quadro mal emoldurado de um Bob Dylan jovem a fumar um cigarro com a citação “I accept chaos, I’m not sure whether it accepts me.”

Para explicar esta viagem tenho de regressar a agosto do ano passado, quando conheci uma pessoa que me escancarou as portas que eu já tinha semi abertas, mas que não sabia como as explorar.

Uma das coisas que mais me fascina em relação à vida é o facto de sentir que cada pequeno passo que damos está intimamente ligado com os tropeções e saltaricos que vamos dar a seguir. Somos pequenos grãos de areia que pouco sabemos sobre o significado de tudo isto que nos rodeia e nos ultrapassa, mas se estivermos atentos aos detalhes, não é difícil perceber onde descansa a magia das coisas.

No verão passado estava prestes a mergulhar num buraco negro, no jornal em que trabalhava era altura de férias, a equipa era ainda mais pequena, os incêndios tinham-nos marcado para o resto da vida e não parava de receber chamadas com dados e informações sobre todos os possíveis erros que haviam sido cometidos por diversas frentes.
Crescemos rodeados de medos, levamos todos os dias com um banho de desastres, sangue, intrigas. Os media tornaram-se uma constante lembrança do pior que há no mundo e é-nos demasiado fácil tomar o “dark side” como garantido.

Mas não é o lado negro das coisas que me desperta. Cresci rodeada de histórias e experiências que me mostraram que a vida tem essa face estranha, que é possível sentirmos o mundo com uma agonia desmesurada e fecharmo-nos na nossa concha até que alguém nos diga ao ouvido: já passou, podes voltar.

Essa é provavelmente a fase mais difícil de quem entra na idade adulta, a altura em que nos tiram o lençol branco que nos cobria do pó até então e nos dizem “bem-vindos ao mundo”. A partir daí temos duas hipóteses: ou escolhemos cobrir-nos de pó e deixar que o bicho nos deixe os ossos carcomidos, ou decidimos aceitar que haverá sempre pó que nos cubra mas que o podemos sacudir sem alergias, sem obstipações, como um ritual de limpeza que terá de ser feito para o resto das nossas vidas.

Esta é uma decisão que nos exige coragem, entender que o caminho não vai ser sempre a subir, que vamos cair um milhão de vezes e esfolar o raio dos joelhos muitas mais vezes do que era suposto, mas que podemos sempre começar de novo e vai sempre poder ser melhor do que foi.

Era agosto e eu tinha menos do que um tostão no bolso, como é já habitual, mas tinha também uma vontade maior que eu de sair de Lisboa e ir a correr até aos que me são tudo.
Trabalhei quatro semanas seguidas para poder tirar as folgas dos fins-de-semana e decidi ir ter com alguns dos meus melhores amigos ao Sonic Blast, em Moledo.
O SB é um dos festivais mais pequenos do país mas é o meu preferido. Para não falar da localização entre o mar e um enorme pinhal, tem um cartaz incrível e um ambiente super descontraído atraído pela música, mais do que qualquer outra coisa.

Com a pressa de me fazer à estrada, nem sequer comprei bilhete para o festival. Nunca na vida teria problemas em comprar bilhete à porta, por isso foi só pegar no carro, em alguma roupa e fui. Sem tenda, comida, nada.
A Rita tinha feito match no tinder com um australiano que, pelos vistos, ia ao mesmo festival que eu e obviamente pedi-lhe que lhe dissesse que havia lugares vazios e que seria melhor que o mel dividir despesas de gasolina e portagens. O Adam lá entrou em contacto comigo e perguntou se uma rapariga australiana que ele tinha acabado de conhecer também podia ir. Que maravilha.
Quando chegou a hora de nos encontrarmos, lá estavam os dois à minha espera. Ele alto e magro, vestido de preto, sem nada que me chamasse muito a atenção. Ela de cabelo azul, óculos e braços todos tatuados, com uma t-shirt dos Black Sabbath, teve toda a minha atenção assim que a vi.
Como ia conduzir durante horas com dois desconhecidos, achei por bem assim que comecei a viagem começar por meter conversa e perguntar como que raio estavam a caminho de um festival que nem os portugueses sabem que existe.

A Katie vinha da Australia de propópsito para o Sonic Blast e depois ia aproveitar para conhecer o país, wow. O Adam estava a tentar encontrar trabalho por cá. Perguntei-lhes o que faziam e foi aí que se deu um clique que mudaria para sempre a minha percepção das coisas.
O Adam respondeu-me que era project manager, sinceramente não percebi muito bem o que é que ele pretendia encontrar por cá. Mas quando chegou a vez da Katie dizer qual era a sua profissão o cenário mudou completamente.
“Sou astróloga”.

Ao longo do meu caminho já me tinha cruzado com algumas pessoas especiais, com capacidades que pensamos não estar ao alcance de qualquer um, mas como assim uma rapariga da minha geração se apresenta como sendo astróloga, sem qualquer embaraço ou constrangimento? Deu-se um clique e a partir daí tudo o que viria da nossa amizade seria um longo caminho de partilhas e ensinamentos. A Katie viria a mostrar-se imensamente paciente com a minha inconsolável curiosidade e foi graças a ela que acabei por ler e tornar-me seguidora de várias pessoas que partilham na internet os seus conhecimentos e sensações.

Portugal tem uma cultura mística antiquíssima, mas a não ser o pessoal da treta e horóscopos humilhantes em revistas, por norma ninguém assume publicamente este tipo de gostos, capacidades, dons- não pelo menos que eu estivesse consciente disso, até então. Há sempre uma “bruxa” escondida em cada aldeia, alguma avó com conhecimentos para lá da vida, um tio que lê cartas, mas é sempre em tom de segredo, de medo, ou não tivesse havido sempre público para a queima destas pessoas em praça pública.

Desde que me conheço que o mundo do oculto e as pessoas diferentes me atraem. Por isso, foi mais do que natural que aquela viagem fosse só o primeiro nó de uma enorme amizade que nasceria a partir do pretexto de tudo isto.
Entretanto cheguei ao festival sem bilhete, feliz da vida por reencontrar os meus amigos. Tinham-me arranjado tenda onde dormir, a Mariana tratou de tudo e ficámos pela sombra fresca do pinhal enquanto toda gente se preparava para os concertos. Podia finalmente acender um e respirar o descanso de estar entre a natureza.

“Já foste trocar o bilhete por pulseira?”, perguntou-me o Souto.
“Não, tenho de comprar bilhete ainda”, respondi com a maior calma de sempre.
“Os bilhetes esgotaram Balolas” – disseram-me todos em tom alarmado. 

Ri por dentro. Como assim esgotados? Foi a primeira vez que fui para um festival mandada à campeã e não podia ter tido mais pontaria. A minha solução nem sequer foi pensada, estava tão feliz por estar ali com eles que só quis aproveitar ao máximo o que me fosse possível experimentar.

A única coisa que separa o skatepark dos concertos é uma lona verde, que não só nos deixa ver lá para dentro, como também não interrompe minimamente o som que nos chega sem problemas. Foram dois dias incríveis, eu não cabia em mim de felicidade por poder desfrutar de tudo sem qualquer stress, chamada de trabalho, nuvem negra que me chovesse em cima.
Os meus amigos estavam mil vezes mais preocupados com o facto de eu não ter bilhete do que eu e, o que é certo, é que por ter de ficar à porta, reencontrei dezenas de pessoas lindas que já não via há anos e com quem não falava há mais tempo do que queria admitir. Entretanto vinham ter comigo dezenas de pessoas em pânico à procura de bilhetes.
“Não tenho, desculpa; na verdade também preciso de um” dizia antes de levar logo com um ar muito surpreendido seguido de um “E estás aqui sentada na boa?”.

Na última noite, precisamente antes da banda que eu mais queria ver, uns desconhecidos apareceram com o João, um amigo de quem gosto muito, e disseram que tinham forma de me deixar entrar. O que é certo é que entrei. Não podia estar mais agradecida à aleatoriedade e abundância que me rodeiam, afinal de contas, rendi-me às evidências para aceitar o que as circunstâncias me permitiam viver.

Não sei se já passaram por algum momento assim nas vossas vidas, mas este seria o primeiro de muitos momentos de rendição completa ao que o universo, a vida, o que lhe quisermos chamar, têm para oferecer, numa aceitação completa do que vem, com alegria e gratidão.

Mais tarde voltaria para Lisboa, depois de uns três dias bonitos com os meus pais em Afife e voltaria a encontrar a Katie. Como não sabia nada do panorama da astrologia em Portugal perguntei a um amigo e ele acabou por me falar do Luís Resina, que viria a conhecer e a entrevistar poucos dias depois.

Tenho vindo a aperceber-me que a minha missão é a de escrever e contar todas estas histórias, apresentar ao mundo todas estas pessoas que a sincronicidade e a sorte trazem até ao meu caminho, para que mais pessoas conheçam e se sintam inspiradas a procurar o tal bright side que nos querem fazer acreditar ser quase impossível existir.

É graças à Katie que hoje viajo para Mallorca, onde me aguarda um sofá oferecido pelo o Willian, amigo que conheci há 10 anos e com quem nunca mais estive, para encontrar uma das mentes mais fascinantes que me foi apresentada pela Internet, por indicação dela.

Kaypacha, um norte americano, astrólogo profissional há mais de 40 anos, que dedica-se a descrever as mudanças da humanidade através do reflexo dos movimentos dos astros e do cosmos. Assim que vi o primeiro vídeo dele soube que teria de o conhecer um dia e não descansei enquanto não fiz por vir encontrá-lo.

Sem bilhete para o curso que ele veio dar, sem muito tostão no bolso, só com um bilhete de avião e uma rendição completa ao que a vida me quiser oferecer, vim até Mallorca para perceber quem é, afinal, este tal Kaypacha.

Quando cheguei a Palma e expliquei ao Willian o que me trazia a reencontrá-lo tantos anos depois, de copo de vinho na mão e Paella do Calixto à frente, os olhos azuis dele estavam arregalados e a boca semi-aberta.

– És louca. Vais encontrar-te com ele onde?
– Nas montanhas. Queres vir? Ajudas-me a segurar na câmera.
– Ai. Olha que eu também sou maluco.
– Anda, vai ser uma experiência bonita.
– Já estou arrepiado. Vá, um brinde então.
– Incrível. Brindemos então: a todos os loucos que vão.

A fila de cantina

Quando o vi na fila da cantina da faculdade, éramos putos de 18 anos, ele estava com ar sisudo, sobrancelha franzida, casaco de cabedal castanho. Olhava para o nada, à espera da vez dele e já tinha despertado a atenção do mulherio todo, era novo no curso. Fui ter com ele e perguntei-lhe se era sempre assim tão sério. Ele sorriu. De tão má que sou a fazer apostas não podia ter feito pergunta mais ao lado, tinha acabado de conhecer aquele que para sempre inventaria as mais simples formas de me desfazer em riso. Éramos miúdos de poucos anos e as nossas cores nunca mais se desgrudaram.
Nos corredores chegaram a pintar romance, mas eles sabiam lá da existência dos amores sagrados.
Passeávamos agasalhados pelas ruas do Porto quando toda a cidade dormia, ainda não tinha nascido a vida noturna durante sete dias da semana, àquelas tantas só os vagabundos e os que dormem na rua se cruzavam. Foi-se embora do curso que abominou e cada um tem seguido o seu caminho, sempre de mãos dadas pelo trilho dos que têm mais perguntas do que respostas. É que gostávamos tanto de poder entender o mundo…Os anos passam, as dúvidas multiplicam, não sabemos nada. Ao certo não se chega a entender ninguém. “É um mundo estranho. Somos muito estranhos” “Enfim”, costuma ler-se nas legendas dos nossos verões. Será que antigamente também era assim? Hoje de manhã apareceu-me duas horas de curvas e contra-curvas depois, em Resende, com mais uma prova de que as almas gêmeas existem e nem todas são desenhadas para se beijarem na boca. Há amizades que são sagradas. Esta tarde, comíamos o bolo de chocolate que a minha mãe acabava de tirar do forno enquanto nos ouvia a trocar conselhos sobre dilemas do que mais amamos na vida: escrever. Eu tentava explicar-lhe o quanto admiro e me perco nos contos que ele imagina e num momento de silêncio a minha mãe perguntou-lhe:
-Foi por isso que chegaste a estudar um ano de jornalismo,então…por gostares tanto de escrever?
Ele riu-se enquanto acabava a garfada que ainda fumegava, deu um gole no chá verde e respondeu com voz de alma velha:
-Não, não de todo. Com o tempo apercebi-me que na verdade eu só fui mesmo parar àquele curso para conhecer a sua filha, naquela fila de cantina.
♥️🛸

 

Astrologia. “Esta civilização não tem pernas para andar”

As civilizações antigas consultavam os astros como fonte de sabedoria. Nos dias de hoje também há quem se dedique ao estudoda astrologia, e Luís Resina é um dos mais antigos formadores nesta área. O i foi tentar perceber como é, afinal, viver à luz das estrelas

Teve uma educação cristã, mas aos 12 anos descobriu a filosofia hindu. Daí, partiu para o estudo da história das religiões. Ao i fala sobre a era em que estamos a entrar, a mesma que trouxe a independência da América e a Revolução Francesa. Filósofo, especialista em religiões do mundo, apaixonado por Fernando Pessoa e casado com a astrologia. Luís Resina é um homem de vários mundos, palavras ponderadas e tom de voz de quem pensa muito antes de falar. Quando era jovem encontrou o mestre dos Poetas e através dele descobriu o das estrelas. Embora reservado, falou ao i sobre uma sociedade que “já não tem pernas para andar”.Encontramo-lo no seu gabinete, em São Bento, em Lisboa. Está uma manhã fresca, há luz em toda a sala. A música clássica é desligada e recebe-nos mesmo em frente a um enorme cartaz da árvore da vida. Numa prateleira, vê-se perdida uma das suas edições do “Astro Biografia de Fernando Pessoa”, livro que deu a conhecer o lado espiritual escondido do poeta português, depois de ter descoberto horóscopos e cartas trocadas entre o poeta e várias personalidades da época.

Como era o Luís em criança? Já sentia curiosidade pelo misticismo, já dava pistas de ligações a esse mundo?Bom, as minhas memórias do mundo esotérico começam por volta dos 13 anos. Tive uma educação cristã, digamos assim. Numa vertente católica e outra protestante. E bebi, portanto, dessas duas fontes do cristianismo. Por volta dos 12 anos vem-me parar às mãos, já não me lembro como, um livro de filosofia hindu: “As catorze lições de filosofia yogue”. E eu assimilei muito bem aquela filosofia e foi a minha primeira crise existencial de pôr de lado a educação cristã que tinha recebido e abraçar aquela filosofia que falava do karma, das várias reincarnações do universo. Lembro-me de em jovem ir às livrarias e os livros vinham ter comigo, ou eu ia ter com eles, não sei. Havia ali uma sincronicidade, nunca procurei deliberadamente um livro, nós encontrávamo-nos. E nesse sentido houve uma formação, primeiro literária, mais tarde experimental.

Quem eram os seus ídolos, os mestres?
A primeira imagem de mestre que tive, se é que lhe posso chamar isso, foi Krishnamurti. Tinha 17, 18 anos quando comecei a ler as palestras dele pelo mundo inteiro, que eram transcritas. Identifiquei-me muito com ele. Mais tarde, ao estudar astrologia, apercebi-me que estava num trânsito de Urano por cima do meu Sol, que corresponde a uma fase de individualização, muito semelhante ao percurso de Krishnamurti, que rompeu com escolas, fazendo o seu percurso muito sozinho mas com um diálogo e uma exposição virada para o homem e para o coletivo. E eu, naquela altura depois do 25 de abril, também me afastei completamente, porque tinha uma atividade política, revolucionária à qual estava ligado.

