Ao relento

Nunca ninguém tinha acampado nos Castanheiros do meu avô. São quatro hectares de trabalho solitário e memórias sagradas de quem não pôde ficar cá para sempre.

Quando ele estava no IPO, com alucinações, passeámos pelos corredores hospitalares enquanto ele me apontava as árvores mais recentes que havia plantado nos terrenos, enquanto admirava as mais antigas. “Estás a ver aquilo ali, que bonito?Isto é tudo tão bonito, minha filha”, dizia-me enquanto passávamos por pessoas de bata branca e caras sofridas. As lágrimas caiam-me e com elas eu conseguia ver o que ele via.


Os castanheiros ficam lá no cimo do monte, só de carrinha é que se alcança e sabem os céus os buracos e solavancos que se passam até lá chegar.

Nunca ninguém lá tinha acampado mas eu tinha-lhe prometido que havia de lá dormir. Não sabia ao certo porque é que me deu para querer ir precisamente naquela noite, foi tamanho puxão, o peito pulsava e o corpo seguiu. Felizmente, o coração manteigudo do meu pai andorinha voou connosco até lá.

“Mas porque é que não ficas em casa?”, perguntava a minha mãe que não entende a ‘trabalheira’ de uma noite de campismo. “Vai ser bom”, era a única frase com sentido que me ocorria.

Fiquei mais tarde a saber o porquê daquela corrida. A tenda montou-se com vista para o mundo, mas aquela noite pedia os cobertores ao relento.


No topo do monte, nem um nico de vento, às vezes apenas um doce olá de uma brisa envergonhada.
Chamei os meus avós e os que antes deles por ali suaram. Agradeci ao meu avô aquele pedaço de céu e pedi-lhe permissão para ali ficarmos. Não passou muito tempo até que algumas estrelas caíssem e com elas duas ou três lágrimas de saudade.

O meu avô queria-nos ali, naquela noite, e nem me tentem convencer do contrário.

Perdi a noção do tempo assim que a Lua cheia rasgou o céu e Saturno e Júpiter se juntaram a ela num triângulo perfeito. A nós juntaram-se os pássaros, as cigarras e os grilos a darem duas de letra, os cães a uivarem ao longe e, de vez em quando, um suspiro de quem não sabe medir o mundo em palavras.

As maiores revelações da vida são-nos feitas depois de mergulharmos silêncio e por isso sairíamos dali e o mundo nunca mais seria o mesmo.


Ele lá acabou por aparecer, no meio dos ramos como quem espreita uma criança a dormir. Deu-me um beijo na testa e eu sorri-lhe. Caramba avô, que isto é mesmo tudo tão bonito.

Foto: Thomas Ott

Happy 420, Maria

Even though I’m in an extended period of no consumption of any kind of substance (besides sugar😬), I want to honor my medicine. The Mother of my healing process and one of my biggest Teachers. The Plant that helped me to deal with the worst moments of physical pain, and that worked as a gateway for so many difficult answers.


I am sorry that you are being exploited, as so many sacred medicines, I am sorry for the constant genetic abuse and mixtures, and mostly for all the unconscious use that make you a threat instead of a healing tool.


Every time I felt your shadow, you were the one telling me it was enough. Every time I misused you, you came and told me to stop. My meditations and journeys with you took me to the most beautiful places within and for that I’m deeply grateful. When any conventional medicine could help me, your elements supported me with love. You also taught me how toxic alcohol was in my life and how I didn’t need a single drop of it.
You brought me relief, you brought me peace and then you taught me about connection, but mostly freedom.


You supported my reborn and helped me to learn how to walk by myself. I see you as much as you see me. I feel you as an Entity of consciousness and I respect you as my Teacher. I don’t crave you, I don’t need you at this point of my life, but I love you, and I honor you. Happy 4/20 everyone. Happy Happy day, Maria 🌿
(Photo wasn’t taken in Portugal)

P.s- My dad just shared this post and after so many years of dialogues and fights around this subject, this was the best gift I could get on this 4/20. Communication heals. Love and Respect are everything ♥️

Sarajevo. “Se tiveres medo é mais fácil virarem-te contra mim”

O rio Miljacka, que atravessa a capital da Bósnia e Herzegovina, corre independentemente do que testemunha. As águas turvas, baixas, onde centenas de corvos se banham, viu a história da humanidade dar várias reviravoltas nas suas margens

Acordámos em Sarajevo. A nossa cave improvisada de alojamento local fica na parte antiga da cidade. Acordámos com o chamamento muçulmano para a oração da manhã. Há mesquitas por toda a cidade. Viremos a saber que são pelo menos cem.