Estava ligado a que movimento?
Era o Grupo de estudantes do PAV que depois deu origem a vários movimentos políticos.

Que idade tinha?
Uns 16, 17, por aí. A seguir ao 25 de abril larguei a política e comecei a ler muito o Krishnamurti, a sentir que era muito por ali que eu queria ir. É nessa altura que me cruzo também com outras filosofias, li muito o “Tao Te King”, que me tocou muito com a filosofia “zen”. E depois, como sou um amante de filosofias e religiões do mundo, comecei a estudar a História das religiões. É curioso que estava orientado para seguir Economia e Gestão na universidade, mas de um momento para o outro descubro a Filosofia e a Psicologia e penso: “Não. Tenho de mudar”, e mudei de linha e segui a Filosofia.

Há alguma ligação da astrologia às religiões do mundo? Por exemplo, no cristianismo vemos o nascimento de Cristo anunciado por uma estrela.
A astrologia é muito mais antiga do que o cristianismo. Mas sim, sempre houve uma sabedoria estelar, que não era conhecida como a astrologia que conhecemos hoje. As tradições das grandes civilizações antigas, desde o Egipto aos Incas, Suméria, Astecas, Maias, todas elas tiveram um culto ligado aos astros.

Em pontos totalmente dispersos do planeta e sem comunicação entre eles, não é?
Aparentemente, pelo menos. Porque nos seus livros Zecharia Sitchin defende que houve conexões.

Telepáticas?
Não. (risos) Físicas mesmo, mas para falarmos nisso temos de integrar um outro tipo de conhecimento histórico de que não se fala na escola. Na minha época quem falava disto era o Robert Charroux, que era um historiador de mistérios e falava de civilizações antigas, das civilizações dos gigantes, conceitos que se encontram na nossa mitologia greco-romana, mas não só. Um conjunto de descrições mitológicas de seres divinos, que segundo o Zecharia Sitchin teriam sido encontros com seres extraterrestres que teriam vindo à Terra no passado e ajudado algumas civilizações a evoluir em diferentes pontos do planeta.

Como se vive com este tipo de conhecimento num mundo consumista, cético, desligado? Como é que o Luís se adaptou ao mundo convencional, alguma vez duvidou de si, da sua saúde mental?
(Risos) Por acaso não. As minhas percepções sempre foram tão fortes e claras, com tanto feedback positivo, que nunca tive essa preocupação. Também não andamos aqui sozinhos e pelo caminho vamos encontrando pessoas que sentem as mesmas coisas, que partilham das mesmas sensações. Mesmo em relação a coisas com que eu me identificava, que eu sentia, o feedback relacional não só as confirmava como me dava força. As intuições, quando vamos a verificar que em termos de nível sensorial ou de comunicação, vão ao encontro à realidade, encaixam umas nas outras, é muito curioso. E então com o tempo sempre me fui afastando cada vez mais da opinião pública, do pensamento comum. Ou seja, aqui sou eu que me marginalizo em relação à cultura vigente. O René Guénon, por exemplo, que escreveu “A Crise do Mundo Moderno” marcou-me muito na altura, por colocar em causa todo o processo de evolução da história do pensamento ocidental.

Alguém identifica, em algum momento, uma desconexão do ser humano a esse tipo de culturas ancestrais?
Há várias visões. Vários autores consideram que isto é muito mais remoto, que não estivemos sempre ligados a esse conhecimento. Esse desvio é visto, por exemplo na instituição da Igreja Ortodoxa Romana com Constantino, no século IV em relação ao Cristianismo.​

As pessoas que se dedicam ao estudo da astrologia têm alguma ideia de quando terá começado este estudo? Qual foi o ponto em que os homens começaram a tentar tirar conhecimento sobre eles próprios e o que os rodeava através das estrelas?
A contemplação estelar faz parte da natureza humana. Desde as civilizações totémicas, mais primitivas, que já deviam olhar para o céu com curiosidade. O céu estrelado faz-nos sonhar, ter uma dimensão com o todo e as religiões começaram com adorações estelares. As primeiras foram lunares, com cultos à Lua, depois surgiram as solares.

Qual era a principal diferença?
A adoração à Lua tem que ver com o culto dos antepassados, está relacionada com as então civilizações totémicas. As civilizações mais vitalistas começam a adoração ao Sol como astro-rei e doador de vida. Há realmente uma sequência que já vem lá de trás. Mas isso leva-nos a muitas questões quanto à origem do Homem e tudo o que com ele está relacionado. Há realmente teorias que nos veem como civilizações estelares, o que significaria que estamos aqui apenas de passagem. Mas isso leva-nos a outros mundos e a muitas outras questões.

Há povos indígenas que desenvolveram técnicas e medicinas cujas receitas são vistas e contadas em lendas como tendo sido oferendas de outros seres. A passagem do conhecimento de ferramentas para abrirem determinadas “portas”.
Toda a tradição antiga é baseada numa tradição oral, num relacionamento que hoje chamamos de mestre-discípulo, em que todo o conhecimento era passado para ser um conhecimento-vivência e não um conhecimento teórico. As civilizações antigas não valorizavam tanto o intelecto como hoje em dia. Então era um conhecimento vivido, que era transmitido pelos ancestrais, que também consideravam ter recebido esse conhecimento dos deuses. O poder divino encarnava na terra como passagem de testemunho, toda uma ritualização. Hoje o conhecimento é todo banalizado. Temos um mundo de acesso à informação mas com banalização. As palavras tinham poder, os alfabetos eram considerados sagrados, por isso havia uma relação muito estreita entre a palavra e a ação. Havia poder nesse sentido.

Somos uma sociedade que banaliza a palavra?
Somos porque perdemos essa relação da palavra com a alma, desenvolvemos uma civilização desalmada. Então, nesse sentido, intelectualizamos tudo, racionalizamos tudo, estamos a querer ser o espelho do Iluminismo, do século XVIII.

Era uma das minhas perguntas, se considera que estamos a reviver o Renascimento e o Iluminismo.
Sim, agora estamos maravilhados com a tecnologia, e a tecnologia como razão iluminada. É a tecnologia e o capitalismo selvagem. E estas duas ligações não respeitam a natureza essencial do homem. Nós vivemos com base nestes dois princípios.

Qual é a natureza essencial do Homem?
A natureza essencial do homem é a ligação profunda com a vida. E a vida tem múltiplos aspetos em que a racionalidade é só um de muitos.

Mas somos uma sociedade bastante cansada da vida, não somos?
Exatamente porque passámos a ser autómatos, cada vez mais aproximados das máquinas e deixámos de viver. A criatividade vai-se embora porque funcionamos muito mais com automatismos.

Várias culturas, desde os Maias aos Incas, passando pela China, viam estas tendências do Homem como cíclicas. Paralelamente estamos ou não a entrar também numa era de Iluminismo espiritual?
Percebo a pergunta e de certo modo estamos. Sem dúvida nenhuma, até porque em termos de energia, todos os astros do sistema Solar estão a ser bombardeados por aquilo a que os Maias chamavam alinhamento galático -aliás uma série de outros povos descreveram o mesmo alinhamento, que tem que ver com alinhamento com o centro da galáxia que se dá de 26 em 26 mil anos. Neste alinhamento há uma oportunidade incrível de recebermos outro tipo de energias e das pessoas acordarem e despertarem para uma outra realidade. Por isso, simultaneamente estamos a assistir a dois fenómenos. Um é o despertar espiritual das pessoas e o outro ainda é do velho paradigma, que tenta suster uma sociedade e civilização que já não tem pernas para andar. Por isso estamos numa encruzilhada.

Precisávamos de um botão para reiniciar.
Exato, um “turning point”. Mas por acaso estamos a entrar numa era de Aquário, que começou com a independência dos Estados Unidos da América e com a Revolução Francesa.

O início da História Contemporânea, portanto.
Sim, exatamente. E que foi mais desenvolvida na década de 60 do século XX e que está cada vez mais a penetrar no âmago destes grandes ciclos. Há que ter em conta que uma era de Aquário dura 2160 anos, e a época de transição são cerca de uns 360 anos…O sistema solar está a dar uma curva em relação ao movimento de translação da Via Láctea e estou até a lembrar-me de uma autora que fala da era da luz cósmica. E essa luz está em vias de entrar cada vez mais e acelera esse processo. Mas nós perdemos essa tradição de olhar para o céu.

As luzes das cidades também não ajudam.
Pois, mas os programas para a astronomia ajudam. Por exemplo, como também saio pouco da cidade, apesar de até gostar muito do campo e da natureza, dou uns passeios aqui à volta por Sintra e tal, mas quando estou na cidade olho através de uns programas. A tecnologia também pode ser utilizada como ferramenta de conexão com o Homem, não para o escravizar, mas para o expandir do ponto de vista da consciência. E se olharmos através de um programa astronómico, o que vemos neste momento se pusermos na linha do programa o horizonte do local? Olhando para o céu vemos o ponto vernal, que é o início dos anos para os antigos, à volta de 21 de março, que é o cruzamento da elíptica com o Equador, em que se vê a constelação de Aquário a começar a ascender e a constelação de Peixes a começar a cair no horizonte. Uma a afastar-se e a outra a subir, uma a dar lugar a outra, como num rio em que há águas que entram e dão lugar a outras que saem em simultâneo. E isto é uma transição de eras e claro que há fenómenos fortíssimos.

Pode dar um exemplo?
Olhe, há dois mil anos, quando o cristianismo começou, também se deu a queda de Roma, por exemplo. Houve uma revolução bastante forte e o cristianismo introduziu um novo conceito que é a importância do homem, que traria como consequência a abolição da escravatura. O homem até então não valia, naquela época o cristianismo fez pontes entre os vários seres. E nós ainda nem fizemos a síntese da era de Peixes. Estamos na última fase deconfluência da era de Peixes, com a entrada das energias de Aquário.

Li que a astrologia fala em era de trevas, nessa tal era de peixes.
Mas não foi só trevas. Teve o lado sombrio e o lado luz. Era de dois grandes avatares: Jesus e Buda. O cristianismo e o budismo fazem parte desta era como fonte de ligação entre todos os seres. Esse lado da solidariedade, do ver o outro como um irmão. Isso faz parte do melhor da era de Peixes. O lado sombrio é o lado dogmático, das crenças que as religiões trouxeram de uma forma mais sectária e criou o materialismo de hoje. O materialismo que se desenvolve depois do século XVII, XVIII, mais especialmente no século XIX, em que se desenvolve o positivismo, o materialismo histórico e dialético que se desenvolvem em contrapartida ao dogmatismo religioso. É a sua cara metade, só as expressões é que mudam. A Igreja era o ópio do povo.

Aquela época que falou dos anos 60, em que há a vaga os hippies. Houve realmente algo ligado à astrologia, ou foi só uma moda?
Há sempre uma corrente de moda. Quem estuda astrologia mundial como eu sabe que há momentos históricos fundamentais e a década de 60 foi um deles. Porquê? Porque em termos astrológicos houve logo no início da década uma lua nova com um eclipse muito forte em Aquário onde estiveram sete planetas conjuntos em aquário. Saturno, Júpiter Marte, Mercúrio Vénus, Sol, Lua e os nós lunares também, um em Aquário, outro em Leão. E isto realmente abriu aqui um novo ciclo no século XX –  foi a época mais revolucionária desse século. Não só em mudança de costumes, mas também a década em que o Homem foi à Lua, do Maio de 68, das grandes revoluções da arte, da música. Uma procura de um novo modo de estar que já tem que ver com a era de Aquário. Eu pertenço a essa geração e lembro-me que nessa década pensava “bom, a tecnologia a desenvolver a olhos vistos, o homem vai à Lua em 69, isto no final do século a sociedade vai estar tão transformada que nós já nem andamos em automóveis”. Era o que se pensava na altura, que ia haver uma revolução.

Os anos 2000 eram o futuro. Até a cultura pop era toda futurista.
Claro, já vivíamos a ficção científica. Estávamos a andar nas naves que tínhamos visto no cinema. Víamos a tecnologia como ao serviço do crescimento do Homem, a exploração espacial, era tudo fantástico.

Mas estagnou.
Começaram as guerras, do Vietname à Guerra Fria, as grandes desigualdades, muito no exterior. Vamos para Marte, vamos não sei para onde, mas sem resolver os problemas internos, sem procurar soluções para os da Terra. De que vale pensarmos nos recursos que podem estar lá fora se não resolvemos o que temos aqui na Terra? Primeiro há que apaziguar o que se passa aqui.

Somos um bocadinho como aquela tribo do filme “Os deuses devem estar loucos”? Acha que é uma metáfora atual para a nossa sociedade e o uso que damos à tecnologia?
Esse filme… Os deuses que enviaram a Coca-Cola.

Exatamente, uma garrafa de coca-cola destruiu a harmonia de uma tribo inteira, em que todos lhe viam diferentes usos e todos a queriam.
Pois a tecnologia tem de estar ao serviço da comunidade, do homem. Não pode ter vindo para desequilibrar isto tudo.

A religião e a ciência tendem a ser para sempre inimigas. Mas onde se encaixa a astrologia? É uma arte? Uma ciência?
Inimigas aparentemente. Numa era de Aquário não podem ser. Muita gente fala em astrologia sem sequer perceber do que se trata. Já por causa disso eu agora tendo a chamar tudo isto “Astrosofia”. Um termo que diferencia o que já todo o senso comum acha que conhece sem conhecer. A astrologia, tal como a conhecemos do ponto de vista público, começou com os jornalismo francês no início do século XX, que começou com o jornal francês que era o L’horoscope. Em Grego Horóscopo quer dizer signo ascendente, que está a nascer no oriente quando a pessoa nasce. Isso de uma pessoa fazer previsões solares, é uma invenção dos media.

Foi uma forma de ridicularizar?
Sim. Uma forma de tornar tudo isto entretenimento.

As pessoas têm medo de falar destas coisas? Sente que se ridicularizou a temática e as pessoas que veem o mundo com esse olhar estelar?
Claro. Funcionou bem.O que aconteceu à astrologia está acontecer também com o sistema político, científico e religioso, as pessoas estão cada vez mais a consciencializar que nos contaram uma outra história. A astrologia antigamente estava sempre presente nos homens de conhecimento. Só as pessoas cultas tinham acesso a dedicar-se à astrologia.

Como os reis que pediam conselhos das estrelas?
Começou a dar-se esse uso da astrologia mais mundano ainda na Suméria. No Egipto estava mais ligada à astronomia e à religião estelar. O que significa que os astros serviam para canalização energética e só interessava o futuro dos Faraós, o do povo não interessava para nada. Essa individualização da astrologia é um conceito moderno, comparativamente às civilizações antigas. A astrologia individual, tal como a filosofia, começa na Grécia. A Grécia é a herdeira da tradição Suméria e Egípcia. Em Alexandria, todos os saberes herméticos se fundiram, a celebre biblioteca de Alexandria, que foi incendiada, tinha essa conjugação de  todo saber antigo. Enquanto o Alexandre o Grande, na Grécia, fez a sua expansão do império congregando os vários cultos e religiões em cada uma das regiões respeitando esses costumes, quando ele morre começam os sectarismos. Dando-se início a uma guerra de crenças.

Há alguma missão para cada ser?
Isso é uma questão semelhante à que uma vez levantaram a Einstein à qual ele respondeu “Deus não joga aos dados com o Universo”. O que é uma metáfora interessante. Dentro da minha percepção da vida, existe uma lei que se chama “Lei da Sincronicidade” que diz que nada acontece por acaso. Há sempre uma relação de sentido ou significado presente em cada acto. Logo, o acaso é apenas um esquecimento nosso de que algo deixou de ter sentido.
Mas há um destino? Nós temos em nós o livre arbítrio, não é?
Claro que há um destino, se não houvesse destino não havia existência física nem material. Se o Universo começou a expandir num determinado momento, se há um percurso, se há um ciclo cósmico, isso é um destino. Se somos filhos do universo, todos temos um destino. Podemos pensar “Ah o universo aconteceu ao acaso”. Isso é apenas uma visão materialista. Mas mesmo que tenha acontecido ao acaso, para mim é um acaso que significa tudo.
O Nietzche diz que deus está morto e Fernando Pessoa diz o que morreu foi a nossa visão de Deus. Nós vivemos em três dimensões, a astrologia estuda uma quarta, com arquétipos. E o problema é que as pessoas querem remeter tudo para as três dimensões. Mas os novos físicos têm várias teorias com a base de Eisntein em que defendem a multidimensionalidade.

Há pouco tempo vi uma palestra de um astrofísico que dizia que quanto mais estuda a astrofísica mais se encontra com a metafísica e a espiritualidade. Daí estar há pouco a referir a ciência vs religião, espiritualidade.
A matéria e o espírito estão a caminho da fusão. Eu já costumo falar disso na minha página, quando digo que na era de peixes temos de fundir a matéria com o espírito, que faz parte da síntese da era de peixes. Há mesmo essa missão de fundir o espírito com a matéria, esse é um dos aspetos que foi já trabalhado em Fernando Pessoa e no qual eu continuo a batalhar. Não faz sentido nem vivermos só no espírito, nem vivermos só na matéria. Temos de encontrar uma fusão entre essas polaridades e enquanto não encontrarmos balanço entre esses dois níveis, vamos viver num mundo desequilibrado, como ainda está. Mas há que ter consciência dessas polaridades. E qual é a importância da astrologia nisto? A astrologia ajuda a re-ligar as polaridades, serve para o auto-conhecimento. Depois até pode servir para tentar fazer previsões, porque as pessoas gostam muito disso. É que como as pessoas não estão habituadas a serem responsáveis pelos seus atos, gostam mais que o destino ou a vida sejam responsáveis.

É mais fácil “pôr tudo nas mãos de Deus”, não é?
(risos) Exatamente. Tudo. Como se os astros resolvessem os problemas. Há que ver como é que a influência astral age de forma colectiva e depois em forma individual e é nisso que estamos a trabalhar. Por isso quando eu ensino astrologia é sempre muito na perspectiva alquímica. Conhecimento para que? Para que as pessoas se conheçam a elas próprias, para melhorarem.

Há pouco falava dos seus 17 anos, agora tocou ali no Fernando Pessoa. Quando é que se deu essa comunhão?
Depois de me começar a interessar pela História das Religiões, li muito de Antropologia, Psicologia, Filosofia e História. Sempre de uma forma autodidata, embora tenha frequentado o curso superior de Filosofia. Já no final do liceu eu gostava muito de Fernando Pessoa, tinha encontrado Fernando Pessoa, o poeta. O meu heterónimo preferido era o Alberto Caeiro. Apesar de gostar muito do Álvaro de Campos e do seu lado mais revolucionário, o lado intuitivo e de mestre do Alberto Caeiro fascinava-me, porque trabalhava com o lado da intuição. E depois vim a saber que Fernando Pessoa tinha-se dedicado à parte esotérica.

Que nunca nos é falada na escola.
Não, claro que não, isso vinha apenas em livros raros, que só se encontravam em alfarrabistas. A obra que não tinha sido publicada. E eu em 1981 e 1982 tive o privilégio de fazer um programa com o Raúl Durão, que me convidou, e tive então a oportunidade de ir à Biblioteca Nacional, na secção dos reservados, e estive com os manuscritos de Fernando Pessoa na mão, antes de serem fotografados e copiados, a ver as pastas todas. Aí começo a ver numerologia, cabala, magia, astrologia e tudo aquilo que ele tinha escrito sobre isso. Fiquei boquiaberto, e descobri a astrologia graças a essa paixão por Fernando Pessoa.

Fernando Pessoa era do signo gémeos, certo?
Sim, com ascendente em escorpião. Com muitos planetas na casa oito, uma enorme relação com o mistério e o oculto. E eu com a minha Lua em gémeos comecei logo a absorver essa energia toda dele. Tirei alguns apontamentos. Eu já estudava astrologia, mas aí foi um mergulho maior no Fernando Pessoa. Comecei a estuda-la por volta de 1978.

Já se estudava astrologia em Portugal?
Haver quem a estudasse havia. Mas nós tínhamos saído do 25 de abril e cuidado com alguém que falasse de astrologia até ao 25 de abril. Não podíamos falar abertamente. Logo começaram a surgir alguns movimentos que começaram a libertar conhecimentos cá para fora. Claro que deve ter havido alguma escola em termos de tradição astrológica em Portugal, porque Fernando Pessoa dedicou-se muito, o Mário Sá também se dedicou à astrologia. Mas a tradição astrológica portuguesa é muito rica e já vem dos tempos de Dom Dinis. Mas escolas que facultassem cursos de astrologia acho que a que eu entrei foi a primeira, que eu tenha conhecimento. O centro Rosa Cruz de Lisboa estava ligado a uma escola da Califórnia e dava cursos por correspondência. Mas houve duas pessoas que na altura quiseram fazer um curso aberto ao público para ensinar como se desenhava uma mapa à mão, como é que se davam os instrumentos necessários para começar o estudo da astrologia. Mas em 1978, mas por acaso, sem ser por acaso, de coincidência significativa (risos), um dia compro A Capital e vejo “curso de astrologia” dado pelo centro Rosa Cruz de Lisboa na casa do Ribatejo, na rua de Salitre de Lisboa.

Espaço Salitre, é o nome do seu espaço.
Exatamente. (risos) Fui lá parar 29 anos depois, num ciclo de Saturno, fui lá parar novamente. Onde aprendi astrologia, fui parar a essa rua novamente e fiz lá o centro, mesmo ao lado do sítio onde comecei a aprender astrologia. Aprendi tudo à mão, nessa altura, e como sempre tive jeito para números e matemática, sempre quis aprender os algoritmos todos e os mecanismos todos celestes. Eu gosto muito de astronomia e não há motivos para estarem separadas, porque sempre estiveram ligadas como irmãs gémeas. A astronomia e a astrologia nasceram as duas da mitologia e a partir do Renascimento faz-se a separação dos saberes. Claro que são duas áreas distintas, mas são complementares. Então fiquei com esse bichinho todo e especializei-me, como autodidata, a encomendar livros do mundo inteiro e a estudar tudo a fundo.

 

Foto: Diana Tinoco
Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/588714/astrologia-somos-uma-civilizacao-sem-pernas-para-andar?seccao=Portugal_i

Munique. Portugal palpita no coração da cidade alemã

Trotinetes, bicicletas e muito verde. As folhas amarelas e vermelhas pintam o chão da cidade. Munique está cheia de sol, mas é no primeiro restaurante português da cidade que encontramos o verdadeiro significado de calor

A estação de comboios de Viena mais parece um aeroporto. No comboio os bancos são confortáveis, há tomadas para os carregadores dos vários aparelhos eletrónicos e a internet não só existe, como também funciona. A viagem dura quatro horas e Munique recebe-nos já tarde, mas não está frio como esperávamos.O Uli, é um amigo alemão que nos dará estadia estes dias. Veio-nos buscar à estação de comboios e mais tarde leva-nos a um bar espanhol para beber um copo de vinho de boas vindas. A casa é partilhada por cinco amigos que se conhecem há muitos anos e dos cinco apenas um deles não tem irmãos gémeos. Pergunto-lhes em tom de brincadeira se o nascimento de gémeos é algo típico do país, todos se riem mas comentam que por acaso conhecem várias pessoas com irmãos gémeos.Amanhece e o sol surge com uma intensidade surpreendente. “Não estamos habituados a estas temperaturas nesta altura do ano”, diz-nos o Uli enquanto prepara o pequeno almoço. Como é preparador físico de atletas profissionais, a rotina está bastante entranhada no seu dia-a-dia e vai daí que nos convida para fazermos exercício de manhã.Apesar das pessoas circularem de mangas curtas, enquanto se passeiam de bicicleta e trotinetes, a verdade é que o Outono já chegou e Munique é um mar de tons amarelos, vermelhos e laranja. Crianças pequenas dão gargalhadas enquanto empurram com os pés as milhares de folhas que cobrem os caminhos das cidade.

Há uma bicicleta destinada ao nosso passeio matinal e a falta de hábito e o tamanho do banco proporcionam três quedas seguidas, o Uli olha-nos com estranheza mas acha piada à situação. Perguntamos-lhe onde podemos encontrar os portugueses que por cá vivem, mas não temos muita sorte com a informação. Não tarde, porém , a ser-nos útil com as chamadas telefónicas que terá de realizar para nos manter informadas sobre um esfaqueamento no metro. Traduz as informações que lhe dão para inglês. Houve seis feridos mas os suspeitos foram presos, “está tudo tranquilo e voltou tudo à normalidade”.

Passeamos pelas margens do rio Isar, onde várias famílias aproveitam as temperaturas e a greve que a chuva fez esta semana. Fazem-se piqueniques, há cervejas nas mãos dos adultos, casais de namorados que se abraçam a ver o rio correr. Muitos chamam-lhe a cidade verde e percebe-se porquê, já que há enormes parques que acompanham a cidade, em ambas as margens do rio.

Continuamos a pé pelas ruas do centro de Munique e eis que a noite começa a espreitar. O sol põe-se cedo, mas as temperaturas não estão muito mais baixas, pelo menos por enquanto. Na Breisacher Str. 22 damos de caras com um dos mais famosos cantos portugueses de toda a Baviera. Ao fim de 35 dias em viagem sem contacto com portugueses, encontrar o Lisboa Bar é respirar Portugal.

No balcão vê-se carne de porco à alentejana, canapé de bacalhau espiritual, boquerones, entre outras pratos dos quais temos saudades. Chegam dois amigos bem dispostos, de casaco de cabedal e fazem festa ao gerente. Vieram de mota, pedem uma cerveja cada um e ao saberem que somos portuguesas nem nos dão hipótese: “Querem super ou sagres?”. Anselmo, gerente do Lisboa Bar, está atarefado e tem pouco tempo para conversar com os amigos. “A casa hoje até não está muito cheia, acredita”, diz-me com sotaque de Guimarães. Tem 34 anos, nesta cidade vive há onze anos, mas mudou-se para a Alemanha há 20. “Já compensou mais viver aqui, agora estar aqui ou noutro lugar é praticamente igual. Deixou de ser interessante”, diz enquanto um cliente alemão espera pela conta. A servir à mesa também há alemães, mas na cozinha são todos portugueses: “ A cozinha portuguesa tem de ser feita por portugueses. Já tivemos um espanhol e um albanês mas não é a mesma coisa, mudam sempre alguma coisa. A comida portuguesa tem de ter alma”.

Era ainda adolescente quando veio com a família para a Alemanha. “Fiz cá o décimo primeiro e décimo segundo. Aprender a língua foi só difícil no início, depois é sempre a andar”. Quando lhe pergunto se não ensinam os funcionários alemães a falar português responde-me com uma gargalhada: “eles só querem aprender palavrões. É que o alemão parece uma língua agressiva mas não é, eles não usam disso. São cuidados”.

Anselmo traz as cervejas aos dois amigos que agora escolhem uma mesa. Valter também é de Guimarães, tem 37 anos e está em Munique desde os 18. Tiago tem 34 anos, é de Santarem e já está por estas bandas há 24 anos. “É sempre aqui que vimos, não há nada como este bar. Depois há uns restaurantes mas é tudo muito pimba. Aqui é outra classe, não há piropos às mulheres no meio do bar, é outro ambiente”. O dono, José Fonseca, abriu o restaurante quando veio estudar alemão para Munique, há 28 anos. Foi o primeiro canto português da cidade. José fala do Lisboa Bar com orgulho, e não é só porque a casa tem o nome da sua cidade.

“Eu não vinha de famílias ligadas à restauração, estava a estudar hotelaria na Suiça e decidi vir para cá estudar a língua que me faltava para acabar os estudos”. Para ter sucesso, garante que o segredo é saber adaptar-se ao lugar em que se está. “Tem de ser uma cozinha portuguesa bem feita mas aconchegada ao ambiente em que se está. Se eu der um bacalhau tipicamente português a um alemão ele vai achar salgado. Se lhe der umas sardinhas com tripas ele não come, tem nojo. Se der uma salada de orelha, levanta-se da mesa, se nos vir a comer caracóis começa a vomitar. Há muitos cuidados a ter em conta num país diferente”. Quando visitam a cidade, é aqui que param os jogadores de futebol, o embaixador e demais personalidades portuguesas. José é amigo de Valter e Tiago, são do mesmo grupo de motares, fazemos passeios por aí todos juntos, calminhos, vocês deviam vir connosco”.

À mesa já chegaram gambas à guilho, ainda a ferver. Há cestos de pão e não tarda chegam as alheiras e os bifes. Enquanto fazem um brinde José remata:“Isto aqui é um ponto de encontro. É a nossa casa, é aqui que nos sentimos portugueses”.

 

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Viena. Aqui se juntam os resistentes da literatura austríaca

Depois de deixarmos a escura Budapeste, chegamos a uma Viena iluminada cheia de pessoas que nos sorriem. Numa antiga fábrica de locomotivas encontrámos um dos palcos da cultura alternativa da cidade

A cidade de Budapeste ficou-nos guardada com carinho, pelas maravilhosas construções e pelo estilo cosmopolita que se vive naquelas ruas. Apesar de nos expulsarem dos restaurantes às 22h00 e de haver comentários sexistas até em menus de restaurantes onde “picante o suficiente para raparigas” se podia ler numa ementa de um restaurante asiático supostamente moderno onde os funcionários e gerente eram, na sua maioria, húngaros.Apesar de ficarmos a saber que os nossos amigos não estão propriamente felizes com a vida em Budapeste, embora recebam salários bem mais justos do que os que lhes ofereciam em Portugal para as mesmas funções e apesar da vida ser mais barata, a verdade é que não estamos habituados a viver sob um governo limitado e ditador, nem com uma homogeneidade de comportamentos xenófobos e homofóbicos. “Em Portugal, ainda que existam pessoas assim é raro assistirmos a situações. Mas uma vez uns amigos nossos iam no comboio e um deles ia ao lado da namorada, mas à conversa com o amigo. Levou uma chapada de um húngaro que começou a implicar a achar que eram gays só porque iam entretidos a conversar. São ridículos”, conta-nos Gustavo a viver há aproximadamente um ano em Budapeste.

A estação de comboios onde apanhámos o comboio para Viena era no outro lado do mundo e isso resultou, como já se estava a prever, em perdermos o comboio que tínhamos planeado. A sorte é que no centro da Europa os transportes internacionais circulam com muita regularidade e vai daí que só tivemos de esperar meia hora pelo próximo.

Quando chegámos a Viena já era noite, o Andreas, cuja mãe é portuguesa e o pai é Austríaco emprestou-nos o sofá durante os três dias que se seguiram. Tinha jantar pronto para nós e falou-nos dos resultados das eleições cujos que acabavam de confirmar as sondagens, ganhando o Partido Popular graças ao jovem Kurz, que fica para a História como o primeiro ministro mais novo de sempre em todo mundo. “Ele foi muito esperto e teve um discurso anti muçulmanos que agradou aos mais velhos que vivem fora das cidades e têm medo. É o resultado do populismo”, dizia-nos enquanto nos servia uma cerveja artesanal, feita por ele mesmo. Vínhamos preparadas para enfrentar uma cidade gélida mas enganámo-nos. Na manhã seguinte Viena recebeu-nos com raios de sol e um céu azul límpido. A cidade tem muita luz, o que comparada às cidades que havíamos visitado durante todo este tempo nos fez matar um pouco das saudades que já tínhamos de Lisboa.

Viena está dividida por distritos e nós ficámos hospedadas no oitavo. No meio de tantas lojas e galerias, decidimos perguntar na rua a um casal onde nos aconselhavam a almoçar. Indicaram-nos que seguíssemos em frente até encontrarmos uma antiga fábrica de locomotivas e máquinas chamada Wuk. Quando demos com o lugar, encontrámos um enorme edifício cujo túnel daria acesso a um terraço luminoso, onde se estendia uma esplanada. Crianças brincavam, saltavam e rebolavam num parque de areia à porta de um infantário. Adultos com cabelos de várias cores, piercings e roupas ousadas bebem cerveja em no bar. Uma mesa está ocupada por um grupo com ar mais corporativo.

O edifício cor de tijolo, que se transformava num enorme quadrado coberto por heras pintadas pelas cores de outono, é hoje palco da cultura “underground” de Viena. Funciona como uma enorme oficina de arte e consideram-no um centro cultural alternativo. Desde as artes cénicas, a ateliês de belas artes, a bares e a um cinema, há ainda espaço para workshops e cursos, bem como para uma pequeno espaço cheio de livros que nos desperta a atenção. À porta vemos o Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago. No meio de autores alemães lê-se “António Lobo Antunes”. Decidimos entrar.

Dentro da apertada “Evolutions Bibliothek” está Nikolaus Scheibner, um homem magro, com pouco cabelo, veste uma camisola coçada que está a ouvir atentamente Ilse Kilic, uma figura feminina imponente, quase bruta. Atenta à conversa está também a jovem de 37 anos Michaela Hinterleitner que é poetisa e faz teatros de marionetas. Sonha com os Estados Unidos. Ilse, outrora artista “punk” é casada com Fritz Widhalm com quem já escreveu dez livros em conjunto. “Cada um desenha e escreve uma página e o outro completa a história sem nunca poderem apagar o que o outro disse antes. É uma delícia”, explica Nikolaus, de 41 anos, que se vem a revelar uma testemunha viva do que é ser um artista resistente. Nikolaus é um poeta, um apaixonado pela literatura, é presidente da associação sem fins lucrativos “Zeit Zoo” – O zoo do tempo – e fala do amor que tem aos livros com os olhos de uma criança.

O espaço onde estão hoje, no Wuk, nos anos setenta foi ocupado por artistas que não permitiam que se fechasse o ponto de encontro de tantos artistas e ativistas nacionais. Nos anos 90 Nikolaus juntou-se ao grupo de escritores que se encontrava na “Arena”, como lhe chamavam e aí sonharam criar uma revista literária onde publicassem os vários poemas que esta pequena comunidade produzia. Hoje é o presidente do Zoo do Tempo e da respetiva editora e admite que é de uma imensa dificuldade sobreviver como poeta aos tempos modernos.

A conversa é interrompida por um toque monofónico. Nikolaus tem o telemóvel mais antigo que vimos nos últimos anos, ainda é preciso abrir a tampa para atender a chamada. O pequeno espaço onde estamos é uma biblioteca comunitária que quer dar à população a oportunidade de ler livros de autores menos conhecidos, de todo mundo. “Há tantos escritores extraordinários que são menosprezados. São sempre os mesmos a receber os prémios, os apoios do governo, mas quem escolhe esta vida já sabe que é assim”, diz-nos enquanto sorri ao desfolhar um dos seus livros de poemas. “Mas não é pelo dinheiro que um homem escolhe ser poeta. O poeta é rico pelo que tem dentro de si. O dinheiro serve apenas para que o poeta sobreviva”.

 

Foto: Diana Tinoco

Hungria. “Estão a falsificar a nossa história”

Em Budapeste sente-se a pressão de um governo ditatorial e nacionalista que tenta alterar o passado em proveito próprio. Mas há ativistas que não desistem de manter vivo o respeito pelas vítimas da história de um país que parece ter esquecido o seu legado

A viagem da Sérvia até à Hungria ganhou o prémio na categoria de “a mais desconfortável da vida”. Foi a primeira que fizemos em modo interrail, cujo passe nos permitia deslocarmo-nos de comboio durante cinco dias por quaisquer países incluídos no serviço. Com o passe da Eurail, é raro termos de reservar lugar nos comboios, mas sendo este um noturno foi preciso passar por uma bilheteira e pedir dois lugares de Belgrado até Budapeste.A modalidade da reserva incluía uma “cama” e daí que a nossa ingenuidade nos levou a pensar que as próximas oito horas seriam as de maior conforto de toda a experiência balcânica. Estávamos absolutamente erradas. Quando demos de frente com a cabina que nos estava destinada, demos connosco num estreitíssimo compartimento cujas camas se resumiam a seis tábuas forradas a tecido, três de cada lado da cabina, cuja estabilidade era no mínimo duvidosa.

Chegámos à conclusão que o mais seguro seria optar por escolher as camas do terceiro andar, não fôssemos nós levar com aquilo na cabeça. As escadas improvisadas provocaram alguns ataques de riso e a quase impossibilidade de as usar provocaram uma reprimenda em sérvio do revisor, que nos viu a tentar apoiar os pés numa das camas improvisadas. O calor provocado por um exagerado aquecimento central tornou-se insuportável e decidimos abrir as janelas do corredor, com esperança que corresse um pouco de ar fresco. O ar lá fora era gélido, o luar refletia-se nas enormes planícies que corriam a alta velocidade, num cenário digno de um filme de Hayao Miyazaki.

Bem encostadas, cada uma do seu lado da cabina, lá acabámos por adormecer e só acordámos quando a polícia das fronteiras nos bateu à porta. Estivemos imenso tempo parados, tanto na saída da Sérvia como na entrada para a Hungria, cujas normas fronteiriças estão mais estritas que nunca. De novo de olhos fechados, já só voltaríamos a acordar com os berros do mesmo revisor rezingão e de alguns dos passageiros que nos avisavam sobre a chegada a Budapeste. Eram seis da manhã, já havia imenso movimento nas ruas. Em frente à estação estava um dos imensos Starbucks da cidade. Eu nunca havia entrado num porque os preços sempre me pareceram ridículos, e com razão, já que dei por mim a pagar seis euros por um sumo de laranja natural que chorei durante todo o dia. A moeda ainda não era o euro, mas o ar era o mais ocidental que respirávamos em dias que nos pareciam meses. A noção do tempo em viagem é sempre confusa, um dia pode demorar um ano ou uma hora, as datas deixam de ser assim tão importantes e a luz do sol é o ponteiro que melhor nos guia.

Em Budapeste ficámos hospedados em casa de um casal amigo que está a trabalhar há um ano na cidade. O emprego fica numa multinacional, trabalham com vários conterrâneos e têm direito a ir a Portugal uma vez por mês, viagem essa comparticipada pela empresa.

A casa onde vivem é digna de um cenário de filme clássico italiano. Ao entrarmos por um portão de madeira já muito gasta, um enorme terraço circundado por varandas imponentes e várias plantas nos beirais dão um ar sublime àquilo que, por fora, parecia só a entrada para uma casa velha.

Com enormes pilares verticais, ao cimo vê-se o céu azul limpo, indicador de que também em Budapeste vamos ter sorte com a meteorologia.

Depois de repostas as energias fomos até ao museu Casa do Terror, cujo objetivo é imortalizar as vítimas dos regimes fascistas e comunistas. O museu, inaugurado em 2002, é massivo, interminável e exaustivo. As enormes salas estão desenhadas e pensadas ao pormenor para que o visitante sinta o desconforto natural de uma casa que serviu de teto a inúmeras torturas e mortes de vítimas de sistemas desumanos. Porém, para quem tiver algum conhecimento mais aprofundado da História, é nítida a tentativa de alteração de contextos e cenários políticos em favorecimento de um sistema nacionalista.

Assim o reclamam ativistas húngaros, maioritariamente de gerações mais velhas porque “os mais novos não se podem mostrar contra o sistema, caso contrário ficam sem emprego”, explicam-nos mais tarde. Consideram o museu um atentado à história da Hungria, numa tentativa de tentar minimizar a participação húngara no desfecho da limpeza étnica durante a ii Guerra Mundial. Maria Schmidt, diretora e curadora do museu, tem sido acusada de alterar a história e ignorar o Holocausto, focando-se na ocupação soviética e ignorando a participação da Hungria nos horrores da ii Guerra Mundial.

“É mais uma aliada do sistema de Orbán, ela faz parte do governo dele, a mesma historiadora que considera Schengen o fim da soberania do seu país, que afirma que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é o maior causador da crise europeia por colocar os direitos humanos em primeiro plano em vez da defesa das fronteiras”, lê-se num dos documentos de protesto contra a “falsificação da História”.

“Quando vieram para o poder, há sete anos, a primeira coisa que fizeram foi reescrever a Constituição e mudar o primeiro parágrafo, como se 60 anos de História não tivessem existido. Como se a minha existência nunca tivesse acontecido”, diz-nos Andrew, cruzando os braços e falando calmamente. É professor de História e tem dois filhos. O cabelo branco não o impede de estar no seu turno de protesto todas as semanas, mesmo sendo de fora da cidade. Nascido em 1957, assistiu ao domínio soviético, os pais foram vítimas dos nazis e a avó foi baleada na cabeça nas margens do Danúbio, uma vez que todos eram judeus.

O memorial chama-se “Memorial às Vítimas da Invasão Alemã”. Deveria homenagear as vítimas do Holocausto e tudo parecia bem até que, depois de construído, uma parte da população se apercebeu de que “tudo estava errado”. “A estátua mostra o Anjo Gabriel de maçã real na mão e a águia alemã pronta para caçar. Eles querem fazer parecer que a Hungria foi uma vítima da ocupação alemã quando a História está farta de nos provar que a Hungria foi aliada dos Alemães. Isto não é correto. Nós não fomos ocupados.”

Também o sistema eleitoral foi alterado assim que subiram ao poder, desde a organização geográfica ao número de rondas de votos. O que faz com que este governo, com apenas 44% dos votos, tenha o poder, uma vez que assim foi possível conseguirem dois terços dos lugares no parlamento.

Frente à estátua está um conjunto de elementos que os ativistas colocaram como lembrança constante das vítimas do Holocausto. “A minha mãe morreu em Auschwitz”, lê-se num dos cartazes. Há traduções em várias línguas do documento que explica a todos que visitam o monumento a gravidade do que ele representa. “O que me preocupa mais são as gerações mais novas. O sistema de ensino é tão mau que eles não fazem ideia do que se passa, não conhecem a história, não têm posição política”, explica Andrew. “Os meus filhos, com mais de 20 anos, descredibilizam constantemente o perigo desta ditadura pseudodemocrática e nem sequer entendem o populismo. É assustador que a maioria dos apoiantes da extrema-direita sejam os jovens.”

Na sua opinião, o complexo de inferioridade ajuda ao crescimento de uma sociedade machista, racista, xenófoba e homofóbica. Propaga-se uma ideia de soberania e poder de um país que, na verdade, está em constante desmoronamento. Mas o que mais o revolta é que os maiores propagadores destes ideais são os jovens: “Como pode haver tanto ódio numa geração tão jovem quando eles nem passaram pelos sistemas como nós? Deviam ser eles a mudar mas, neste país, os mais velhos são os que têm a mente mais aberta.”

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/585972/hungria-estao-a-falsificar-a-nossa-historia-?seccao=Portugal_i

Migrantes. Na Sérvia o pesadelo ainda não acabou

A fronteira da Sérvia foi a mais complicada de passar. Mandam-nos sair do autocarro, abrem-se todos os possíveis compartimentos e percebemos mais tarde que a situação do tráfico de migrantes assim o exige. Os que trabalham com o assunto contam-nos que a Sérvia está lotada e os que vieram a sonhar com a Europa não têm onde ficar.

Chegámos à Sérvia já era noite, depois de uma viagem de doze horas de autocarro. Os assentos eram desconfortáveis, não havia internet e as pessoas não falavam todas as mesmas línguas, o que dificultava a comunicação. Uma rapariga cigana romani de 23 anos trazia consigo dois filhos, um ainda com meses e uma menina de dois anos. Iam sentados à nossa frente e na fronteira implicaram com o passaporte e sobrenome das crianças, que era alemão, como o do pai.Ao fim de algum tempo deixaram-nos passar até à entrada da Sérvia, mas obrigaram-nos a sair do autocarro e a sentir cada extremidade do corpo a gelar, já que as temperaturas naquela zona eram as mais baixas que sentiríamos durante toda a viagem. Abrem todos os possíveis compartimentos e inspeccionam todo o autocarro.

A partilha deste momento com trocas de olhares empáticos seguidos de suspiros de quem está em sofrimento fizeram com que todas as pessoas, agora fora do autocarro começassem a comunicar, quanto mais não fosse por gestos. Assim conhecemos um professor sérvio sexagenário doutorado em línguas que havia perdido a visão ainda em criança, mas cuja independência era no mínimo inspiradora. Contou-me algumas das suas histórias, a forma como se apaixonou pela mulher que não sofre do mesmo problema, sobre o nascimento das filhas e sobre todos os livros que já escreveu e traduziu em braile.

Chegámos a Belgrado completamente exaustas e assim ficámos no hostel mais barato de toda a cidade, onde pagámos seis euros por noite por uma cama em camarata de oito.

As diferenças de temperatura haviam chegado à falha sistémica dos nossos sistemas imunitários e a partir daí seguiu-se uma temporada complicada no que diz respeito à gestão de energia e curiosidade em conhecer o que havia escondido pelas cidades.

Assim que nos afastássemos da zona do hostel, que era em frente à principal estação ferroviária, os contrastes sociais seriam demasiados. A caminho do centro da cidade, que é moderno, repleto de artistas de rua, livrarias e galerias de arte, conhecemos o lado mais ingrato da cidade.

Num parque à beira rio, debaixo de uma ponte, centenas de homens se aninhavam todos os dias ao final da tarde com cobertores, sacos plásticos e olhos de quem não foi aquilo que imaginou para si. 
A frustração, o desespero e o cansaço são três estados cravados na pele de todos os migrantes que chegam diariamente à capital de Belgrado, com esperança de conseguir ultrapassar a fronteira com a Hungria, ou a Croácia, e assim alcançar a tão sonhada Alemanha. 
O sonho europeu é real e ainda não parou de alimentar uma corrente de gente do oriente cuja dimensão “parece infinita”, dizia Dorde Petrović de 35 anos, responsável pela gestão de trabalho da Crisis Response and Policies Center que trabalha em conjunto com a equipa das Nações Unidas – UNHCR – cuja parceria se centra única e exclusivamente em ajudar todos os que chegam a Belgrado a legalizar a sua situação. Mas não só: é com este grupo de voluntários que se registam todas as necessidades básicas necessárias para que se mantenham de boa saúde, com informações atualizadas sobre a gestão política das fronteiras, bem como sobre os campos que os poderão acolher.

Há dois anos o fluxo migratório na Europa explodiu. A crise humanitária envolveu centenas de milhares de refugiados, oriundos maioritariamente do Médio Oriente e Norte de África que procuravam um oásis na Europa Ocidental.

A situação mais crítica envolvia refugiados, mas hoje a realidade centra-se em migrantes a quem lhes foi vendido o sonho europeu. “Diziam-me que na Europa davam dinheiro na rua às pessoas e que havia mais emprego do que trabalhadores. Como passávamos fome o meu pai juntou o que tinha e comprou uma viagem a um traficante que entretanto me abandonou. Já fui capturado em várias fronteiras, espancado”.

A corrente de pessoas que passa pelo centro de Belgrado “parece não ter fim”, diz Marija Majanovi,ćde 27 anos, voluntária e chefe de comunicação do centro de apoio aos migrantes. “Isto não é nada, antigamente recebíamos grupos de centenas de pessoas todos os dias, sem hora de melhorar à vista”, explica, enquanto comenta a frustração permanente de quem quer ajudar mais e não tem permissão para tal. “O governo proibiu-nos de dar roupa e bens alimentares. No inverno chegaram a estar milhares de pessoas em barracos atrás da estação”.

Ali bem no centro da cidade está montado um centro de acolhimento aos refugiados e migrantes que chegam a Belgrado perdidos num rumo que têm na cabeça, mas que não chega a passar daí. Pelo menos não para os que falam connosco sentados no chão, cobertos com mantas, em pequenos grupos de companheiros de viagem cuja única coisa em comum é o nome do traficante que os levou até lá. Refugee Aid Milesalishe (RAM) é o nome do centro que reune associações e grupos ativos na recepção destas pessoas. “Save the Children” é uma delas e uma dos seus voluntários diz-nos não ter ideia de quantas crianças haverão chegado às instalações do centro sem qualquer adulto.

O centro não está preparado para acolher tantas pessoas durante a noite e é por isso que todos os homens são convidados a deixar as instalações, abrigando-se em parques, debaixo de escadas, ou até mesmo pontes. Zeez, de 17 anos, foi um dos refugiados que abandonou a Síria para fugir de um cenário que se tornou incomportável. O objetivo é encontrar a mãe e os irmãos na Alemanha, mas por enquanto está “preso” na Sérvia, já que a Hungria fechou as fronteiras. Zeez deixou a sua terra em 2010 e desde então está sozinho, por sua conta. O traficante que o trouxe até cá abandonou-o depois de gastar todo o dinheiro na praga de casinos que se estende por toda Belgrado. Foi durante a sua odisseia que descobriu um linfoma a que teve de ser operado de urgência e é graças ao centro RAM que vai conseguindo acompanhar a evolução da doença. Hoje, enquanto a sua história não evolui para um final feliz, decidiu aproveitar o tempo sendo intérprete no centro de apoio onde foi recebido. “É tudo uma questão de sobrevivência. Temos de tentar tirar o melhor possível da realidade e a minha não vai mudar tão cedo”, diz-nos enquanto almoçamos. “Há quem esteja pior do que eu, pelo menos agora tenho onde dormir e já falo bem a língua”.

Quem não está com o mesmo ar é Rawa que deixou os quatro irmãos e o pai no Iraque com esperança de, juntamente com a mãe, conseguir encontrar a irmã que se casou com um alemão há alguns anos. “Viemos num grupo de 14 pessoas a pé, de carro, em malas de camiões e carrinhas, o homem a quem comprámos a viagem não foi isto que nos prometeu. Não era isto que vínhamos para encontrar”, diz-nos com um inglês aprendido graças às canções e aos filmes que via. Mostra-nos o aparelho dos dentes. No Iraque era protésico dentário e conduzia o carro de um advogado. “Espero chegar à Alemanha e conseguir trabalho como protésico para poder mandar dinheiro para casa e dar uma boa vida à minha mãe. Enquanto falávamos chega um grupo de nove paquistaneses. Estão em viagem há um ano e meio. O único que fala inglês acaba de saber que vai ter de dormir no parque: “Temos fome, temos frio, mas pior de tudo é já não termos a esperança que nos fez sair de casa, agora só Deus sabe”.

 

Foto: Diana Tinoco

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Macedónia. Viagem à capital europeia do kitsch

Ao visitar a capital da Macedónia fica-se com a sensação de que as ruas foram invadidas por seres inanimados de bronze, de todos os tamanhos e feitios. A estética é questionável, o número total de estátuas, ninguém sabe ao certo

Saímos de Pristina para Skopje num miniautocarro que bateu recordes de falta de conforto. Era já noite cerrada quando chegámos a Skopje, capital da República da Macedónia – república esta que tem o mesmo nome de uma região da Grécia, tendo-lhe isso já valido uns quantos problemas a nível de política internacional. A República da Macedónia foi, ao longo da História, massacrada por invasões de países vizinhos e, depois da Guerra dos Balcãs, os gregos recusaram-se a reconhecê- -la, já que o país se estaria a apropriar do nome de uma região grega, bem como da bandeira com a estrela de 16 raios amarelos em fundo vermelho de Alexandre, o Grande. Mas o governo da Macedónia não fez caso e Skopje é a área com mais bandeiras hasteadas por metro quadrado que eu alguma vez visitei.Skopje é fria e cinzenta nesta altura do ano. Estávamos à procura de um lugar para jantar quando descobrimos o centro da cidade. É difícil descrever a mistura de sensações que esta cidade me provoca. As pessoas não falam inglês, não se mostram muito disponíveis para conversas e, por isso, passo ao papel de mera observadora. 
O centro da capital dá-nos a sensação de estarmos em plena Disneylândia, há estátuas por todo o lado, umas enormes, outras mais pequenas, há estátuas de todos os tamanhos e feitios, e não é por ser expressão, aqui foi mesmo para inglês ver. Se recuarmos apenas quatro anos, a Macedónia sofreu uma transformação no mínimo “radical” e fora do comum que tinha como objetivo atrair o turismo e lembrar os heróis e ícones nacionais.

Os edifícios recentes têm um estilo neoclássico que não condiz com o que o país viveu nos últimos anos, ignorando grande parte da influência da população da Albânia no decurso da história do país. Há mesmo um enorme Arco do Triunfo, e quem não estiver informado sobre o projeto recente de reabilitação da cidade e não conhecer o investimento de quase 500 milhões de euros gastos na sua decoração fica a achar que está perante uma capital imponente, majestosa, gloriosa. A ideia parece ter sido essa, mas falha tremendamente assim que damos de caras com crianças a pedir dinheiro na rua, quando se vê a miséria dos mais velhos ou até mesmo quando se sabe que o salário mínimo é de 237 euros mensais.

Na cidade já se fizeram manifestações e faz-se a piada à falta de gosto, bem como se apontam severas críticas à forma como este dinheiro foi gasto. O número total de estátuas é um mistério para quem passa, diz-se que há gente que contou mais de 60, e não estamos admiradas.

Do outro lado da cidade parece termos chegado à Turquia, com a elegância e as infinitas cores que se propagam pela luz dos pequenos estabelecimentos do Old Bazar.

Na rua há uma enorme banca de livros que se amontoam sem fim. Uma mulher de poucas palavras encaixa aqui mais um, ali mais outro. Fica difícil perceber como alguém conseguirá escolher um livro naquela enorme montanha de ar tão frágil. Ela chama-se Sonia e garante que ali estão mais de 500 livros que vai trocando de posição todos os dias, talvez como ritual, talvez como método de negócio, não se percebe bem.

Recebo uma mensagem no telemóvel, é um amigo meu que me pergunta onde estou. “Na Macedónia”, respondo-lhe. Ao que ele me responde: “Quão estranha achaste Skopje?” Entretanto, rio-me para um condutor de charrete que já a guia há três anos. “Agora fica bem cavalos a passar aqui. São 100 moedas por dia”, diz Traitche, de 52 anos. Os dois cavalos são brancos com pintas pretas, e têm 13 e 14 anos. “Desculpe, não sei falar bem inglês”, diz-me com ar desconsolado.

Vamos para o hostel e é por lá que conhecemos Guney Baser, um jovem turco de 25 anos que fez um percurso semelhante ao nosso nas últimas semanas. Vive em Munique, onde vai terminar a nossa viagem. Estuda por lá porque queria viver longe das regras e da nova onda política da Turquia.

Conta-nos sobre a educação de esquerda que a mãe lhe deu e como há um enorme preconceito na Alemanha em relação aos da sua nacionalidade. “Acham que somos todos muçulmanos só porque somos de um país muçulmano. A minha mãe nunca me ensinou a rezar e eu nunca entrei numa mesquita sequer”, conta-nos enquanto bebemos chá. Estão apenas nove graus e um rapaz passa por nós de calções e t-shirt. Pergunto-lhe se não tem frio e como consegue andar assim com aquelas temperaturas. “Sou inglês, isto é brincadeira”, responde-me o jovem também de 25 anos, que é cientista e se refere ao seu objeto de estudo como “o meu fungo”.

Será na Macedónia que uma gripe nos apanha desprevenidas. E é precisamente quando estamos a comprar lenços de papel numa espécie de supermercado na estação de comboios de Skopje que Richard, de 72 anos, nos aborda. Tem um ar mais saudável que o nosso naquele momento. Nascido e criado no Kansas, nos Estados Unidos da América, o espesso cabelo branco serve de disfarce à alma extremamente jovem que alimenta com viagens todos os anos. Hoje vai apanhar um autocarro para conhecer a aldeia onde cresceu parte da família do seu amigo da Macedónia. Adora Portugal, onde irá em breve com a filha e netos, mas veio à Macedónia para se encontrar com um amigo que é de cá. Milan, um jovem local de 27 anos, trabalhava no bar que Richard frequentava quando em férias em Skopje, há uns anos. Desde então, ficaram amigos e Richard visita-o constantemente. A amizade não escolhe idades, explica Richard, “porque a idade está na cabeça”.

 

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Kosovo. “Não sonhas com mais quando não conheces melhor”

Eram crianças quando foram enviados como refugiados para outros países, assim que rebentou a guerra. Hoje não há espaço para muitos sonhos, já que não podem conhecer o que há para lá das fronteiras de alguns dos países vizinhos

Acordar em Pristina não é assim tão diferente de acordar numa cidade tipicamente ocidental. Apesar de a população, hoje em dia, ser quase completamente de origem albanesa, culturalmente muçulmana, os prédios são novos, as lojas que vemos nas nossas ruas também estão cá, os carros que circulam são de topo de gama, há poucos vestígios de religiosos por estas bandas. “É o que dá fugir aos impostos”, diz-nos um dos rececionistas do hostel onde dormimos quando lhe pergunto como é que, com uma economia tão fraca, há dinheiro para carros tão bons.O Kosovo é um assunto sensível nos Balcãs: os sérvios torcem-lhe o nariz, os bósnios dizem não saber nada e os cidadãos do Kosovo já se conformaram com a situação. Pelo menos é o que nos dizem as dezenas de jovens locais que todos os dias vêm ao terraço do White Tree Hostel para manter a conversa em dia, entre turnos de empregos que lhes pagam contas e intervalos de faculdade. 
Sentada no terraço, observo muitos deles. Têm estilo, são modernos e ousados. Há muitas raparigas com cortes de cabelo mais rebeldes, curtos, pintados. Os rapazes passariam facilmente por jovens de Lisboa ou do Porto, parecem mais velhos do que a data de nascimento do passaporte indica. Desde manhã cedo até à meia-noite, hora a que tem de fechar o bar do hostel, não há uma única música que venha deslocada ou mal pensada numa playlist. “Isto é da erva que se fuma neste país”, diz a rir-se um dos amigos que passam muito do seu tempo ali.

Juntam-se à minha volta, há cervejas na mão de cada um deles. São mais de sete rapazes e uma rapariga, todos eles curiosos sobre a forma como se vive em Portugal. Digo-lhes que um dia têm de visitar-nos. “Não podemos, somos do Kosovo. Estamos presos aqui”, diz-me Duki, de 25 anos. “Enquanto não nos aceitarem como país, o nosso passaporte não vale nada.” Pergunto-lhe como se sente em relação a isso, se há movimentos juvenis que queiram mudar essa realidade. “Nós crescemos a saber que isto era assim. Não sonhas com mais quando não conheces melhor.” O amigo, Gjin, teve outra sorte. “Quando tu nasceste em Portugal, tranquila, nós nascemos na guerra. Com um ano, eu era refugiado na Macedónia. Depois mandaram-me com os meus pais para os Estados Unidos da América. Foi a minha sorte, hoje tenho cidadania e posso ir onde quero”, explica, enquanto cada um deles partilha os países onde foram refugiados em criança. Toda gente fica em silêncio. Aquele que é o país mais jovem do mundo poderia ser um poço de esperança sem fundo; no entanto, aparentemente dizem estar tudo bem. “Temos ar de gente triste?”, pergunta um dos rapazes do grupo à gargalhada, enquanto acende um cigarro.

“Vocês lá fora têm uma ideia errada sobre nós. Como é que cá chegaram? Na internet lemos tantas coisas erradas sobre o nosso país”, continua, enquanto bebe um gole de cerveja.

Conto-lhes do secretismo da viagem, da nossa surpresa ao encontrarmos uma capital tão nova e moderna. Riem-se à gargalhada, quase se orgulham do cenário cinematográfico. “É o que dá as pessoas falarem do que não sabem: quem vem já não quer ir embora” diz-nos um dos rapazes do hostel, que aponta com os olhos para um finlandês que já lá está há um mês. Faz 53 anos no dia seguinte, viaja numa Honda vermelha, era para ter ficado apenas dois ou três dias, mas não consegue deixar Pristina. “Isto é tão bom. Eu amei Portugal, as pessoas de Portugal, mas não quero ir-me embora do Kosovo, talvez amanhã”, diz-me enquanto bebe um shot de tequila às três da tarde.

Lá fora, um grupo de rapazes fuma erva. Mostram-me fotografias no telemóvel de um amigo que lhes enviou uma fotografia com a descrição “já tenho pequeno-almoço”. É uma tigela de cereais cheia de pastilhas ecstasy. As drogas circulam facilmente nos Balcãs e o Kosovo não é exceção. Um dos jovens conta-me que sonha trabalhar na preservação dos lobos. “Um emprego que dê para comer e pagar contas, mas que me faça feliz”, diz-me.

Almoçámos no hostel por 2,60 euros: uma omelete com queijo e uma dose de batatas fritas. Os preços são tão baixos, os salários residuais, pergunto quanto pagam por um quarto no centro da cidade. “Ronda os 70 euros, ganho 250 aqui no hostel. Dá para viver”, comenta o rececionista mais ativo na conversa.

Ao sairmos do hostel em direção à praça principal deparamo-nos com um largo onde circulam várias miniaturas de carros a bateria conduzidos por crianças. Alguns têm mesmo faróis acesos. Os pais também são jovens, é raro verem- -se idosos na rua. No Polo Universitário, em frente à biblioteca, está a decorrer a gravação de um videoclipe. Há um músico com um citfeli – instrumento de cordas típico da Albânia – na mão. Uma rapariga ainda adolescente veste trajes tradicionais. Parece uma boneca, tem olhos claros e pele branca, quase parece desenhada por um artista cerâmico. “Todos os países têm no YouTube uma versão do Despacito, ainda não há nenhuma daqui. Por isso, vou ser eu a fazê-la”, conta-nos Fatmir Makolli, famoso músico nacional, que está orgulhoso de toda aquela produção de televisão, bailarinas e takes que se repetem continuamente.

Drenis tem 19 anos, é filho do produtor deste videoclipe. Estuda Economia na faculdade e desbrava a história do país e da região. O ódio aos sérvios é notório: “Não é aqui na capital que vocês vão ver o que a guerra nos fez. É nas aldeias.” Lamentamos não ter tempo para explorar o interior do país. “Estão a ver aquela igreja ortodoxa ali? Os sérvios construíram-na em 1995, no meio da guerra, para que pudessem reclamar a área à volta. Têm a mania que são espertos, mas nunca deixámos que a terminassem. Está ali só para nos humilhar e não podemos deitá-la abaixo”, diz com desprezo enquanto olha para a inacabada construção, bem no meio do campus universitário. Em 2016, depois de um incêndio, alguns membros da comunidade sérvia tentaram, sob o pretexto de limpar, reconstruir e pintar a igreja, que sempre permaneceu vazia e que nunca chegou a ser terminada, mas o município impediu que continuassem.

A rapaziada que para no White Tree Hostel não partilha desse ódio aos sérvios. Drin, de 27 anos, não tem paciência para um mundo em que as pessoas se querem mal. “A guerra não foi nossa, eu não lutei por nada. Uma vez, no Facebook, fiz um amigo num grupo e vi que era sérvio. Eu perguntei-lhe, ‘sabes que sou do Kosovo?’, e ele disse que não queria saber. A nossa geração não quer mesmo saber, somos mais inteligentes do que isso.”

Foto: Diana Tinoco

Texto publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/584922/kosovo-nao-sonhas-com-mais-quando-nao-conheces-melhor-?seccao=Portugal_i

Kosovo. Do secretismo da fronteira à surpresa de Pristina

Crescemos num Portugal seguro, um país de clima invejável, rodeadas de pessoas boas. Em Portugal, qualquer um que junte uns trocos, tem liberdade de voar para onde quiser.

Seja de avião, à boleia, de autocarro ou de comboio, seja de mota ou a pé, de bicicleta ou de carro, os portugueses viajam e, salvo raras excepções, ninguém nos quer mal, nos manda parar em fronteiras porque nascemos no canto errado, não há sentença pela nossa origem. Até hoje, o mais perto de resposta agressiva que recebi por ser portuguesa foi um grito com o nome do Ronaldo, que se seguiu de um sorriso estonteante. Será no Kosovo que vamos ouvir pela primeira vez relatos de gente da nossa idade, nascidos em 1992 e que por serem cidadãos de um país não reconhecido, lhes é negada a possibilidade de ver e visitar outros mundos.

Nos preparativos da viagem, já se sabia que haveria um ponto delicado ali no meio dos Balcãs, que iria exigir de nós bastante mais do que contávamos. Olhávamos para o mapa e a sensação era de uma névoa, um cinzento típico do desconhecido. Se queremos ir ao Kosovo, temos de estar preparados para o que ele tem para nos dar e todos nós, nascidos na década de 90, crescemos com expressões na nossa língua que automaticamente nos indicavam o pior do que por lá se poderia encontrar.

Kosovo foi sempre equivalente a tragédia, confusão, mais anárquico que o próprio Texas, “vai para ali um Kosovo” e o preconceito nasce em nós sem nos perguntarmos bem, quando pequenos, sobre o significado das coisas.

O Kosovo é sempre “muito complicado”, até para os especialistas, os diplomatas, os que tratam dos jogos de xadrez da geopolítica, assim nos dizia mais tarde um norte-americano, marido de uma diplomata a trabalhar com as Nações Unidas em Pristina, capital do Kosovo.

Durante esta viagem que começou a 19 de setembro, sempre que tocámos no assunto “Kosovo” ou se suspirava, ou se bufava, ou nos faziam sinal para falar baixo. “Ninguém fala disso aqui, nós nem podemos lá entrar”, diziam-nos na Bósnia e Herzegovina. Se era ou não assim tão grave, não percebemos bem. A verdade é que toda gente se recusava a informar-nos sobre como lá chegar. Na internet a informação era residual. Nas ruas ouvíamos constantes “não sabemos de nada”.

Em Mostar, o nosso anfitrião disse-nos que o melhor sítio para passar a fronteira pela Bósnia era por Novi Pazar, área muçulmana da Bósnia e Herzegovina: “Pela Sérvia é impossível, eles recusam-se a aceitar a existência deles como um país independente”. Seguimos a pista que nos diziam para irmos até à estação de autocarros de Sarajevo e por lá procurámos um que nos levasse até Novi Pazar. Quando chegámos ao autocarro, íamos a pousar as malas quando um senhor, que não o condutor, nos sussurrou: Pristina?

Afinal o assunto estava ao nível de segredos aos ouvidos. O Kosovo é uma nação recente e ainda existem muitos países que não lhe reconhecem a independência da Sérvia conquistada de forma unilateral em 2008, tais como a Rússia, o Brasil, a Espanha e a China que temem movimentos separatistas do género e que este seja considerado um exemplo internacional.

O autocarro não ia cheio como é costume. A maioria das pessoas eram já de idade avançada e ninguém falava inglês. Por dentro, a cor era de um vermelho aveludado, dando uma sensação mística à viagem. No meio da viagem o senhor que nos perguntou sobre o nosso verdadeiro destino começou a vender bilhetes. Quando chegou a nós pediu-nos sete euros. Ainda tínhamos marcos bósnios e, por sorte, lembrei-me que tinha comigo alguns euros guardados. Apesar de não fazer parte da Zona Euro, os habitantes do Kosovo começaram a utiliza-la assim que a Alemanha o fez, ainda em 2002.

Assim que nos disse sete euros houve uma gargalhada geral. Falava-se albanês e percebemos que estavam a rir-se de nós. Pela primeira vez em toda a viagem não sabíamos se estávamos no roteiro previsto ou no autocarro certo, muito menos com as pessoas certas. Ninguém falava inglês, riam-se de nós a comprarmos um bilhete e quem nos garantia que íamos mesmo para Pristina? Restou confiar.

Como a viagem ia ultrapassar as doze horas e era já noite cerrada, acabei por adormecer tão profundamente que quase não dei conta de pararmos em Novi Pazar. Quando dei conta, tinha uma polícia a pedir-me o passaporte dentro do autocarro.

Estávamos a sair da Sérvia. Lá fora estava um nevoeiro cerrado. Não percebi se era um rio, se era um lago que nos acompanhava. Mas estávamos no meio do nada. Veem-se uns contentores, nitidamente prontos para serem transportados assim que necessário, a servirem de pouso administrativo. Os passaportes voltam a ser recolhidos e agora carimbados. Do outro lado, quem vem de lá para a Bósnia, tapam-se as matrículas dos carros. Estamos oficialmente no Kosovo.

O salário mínimo por aqui é o mais baixo de toda a região, 130 euros para pessoas com menos de 35 anos e 170 para os que são mais velhos. Segundo o Eurostat estes valores não se alteram desde 2011. O contraste é enorme quando comparado a outros países dos Balcãs a ocidente, como a Eslovénia que conta com um salário mínimo de 805 euros, ou a Croácia com 433 euros mensais. Mas o Kosovo não está assim tão desfasado de países como a Albânia cujo salário mínimo é de 155 euros.

Apercebemo-nos nos outros países que existem vários mitos sobre a população do Kosovo que, pelo menos ao que vamos conhecer, não correspondem com a realidade. Falam-se em clãs de famílias, em subsídios pós guerra que sustentam o desemprego. Explicam-nos que o ódio instalado nos Balcãs é milenar. E sobre a população albanesa que reclamou o direito ao Kosovo como independente desenha-se a ideia de uma população preguiçosa, limitada, pouco informada.

As capitais nunca representam dignamente o que é um país, já que todo o crescimento se costuma concertar por lá, mas as pessoas que iremos conhecer vieram de fora da cidade, para procurar emprego e uma vida mais digna. Quando pergunto, mais tarde, a Drin Halipi de 27 anos, a viver em Pristina e a trabalhar como assistente técnico de uma empresa de telecomunicações sobre estes factos a cara dele é de choque. “É claro que dizem isso sobre nós, sem nunca terem posto cá os pés”, diz-me enquanto fuma um charro. Pergunto-lhe sobre a existência ou não de mitos, sobre a hipótese de propagação de informação falsa e quais seriam os motivos para que tal acontecesse.

“Nós recebemos apoio das nossas famílias que emigraram e enviam-nos dinheiro, mas que eu saiba mais nada”, responde. “Eu trabalho num emprego onde não sou feliz para me sustentar. O desemprego é altíssimo mas os meus amigos que não estudam trabalham todos. As pessoas são loucas. Somos provavelmente as piores criaturas à face da Terra”.

Foto: Diana Tinoco

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Sarajevo. “Se tiveres medo é mais fácil virarem-te contra mim”

O rio Miljacka, que atravessa a capital da Bósnia e Herzegovina, corre independentemente do que testemunha. As águas turvas, baixas, onde centenas de corvos se banham, viu a história da humanidade dar várias reviravoltas nas suas margens

Acordámos em Sarajevo. A nossa cave improvisada de alojamento local fica na parte antiga da cidade. Acordámos com o chamamento muçulmano para a oração da manhã. Há mesquitas por toda a cidade. Viremos a saber que são pelo menos cem.

Ontem chegámos do estádio de futebol de táxi. A viagem, que durou pelo menos dez minutos, ficou-nos por seis marcos bósnios. Aqui, os taxistas usam o taxímetro e são honestos, não nos querem aldrabar só porque não temos ar de quem vive cá. Cada marco vale metade de um euro. A viagem ficou-nos por três euros.

Acordámos em Sarajevo e a grande questão que me aflige por esta altura é: como se começa um texto sobre este lugar? Como se pode passar, através de palavras, tudo o que a capital da Bósnia e Herzegovina nos faz sentir assim que se pisam estas calçadas? Será a capital que mais nos marcará nesta viagem, onde o luto contrasta com a vida do bairro otomano, as lápides dos cemitérios infinitos refletem o sol que ilumina toda a cidade, a estátua de João Paulo ii em frente à grande catedral se cruza com o Museu dos Crimes Contra a Humanidade e do Genocídio de 92/95, onde os risos das crianças fazem estremecer as memórias da cidade que sofreu no interior do mais longo cerco de guerra desde a Idade Moderna.

Na guerra mais recente, no início da década de 90, Sarajevo esteve sob cerco durante quatro anos e as pessoas, os monumentos e os museus vão lembrar-nos disso constantemente, embora seja uma ferida em que ninguém gosta de tocar.

Descemos a colina onde estamos hospedadas e vamos ao encontro do pequeno rio Miljacka, que separa Sarajevo e Sarajevo Oriental. As águas não formam uma grande corrente, pelo contrário. O rio passa lentamente, é baixo, escuro. Nele banham-se centenas de corvos que voam à volta da cidade, dando-lhe um ar ainda mais misterioso.

As margens do rio Miljacka estão ligadas por dezenas de pontes. Dirigimo-nos à mais conhecida, a Ponte Latina. Foi por ali que o arquiduque Francisco Fernando foi assassinado, em 1914, por um jovem, Gavrilo, que viria a ser capturado. Conta-se que Francisco Fernando e a esposa não morreram logo a seguir ao atentado, tendo sido ambos transferidos para uma residência onde os cuidados médicos não eram os melhores. “Se tivessem sido levados a um hospital militar com as devidas competências, se calhar, a esta hora, não estávamos aqui, nesta Sarajevo”, dizem-nos à porta da Nova Escola Edhem Mulabdi.

Hoje o clima é de paz, mas de política “infinitamente instável”, explica-nos um comerciante no bairro otomano. Sarajevo é uma salada de culturas, etnias e religiões.

Contam-se três principais religiões, três diferentes línguas que se encontram na mesma base linguística e sabem-se dois alfabetos. As etnias dividem-se entre os sérvios ortodoxos, associados à igreja tradicional russa e daí, em tempos de Guerra Fria, tendencialmente demonizados pelos Estados Unidos da América; os bosniaks, que se guiam pelo islão e as suas leis, atraindo muçulmanos de todo o mundo para dentro das fronteiras bósnias; e ainda os croatas católicos, que tiveram um pesado papel na guerra do país.

“Aqui não há bons nem maus, fomos todos marionetas do poder internacional e sabemos disso. Eu não defendi pátria nenhuma, eu defendi a minha família”, conta-nos um outro comerciante, que não se quer identificar porque “as paredes todas têm ouvidos”, mas que se assemelha demasiado ao ator norte-americano Bill Murray. “Sou filho e neto de fotógrafos, somos gerações e gerações de comerciantes. Esta loja existe há cinco gerações. Nunca quis saber se a minha mulher era muçulmana ou croata, nós éramos todos um. Sarajevo nunca diferenciou a etnia ou a religião de ninguém, até porque aqui ninguém é religioso”, diz-nos de forma assertiva.

Mais tarde, são vários os habitantes locais que apoiam esta tese. “Nós somos católicos, muçulmanos ou ortodoxos, mas é no papel. As pessoas não frequentam as mesquitas ou as igrejas. É tudo uma questão de poder: dizem que há três etnias e três religiões, e assim temos três presidentes que não se entendem”, explica.
Na Bósnia, a política é um jogo complicado. Existem três líderes que assumem a presidência num sistema rotativo, de oito em oito meses.

Na loja ao lado do seu comércio de artesanato está o laboratório de fotografia da família. Pergunto ao sósia de Bill Murray se tirou fotografias na guerra, onde combateu. “Milhares, mas não vos vou dar ou mostrar. É só sangue, mortos, pedaços de corpos no chão. Não vão aprender nada ao olhar para elas, já pensei em queimá-las todas”, diz-nos enquanto olha para a montra, que tem a luz apagada.

Será que pode chegar a guardá-las, já que fazem parte da História? “A História está aqui, nas ruas, onde vês mulheres de hijabe no mesmo grupo de amigas de minissaia. Os meus filhos sabem tudo sobre a guerra, as versões, o que se passou. Não preciso de contar a história a mais ninguém. O melhor que podemos fazer pelo mundo é dar educação às novas gerações para que não deixem que a História se repita. Mas era bom que se ouvissem as versões todas.”

Depois de nos dar um cartão-de-visita onde está o contacto da mulher, que organiza visitas guiadas às redondezas de Sarajevo, despede-se de nós com um abraço.

Os locais de Sarajevo dizem-nos que o Ocidente os ajudou porque a geopolítica assim o exigia. Em toda parte há referências e até uma estátua de Bill Clinton.

“A Croácia e a Eslovénia interessavam aos alemães. Mas o que é que eles tinham? Vende-se vinho como se fosse da Eslovénia quando o vêm buscar à Macedónia. Eu amo as pessoas da Eslovénia, o problema é sempre do poder e dos jogos da política. Nós, cidadãos, somos todos feitos do mesmo e só queremos viver em paz”, conta um senhor de idade à porta da mesquita mais antiga de toda a Sarajevo, que é conhecida por Mesquita do Imperador.

Durante séculos, Sarajevo foi a zona fronteiriça entre o Império Austro-Húngaro e o Otomano. A influência de ambos nas ruas da capital são notáveis e as igrejas e as mesquitas são só algumas das heranças dos dois mundos.

Espreitamos para o largo que se estende à porta da Mesquita do Imperador. Os turistas não podem entrar nas mesquitas quando as pessoas estão a rezar. Mas, como a sorte nos tornou amigas de Selim Hafiz, de 55 anos, responsável pela mesquita e por chamar todos os dias os crentes para as orações, este convida-nos a entrar na mesquita às 15h54, hora da primeira oração dessa tarde, à qual assistimos.

Selim Hafiz é o muezim da mesquita mais antiga de Sarajevo. A sua responsabilidade é a de anunciar a toda a cidade, sem microfone, do alto da torre da mesquita – a almadena – que está na hora de se dedicar à oração. Durante a guerra, todos os dias subiu os mais de noventa degraus para chamar os fieis para rezar “caíam bombas, disparavam tiros, mas Deus nunca quis que me acertassem”.

No islão existem cinco orações obrigatórias, mas apenas os homens têm de se dirigir à mesquita: “As mulheres têm uma vida muito ocupada, não só trabalham nas suas profissões como ainda são mães e esposas, são o centro do nosso mundo”, conta, depois da oração, um muçulmano que não o era até ter estado na linha da frente de combate. “A guerra ensina-nos muito. Os meus pais eram muçulmanos por hereditariedade, mas nunca me educaram para ser religioso. Mas, depois, veio a guerra. E a guerra muda tudo.”

Na mesquita, os homens rezam mais à frente e as mulheres mais atrás. Assim que veem o meu ar desconfiado em relação à separação de géneros, que em Portugal também se dava em muitas dos templos católicos num passado demasiado recente, explicam-me: o homem vem à mesquita para rezar, para se afastar do mundo e dedicar uns momentos do seu dia à oração. “Já viu as nossas posições a rezar? Acha que a natureza de um homem lhe permitiria ter todos os pensamentos dedicados só e apenas a Deus se à nossa frente estivessem lindas mulheres?”, pergunta-me em jeito de explicação. Hoje é voluntário e ajuda Selim na mesquita. “No fundo, a base de todas as religiões é digna e semelhante, defende–se o amor ao próximo acima de tudo.

O problema é o que os homens fazem delas, não é?” pergunta, enquanto Selim lamenta o seu fraco inglês. “Gostava tanto de vos explicar em palavras certas o que sinto cá dentro. O meu coração está tão feliz por vos receber aqui”, diz-nos, enquanto nos dá de lembrança um masbaha, que se assemelha a um rosário católico, com bolinhas em madeira.

Pergunto-lhes sobre a entrada da Al- -Qaeda pela Bósnia, sobre o extremismo muçulmano e como é que veem a islamofobia que resulta da propagação do terror por grupos como o ISIS. “Essa gente não nos representa. Dão um título aos ideais deles e chamam-lhes fé. Leia o Corão e diga-me em que parte é que diz que podemos matar. Não podemos, nenhum humano tem esse direito. E se Deus pode tudo, porque haveria de querer sacrificar vidas? Querem espalhar o medo, e sabes porquê? Se tiveres medo, é muito mais fácil virarem-te contra mim. Sem medo, não há poder.”

A conversa estende-se por várias horas e, no fim, Selim, filho do mais famoso muezim de toda a Europa, que faleceu aos 84 anos, despede-se de nós com as mãos dadas às nossas. “Vou sempre ter-vos nas minhas orações, as nossas profissões são parecidas. Espalham a palavra da paz e do amor pelo mundo.”

Foto: Diana Tinoco

Selim Hafiz é o muezim da mesquita mais antiga de Sarajevo. A sua responsabilidade é a de anunciar a toda a cidade, sem microfone, do alto da torre da mesquita – a almadena – que está na hora de se dedicar à oração. Durante a guerra, todos os dias subiu os mais de noventa degraus para chamar os fieis para rezar “caíam bombas, disparavam tiros, mas Deus nunca quis que me acertassem”. Publicado em:

Sarajevo. A toca do urso afinal era uma fábrica de cerveja

Autocarros que parecem salas de convívio, o aroma que anuncia o frio de Outono. As mãos geladas e o coração quente. Estamos na capital da Bósnia e Herzegovina e tudo o que se aproxima é inesperado

São cerca de três horas de autocarro de Mostar até Sarajevo, com muitas paragens e pessoas à mistura. Os lugares estão todos ocupados: senhores de idade, crianças, viajantes. Enquanto tento descansar, ouço uma gargalhada ao fundo do autocarro. É o resultado do encontro fortuito entre um português, um brasileiro e um casal de australianos.

Sentada num dos bancos da frente, vejo uma mãe chegar com uma criança e apercebo-me que tenho de ceder-lhe o lugar. Ao deslocar-me para a parte de trás do autocarro, passo automaticamente a ser apresentada ao novo grupo de camaradas. Ouve-se falar português pela primeira vez em várias semanas.

Numa das muitas paragens no meio do nada, entra uma senhora já de idade avançada, de lenço colorido na cabeça, estilo de camponesa, que faz lembrar as dançarinas de folclore do norte de Portugal. Não tem dentes nem vergonha da falta deles e, apesar de nada perceber de inglês, segue a conversa com um sorriso de orelha a orelha. Acabo por lhe piscar o olho e ela devolve-me o sinal, caso eu ainda não tenha reparado o quão de bem está com a vida.

As paisagens são de nos tirar o fôlego. Grande parte da estrada segue à beira rio, entre montanhas. Lembra-me a linha de comboios do Douro, que tantos anos percorri e hoje vai amontoada de turistas deslumbrados com a paisagem. Aqui, somos nós que estamos em êxtase, enquanto os habitantes locais parecem nem dar por ela.

Tento dormir um bocado, vou finalmente chegar à famosa Sarajevo, da qual Milan Rados, o meu falecido professor de História do Mundo Contemporâneo da Faculdade de Letras do Porto, tanto nos falava. A mítica Sarajevo dos Jogos Olímpicos de 1984, a Sarajevo onde rebentou o primeiro cartucho da Primeira Grande Guerra, a Sarajevo multicultural, da paz e da lembrança dos dias que não o foram. Sarajevo é uma grande cidade, rodeada de verde, uma capital bem protegida pelas montanhas que se veem no horizonte.

Ao chegarmos à estação passamos às despedidas. O casal de australianos dá-me um bilhetinho com os respetivos contactos. “Talvez um dia nos encontremos por aí”, diz-me Michael, enquanto o fintava com dois beijinhos. A nossa mania de dar dois beijinhos deixa muita gente baralhada e nunca deixa de ter piada. Aírton, o brasileiro, também vai para o centro da cidade.

O “tram” é pequeno, velho e toda gente viaja apertada. Não percebemos como é suposto conseguirmos bilhete se ninguém consegue entrar pelas primeiras carruagens.

O anfitrião da “Guest House” onde deveríamos ficar hospedadas enviou um e-mail a dizer que afinal que o local está completo, mas que nos arranja outra casa onde podemos ficar. Depois de subirmos e subirmos mais um bocado, finalmente descobrimos o lugar, que fica na parte antiga da cidade.

Trata-se, no final das contas, de uma cave improvisada numa casa, até bem arranjada, mas que não tem as três camas prometidas. Negoceia-se um colchão a mais e um desconto. Cada noite fica-nos por cinco euros e meio.

Se Mostar era barata, Sarajevo não tem comparação possível. À procura de onde matar a fome, encontrámos um pequeno restaurante que não é mais do que um corredor apertado dedicado à juventude que ali para para fumar “shisha” (cachimbo de água). Pagámos um euro e meio por uma pizza média e um euro e meio por um hambúrguer.

Na rua principal de Sarajevo, onde centenas de lojas se alinham e pessoas de todas as etnias e religiões se cruzam todos os dias, damos de frente com Øystein, o norueguês que encontrara na viagem de autocarro de Dubrovnik a Mostar.

Depois de uma enorme festa, nem dois minutos haviam passado e tropeçámos no casal australiano de quem nos tínhamos despedido apenas algumas horas antes. Ali estávamos nós, na rua gémea da portuense Santa Catarina, mas em Sarajevo, a reunir todas as boas companhias de viagem até então. O brasileiro Aírton encontrou-nos logo em seguida e Øystein disponibilizou-se para nos mostrar um pouco da cidade que tão bem conhecia. Dezenas de turistas param para tirar fotografias na esquina onde o arquiduque Francisco Fernando foi assassinado – episódio que daria origem à Primeira Guerra. Depois dessa atração, Øystein convida-nos a visitar um“Bear Hole”. Já nos tinham falado sobre a existência de ursos nas montanhas dos Balcãs, mas daí a visitarmos um género de “toca de urso” assim no meio da cidade soa muito estranho. Neste tipo de viagens não é difícil perdermo-nos em más traduções e Øystein parece muito surpreendido por eu insistir que nunca visitei nada semelhante. “Nem mesmo em Berlim?”. Nem mesmo em Berlim. Claro que este mal-entendido não durou muito tempo. Mal nos aproximamos da enorme fábrica de cerveja, apercebo-me que é tudo uma questão de pronúncia: Øystein queria oferecer uma bela caneca de cerveja, num “Beer Hole”.

Assim foi. Ficámos um pedaço na enorme Sarajevske Pivara, uma cervejaria cuja comida e bebida condizem com a elegância e o conforto do espaço. Passado um pouco lá nos despedimos do nosso amigo escandinavo, que ia para o aeroporto. Aírton, que é fã incondicional de futebol, convida-nos a assistir a um clássico às oito horas. Parece-nos uma experiência que não devemos recusar.

O bilhete que nos permite entrar no antigo e pouco preenchido estádio custou quatro euros, os mais baratos já estavam esgotados. A equipa da casa, Fudbalski Klub Zeljeznicar, viria a perder um a zero com a equipa visitante, o Zrinjski de Mostar, líder da tabela.

Arnela, que conhecemos em Mostar, contou-nos que antigamente o futebol era uma desculpa para confrontos pós guerra, entre adeptos de etnias diferentes. Hoje, apesar da febre do espetáculo obrigar a carga policial e à equipa visitante a abandonar o estádio dez minutos antes do final da partida, as coisas já não são assim.

Ao intervalo, um adepto da equipa da casa olha o relvado. Pergunto-lhe o quão importante é este jogo e se o facto de a equipa adversária representar a extrema-direita croata influencia em alguma coisa a partida. “Isso era antigamente. Não quero saber de onde são ou quem joga por eles. Eu odeio todos os clubes que não sejam o meu. A nossa equipa está cheia de sérvios, a equipa deles tem gente nossa, só vimos cá pelo jogo. Nada mais importa”.

 

Foto: Diana Tinoco

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Mostar. “Nesta cidade não havia espaço para a morte”

Quando a guerra chegou a Mostar, em 1993, não havia espaço para enterrar os que partiam. Os parques onde as crianças brincavam tornaram-se cemitérios, numa altura em enterrar os entes queridos se tornava uma missão de risco.

Enquanto caminho de mãos atrás das costas e semblante carregado por estes caminhos que nos levam ao centro da cidade de Mostar, lembro-me que Saramago perguntava de que servia o arrependimento, se o puro e simples acto de quem se arrepende em nada pode mudar o que se havia já passado. “O melhor arrependimento é, simplesmente, mudar”, dizia. Em Mostar, os nossos corpos reagiam sempre que cruzávamos novas ruas.

Cada passo equivalia ao relembrar constante de que o tempo não pode apagar a memória do que tudo mudou. Os estômagos encolhem. Inscrições por toda a cidade pedem para que a história não seja esquecida. “Remember 93” aparece em paredes, caixotes do lixo, na entrada da Ponte Velha que, quando destruída, materializou o orgulho ferido, toda a dor e revolta dos que por lá viviam.

Ainda perto da casa de Armar, onde estávamos hospedadas, nos destroços que ficaram de um edifício cujas paredes não venceram a força da gravidade lê-se: “Narnia is closed”. Permanecemos em silêncio a mastigar o que as palavras desenhadas a spray não conseguiram digerir. Nas estradas que circundam a cidade ainda existem avisos para o perigo de minas.

Armar, enquanto nos descreve o que era Mostar antes da guerra a que assistiu aos 13 anos, conta que havia vários parques para as crianças brincarem, “todos eles foram transformados em cemitérios, nesta cidade não havia espaço para a morte”.

“Em tempos de guerra não há tempo para velórios ou funerais à luz do dia. Tínhamos de ir às duas e três da manhã, sem luz, enterrar os nossos e esperar que ninguém morresse enquanto o fazíamos. Era um risco dizer adeus”, descreve enquanto dobra o mapa onde marcou a caneta conselhos para comer bem e barato.

Na Bósnia e Herzegovina os preços das refeições deixam-nos boquiabertas, é tudo tão barato. Uma refeição inteira fica-nos por cinco euros. Almoçámos num restaurante ao ar livre, chama-se Saray e tem à porta o menu em inglês e alemão. Por cá come-se essencialmente veado, mas para quem não come carne também se encontram soluções agradáveis ao paladar. O sol bate-nos nas costas, a funcionária avisa que não se vendem bebidas alcoólicas porque o restaurante fica colado à mesquita que iremos agora visitar.

O tecto não é o original, foi renovado porque o anterior foi bombardeado. Um antigo professor de História guarda a entrada de uma das dezenas de mesquitas da cidade. Esta foi construída em 1557 e guarda o mais antigo Corão em toda a Bósnia, oferecido pela Turquia depois da calamidade. “Um país tão forte tornou-se nada. As pessoas quando estão em guerra ficam loucas, tudo a que se podem agarrar é a Deus”, diz o antigo professor que ora mistura inglês, ora lhe mete uns ares de italiano à mistura.

Na Bósnia e Herzegovina ficaremos sempre a meias que perdidas em traduções mal arranhadas. São poucos os que entendem e falam inglês, mas todos fazem um enorme esforço por comunicar. Quando há falta de melhor vocabulário, os gestos e os sorrisos de quem não faz ideia do que lhes estão a dizer lá nos safam.

Um rapaz de 28 anos, Hasar, trabalha o cobre num pequeno estabelecimento onde há mais objectos do que espaço livre. O constante martelar ensurdece-nos, mas sempre dá para perceber que se trata de uma arte de família, de há várias gerações. Hoje, ele e o primo mantêm o negócio da família, segredos de um ofício que o pai lhe passou como legado. Nas ruas do centro sentem-se as influências turcas. Há bazares de um lado de do outro, com artesanato, sacos de alfazema, lamparinas, serviços de chá e bijuteria. Raparigas com Hijabs na cabeça olham os manequins que exibem belas túnicas coloridas. Um grupo de crianças ciganas romenas pede enquanto sentadas no chão, junto da mãe cujo ar cansado pede um tostão como ajuda.

O turismo em Mostar foi sempre forte. Conta-se que a virgem Maria apareceu em 1981 a umas crianças numa localidade muito perto da cidade, conhecida por Medjugorje. Católicos de todo lado aproveitam a proximidade do local das aparições à cidade e visitam-na.

Subimos à famosa ponte. O vento corta-nos as caras que não conseguem desviar os olhos da paisagem que se vê dali. Duas comunidades separadas por uma ponte que não separa nada do que se passou ali. “O lado negro foi um só para todos”, dizia Armar mais tarde quando lhe descrevemos a nossa percepção do que se viveu ali. “A Jugoslávia só era má para os que estavam de fora, os que viviam aqui eram felizes”, afirma enquanto nos conta histórias sobre as cinco gerações da sua família que sempre viveram em Mostar. “A minha família tinha várias casas, hoje das que não foram destruídas fizemos hostels, recebemos pessoas nelas, na Bósnia adoramos receber gente em casa”.

Despois da ponte, do lado croata, as ruas são mais cinzentas, há menos lojas e não há sinal de mesquitas. Passámos por um quiosque, está um homem mais velho e um mais novo a espreitar. “English?”, perguntam-nos. Sim, respondo. Somos portuguesas. “Ah Portugalia…”, grita seguindo-se uma lista de todas as cidades portuguesas cujas equipas de futebol se lembrassem.

Porto! Benfica! Sporting!, a estas estamos habituadas a ouvir, mas de repente: “Braga. Guimarães. Setúbal. In Porto…Boavista!!” O nosso ar de espanto. Eu olhava para a Diana, ela para mim. Como é que de forma tão aleatória, do nada, nos chamavam por casa?

Durante a tarde, quando passeávamos por um dos terraços da principal Mesquita da cidade, aproximámo-nos de um dos bazares e trocámos boas tardes com uma mulher muito bem arranjada e que falava um claro inglês.

Arnela, fugiu de casa aos 14 anos, juntamente com a família para se abrigarem da guerra na cidade, onde sempre era mais protegido. Entre um turbilhão de trocas e voltas que vida lhe deu, Arnela, de 39 anos, juntou-se à missão de paz da ONU, onde acompanhava as equipas internacionais da International Police Task Force”e as mediava com as locais. Era um “mundo de gestão logística, de conflito, de terreno. Geríamos desde a luta contra o tráfico humano, quanto os conflitos em jogos de futebol onde as claques lutavam por mais do que futebol”, descreve e completa: “Comigo trabalhava um português”.

Arnela diz-nos que a sua história é demasiado longa, mas que ficou sem trabalho e agora, finalmente, irá deixar o trabalho da loja que gere com o marido, para poder voltar ao trabalho de cooperação internacional, numa ONG de apoio a mulheres na Bósnia e Herzegovinha.

Depois de receber uma entrega de pizza com a inscrição “Porto Pizza”, que nos oferece, olha para fora da loja que lhe foi oferecida por um amigo, quando o marido andava desesperado à procura de emprego e todos prometiam, mas ninguém ajudava. “Depois, do nada aparece este amigo e diz: eu não preciso de três lojas, sabem? Fiquem com esta e tratem bem da vossa vida”, conta Arnela com ar de quem percebe que ninguém está habituado a tal grau de bondade.

“Por cá, temos um ditado antigo que traduzido é algo como: “Se fores demasiado brando, talvez devas repensar a direção, porque podes estar a caminhar para baixo”.

Foto:Diana Tinoco
Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/583444/mostar-nesta-cidade-nao-havia-espaco-para-a-morte-?seccao=Portugal_i

Mostar. A cidade que renasceu das cinzas

A memória dos habitantes de Mostar não deixa que se apaguem as marcas de uma cidade fustigada pela guerra. As fachadas dos prédios ainda mostram as cicatrizes de quem testemunhou o pior lado da humanidade

Chegar à Bósnia e Herzegovina é perceber que não percebemos nada. Sabíamos que íamos sair do conforto da União Europeia, em que não há nada com que tenhamos de nos preocupar, está tudo assegurado pela universalidade das regras e das normativas de um mercado único que uniformiza muito do nosso dia-a-dia sem que nos apercebamos.Passamos a fronteira e estamos no desconhecido. Sobre o país, sabemos o que os media, os professores e os livros que lemos nos ensinaram. Nada se assemelhará aos testemunhos vivos que encontraremos nas ruas daquele que é o país que até hoje mais me pesou. A guerra foi-nos sempre um conceito distante. O sítio onde nascemos foi-nos dado por um fortuito acaso, mas nem todos tiveram a mesma sorte dos que nasceram na bela costa ocidental europeia.

Tudo o que virá a partir desta fronteira será de aprendizagem permanente, choque cultural, avalanche de informação e overdose de emoções. Os novos eram demasiado novos quando a guerra lhes chegou, mas a memória demasiado forte para que se esqueçam, os velhos eram demasiado velhos para que não se esqueçam. Estão abertas as cicatrizes dos tiros, das bombas, os edifícios ainda têm marcas de horror e pobreza. Tudo o que vemos e visitamos brotou da resiliência e da luz de um povo que é demasiado bom a receber estranhos.

Ainda no autocarro de Dubrovnik até Mostar, que nos custou 101 kunas croatas – aproximadamente 13 euros –, senta-se ao meu lado Øystein Nybø. De grande porte, olhos azuis e uma careca a descascar graças ao sol que apanhou no sul da Croácia, o norueguês de 55 anos sorri enquanto distribuem os passaportes, depois de passarmos a fronteira para a Bósnia e Herzegovina. “Aposto que nem vai tentar ler o meu nome”, diz-me a rir-se. Estava certo. Depois de pronunciar tudo que era nome de gente naquele autocarro, a senhora que distribuía os documentos de identificação bem tentou, mas acabou por desistir e guiar-se apenas pela fotografia. Øystein deu uma gargalhada: “É sempre assim.”

Daí surgiu a conversa que só terminou quando saímos, em Mostar. Øystein continuaria até Sarajevo e daí voltaria à Noruega. Nunca foi a Portugal, mas conta-nos que um amigo encontrou o seu grande amor em Lisboa, enquanto passava férias e trazia uma t-shirt com a inscrição “I love Sydney” vestida. “Ele vivia em Sidney e não se tinha apaixonado, é preciso ir a Lisboa com uma t-shirt daquelas para uma australiana ir ter com ele, a perguntar se conhecia a cidade, para até hoje ainda estarem casados”, conta, entusiasmado. Já ouviu falar muito bem da comida e da história portuguesa. Mas é um apaixonado pela Bósnia e Herzegovina e esta é já a quarta vez que vai a Sarajevo. Trabalhou para a NATO numa missão de paz no norte da Croácia na altura do pós-guerra, já depois de 93. Escreve artigos para revistas militares e garante que este país que estou prestes a conhecer “é a verdadeira pérola da Europa, sem que nada se assemelhe a ele”. Mais tarde vou perceber porquê mas, por enquanto, apenas me aguça a curiosidade.

Despedimo-nos e trocámos contactos. O autocarro chega finalmente a Mostar.

Chegámos à estação de autocarros da cidade, levantámos dinheiro e levámos logo com uma taxa de seis euros por estarmos fora da rota da UE. Recebemos a mensagem do roaming, um megabyte de internet equivale a seis euros, acabaram-se os dados móveis e tudo será feito offline. Um marco conversível bósnio (KM) equivale a 50 cêntimos. Com a ajuda da tecnologia, mais uma vez, com o mapa offline descarregado do Google Trips, seguimos até ao Hostel Lovely Home. Poupam-se uns quantos trocos em usar mapas digitais; caso contrário, teríamos colecionado mapas a viagem toda.

Mostar é verde e, embora cidade, parece uma aldeia grande, onde as ruas são cobertas por uma calçada irregular, de pedras gordas, redondas.

Depois de andarmos 600 metros virámos por uma rua que nos levou a uma viela apertada, com quintais e portões grandes, até que uma criança de cinco anos, com óculos redondos, numa bicicleta já sem rodinhas, nos pergunta com um enorme sorriso “Hostel Lovely Home?”, enquanto com o braço nos faz sinal para a seguirmos.

Já à porta aparece o pai do miúdo, nosso anfitrião. Armar tem 39 anos, mas a idade pesa-lhe no rosto. “As primeiras bombas caíram tinha eu 13 anos, quem cresce na guerra nunca mais esquece, compreendes? Oh, claro que não compreendes. Fico feliz que não compreendam”, diz-nos enquanto nos serve café feito por ele, à moda do seu país, com uma valente borra no fundo. Enquanto nos recebe desenha-nos no mapa tudo o que precisamos saber sobre Mostar.

“Esta cidade era linda, era a capital da Herzegovina. No tempo da Jugoslávia éramos tão, tão felizes. Destruiu-se tudo, hoje somos assim, pobres, não temos nada”, lamenta, enquanto mostra vídeos do bombardeamento da imagem de marca da cidade: a famosa Ponte Velha, construída no tempo do Império Otomano e que se erguia no rio Neretva há 427 anos até que foi completamente destruída pela Guerra da Bósnia em 1993.

Armar fala-nos da situação política do país, que foi mais tarde confirmada por todos os habitantes da Bósnia e Herzegovina que viríamos a conhecer: “É caótica, tudo funciona muito mal. Vejam que Mostar não tem eleições desde 2008!”, descreve com indignação.

O transparente rio Neretva é a fronteira natural que divide os bósnios muçulmanos e os sérvios dos croatas. Depois do conflito a maioria dos sérvios deixou a cidade, mantendo-se apenas uma pequena porção desta comunidade étnica. Hoje, apesar de separadas pelo rio, as três etnias vivem em paz, sendo a maior porção da população croata.

Ainda ao pequeno-almoço, Armar diz que as estatísticas são feitas só para o poder e os jornalistas: “Nós nunca quisemos saber da etnia de ninguém, vivíamos todos felizes e misturados. Sabemos respeitar o conceito de multiculturalismo. Até que quiseram separar-nos a todos. E conseguiram. A guerra levou-nos tudo.”

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/583320/mostar-a-cidade-que-renasceu-das-cinzas-?seccao=Portugal_i

Dubrovnik. Da antiga república à loucura de Game of Thrones

É a cidade mais cara de toda a Croácia. A História consagrou-a como especial e hoje em dia é atração da indústria cinematográfica. De “Game of Thrones” a “Star Wars”, eis a viagem à antiga República de Dubrovnik

A manhã começa muito cedo em Dubrovnik e as ruas já se transformaram num mar de gente.

A “Old City”, como todos lhe chamam sem traduzir para qualquer outra língua, tem uma entrada imponente, mas na primeira noite ficámo-nos por um hostel fora das muralhas de Dubrovnik.

Ao pousarmos as mochilas decidimos descansar o corpo por algumas horas. Mais tarde, deparámo-nos com a realidade mais óbvia: estamos na cidade mais cara de toda a Croácia. Aqui não haverá bolso que aguente comer fora, daí que o segredo é ir ao supermercado comprar o habitual salvador dos pobres e oprimidos: o atum.

A sensação em Dubrovnik é a de estarmos numa espécie de parque de diversões. Chamam-lhe a Pérola do Adriático.

À volta, tudo é verde, as encostas estendem-se mar adentro, e quem vê ao longe a imponência das muralhas sente-se hipnotizado.

Dentro das muralhas há milhares de turistas que se empurram e tropeçam para tirar a melhor selfie no melhor ângulo possível. Há lojas alusivas a “Game of Thrones” em todo lado. Veem-se curiosos de todas as idades.

Uns chegam cá pelo que Dubrovnik representa na história do mundo, outros vêm matar a sede de quem vê muito cinema e televisão.

Dubrovnik tem sido cenário principal da série “Game of Thrones”, mas também “Star Wars” foi este ano filmado dentro das muralhas e contam-nos em segredo que se diz que as filmagens do próximo James Bond podem passar-se lá. Afinal de contas, diz-se que o espião jugoslavo Dusko Popov – nome original da personagem histórica que deu origem ao herói das telas de cinema criado por Ian Fleming – viveu em Dubrovnik a certa altura.

Em Split, um senhor que conheci num café tinha-nos dado o contacto de uma pessoa em Dubrovnik para que pudéssemos encontrar um guia de qualidade. Depois de entrar em contacto com esse número e de essa pessoa entrar em contacto com outra pessoa que conhecia a pessoa certa, eis que se marcou o tal encontro. Na manhã seguinte, bem cedo, o sol já queimava. Depois de nos mudarmos para um quarto dentro das muralhas, aproveitámos para lavar a pouca roupa que trouxemos.

Não tardámos a reparar que o esforço das tentativas de contacto com os guias turísticos valeu a pena.

À nossa frente teríamos uma guia sensacional que, na verdade, estava longe de ser uma especialista em turismo aleatória. Jelena Šimac, ex-jornalista premiada de 36 anos, sentava-se à nossa frente para um café e falava-nos do quanto se dececionou com a forma como se faz jornalismo hoje em dia.

“Já não se vai para a rua. Eu queria um jornalismo de pessoas, de contacto humano, mas fechavam-me na redação.” Recebeu em 2013 o prémio da Croatian Association of Journalists como melhor jornalista online, juntamente com a colega Ana Benaci, mas a profissão já não a fazia feliz e decidiu enveredar pelo ensino. Mais tarde, quis algo diferente e decidiu certificar-se pelo Ministério do Turismo da Croácia para poder trabalhar como guia turística em Dubrovnik, de onde é natural.

Jelena adora viver na cidade, ainda que hoje em dia seja economicamente impossível viver entre muralhas. Há quem assegure que o custo de vida em Lisboa consegue ser 13% superior ao de Dubrovnik nos dias que correm.

A beleza natural rodeia Dubrovnik, bem como todo o movimento da cidade. “Mas a História, isso sim, enche o espírito”, repete-nos Jelena com um sorriso no rosto. As muralhas foram construídas no séc. xii, para que a então República de Ragusa se defendesse de ameaças de invasores. Já em 1120 se elegiam os seus governantes. Jelena fala-nos do poder dos mercados marítimos da antiga república, das técnicas diplomáticas que a tornaram famosa e das amizades económicas com povos distantes, como os da Índia.

A ex-jornalista está grávida de seis meses, mas continua a fazer o percurso diário de três horas a pé, entre escadas e fortalezas, para acompanhar os turistas que querem saber mais sobre a origem daquele pequeno paraíso.

Jelena conta-nos que a cidade não teve de se recompor apenas do terramoto que a deixou em mau estado em 1667. Entre 1991 e 1992, a guerra também chegou a Dubrovnik, apanhando toda a população desprevenida. “Ninguém achou que chegaria aqui, então ninguém tinha armas, mantimentos, esconderijos.” Hoje, a UNESCO tem os olhos postos na cidade que, apesar de pequena, conserva monumentos de vários estilos arquitetónicos, como o gótico, barroco e renascentista.

Jelena conta-nos que a antiga República de Dubrovnik era muito avançada para a época, sendo pioneira em várias instituições públicas. “A abolição da escravatura é um dos grandes marcos da nossa história. Em Dubrovnik foi completamente proibida qualquer espécie de escravatura em 1418”, conta-nos, orgulhosa.

Fazemos a Free Walking Tour – “Secrets of Dubrovnik” com Jelena e torna-se óbvia a paixão que nos descrevia pelo contacto humano e a história da cidade. Há quem se vista a rigor pelas ruas de Dubrovnik, os que dançam e cantam, na fortaleza veem-se os preparativos para um casamento. Mais tarde passeamos pela cidade e somos surpreendidos por uma tempestade. A chuva cai sem piedade e abrigamo-nos numa loja de souvenirs.

Karla tem 18 anos, mas parece bem mais velha. Com um sorriso doce, diz-nos para nos chegarmos mais para dentro, não vá o vento surpreender-nos também. Abrigadas connosco e bem-dispostas estão quatro inglesas de alguma idade. Tal como o rapaz do hostel do norte da Croácia que estudava Engenharia, Karla faz este biscate para pagar a faculdade.

A chuva não abrandava e decidimos correr pelo labirinto de ruas e ruelas, agora completamente vazias. São demasiadas esquinas e as esplanadas e os pontos de referência haviam desaparecido todos. Não nos lembramos de como chegar ao hostel, abrigamo-nos num toldo. Víamos o dilúvio e lembrávamo-nos da recente alegria de quem tinha visto um sol quente que anunciava secar a nossa roupa estendida, finalmente lavada. A ironia dos timings. Daí a nada, desanimadas e de roupa colada ao corpo, lá demos com a nossa pequena e acolhedora fortaleza, para onde corremos com os pés submersos num rio prestes a desaguar no Adriático.

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