Ontem chegámos do estádio de futebol de táxi. A viagem, que durou pelo menos dez minutos, ficou-nos por seis marcos bósnios. Aqui, os taxistas usam o taxímetro e são honestos, não nos querem aldrabar só porque não temos ar de quem vive cá. Cada marco vale metade de um euro. A viagem ficou-nos por três euros.

Acordámos em Sarajevo e a grande questão que me aflige por esta altura é: como se começa um texto sobre este lugar? Como se pode passar, através de palavras, tudo o que a capital da Bósnia e Herzegovina nos faz sentir assim que se pisam estas calçadas? Será a capital que mais nos marcará nesta viagem, onde o luto contrasta com a vida do bairro otomano, as lápides dos cemitérios infinitos refletem o sol que ilumina toda a cidade, a estátua de João Paulo ii em frente à grande catedral se cruza com o Museu dos Crimes Contra a Humanidade e do Genocídio de 92/95, onde os risos das crianças fazem estremecer as memórias da cidade que sofreu no interior do mais longo cerco de guerra desde a Idade Moderna.

Na guerra mais recente, no início da década de 90, Sarajevo esteve sob cerco durante quatro anos e as pessoas, os monumentos e os museus vão lembrar-nos disso constantemente, embora seja uma ferida em que ninguém gosta de tocar.

Descemos a colina onde estamos hospedadas e vamos ao encontro do pequeno rio Miljacka, que separa Sarajevo e Sarajevo Oriental. As águas não formam uma grande corrente, pelo contrário. O rio passa lentamente, é baixo, escuro. Nele banham-se centenas de corvos que voam à volta da cidade, dando-lhe um ar ainda mais misterioso.

As margens do rio Miljacka estão ligadas por dezenas de pontes. Dirigimo-nos à mais conhecida, a Ponte Latina. Foi por ali que o arquiduque Francisco Fernando foi assassinado, em 1914, por um jovem, Gavrilo, que viria a ser capturado. Conta-se que Francisco Fernando e a esposa não morreram logo a seguir ao atentado, tendo sido ambos transferidos para uma residência onde os cuidados médicos não eram os melhores. “Se tivessem sido levados a um hospital militar com as devidas competências, se calhar, a esta hora, não estávamos aqui, nesta Sarajevo”, dizem-nos à porta da Nova Escola Edhem Mulabdi.

Hoje o clima é de paz, mas de política “infinitamente instável”, explica-nos um comerciante no bairro otomano. Sarajevo é uma salada de culturas, etnias e religiões.

Contam-se três principais religiões, três diferentes línguas que se encontram na mesma base linguística e sabem-se dois alfabetos. As etnias dividem-se entre os sérvios ortodoxos, associados à igreja tradicional russa e daí, em tempos de Guerra Fria, tendencialmente demonizados pelos Estados Unidos da América; os bosniaks, que se guiam pelo islão e as suas leis, atraindo muçulmanos de todo o mundo para dentro das fronteiras bósnias; e ainda os croatas católicos, que tiveram um pesado papel na guerra do país.

“Aqui não há bons nem maus, fomos todos marionetas do poder internacional e sabemos disso. Eu não defendi pátria nenhuma, eu defendi a minha família”, conta-nos um outro comerciante, que não se quer identificar porque “as paredes todas têm ouvidos”, mas que se assemelha demasiado ao ator norte-americano Bill Murray. “Sou filho e neto de fotógrafos, somos gerações e gerações de comerciantes. Esta loja existe há cinco gerações. Nunca quis saber se a minha mulher era muçulmana ou croata, nós éramos todos um. Sarajevo nunca diferenciou a etnia ou a religião de ninguém, até porque aqui ninguém é religioso”, diz-nos de forma assertiva.

Mais tarde, são vários os habitantes locais que apoiam esta tese. “Nós somos católicos, muçulmanos ou ortodoxos, mas é no papel. As pessoas não frequentam as mesquitas ou as igrejas. É tudo uma questão de poder: dizem que há três etnias e três religiões, e assim temos três presidentes que não se entendem”, explica.
Na Bósnia, a política é um jogo complicado. Existem três líderes que assumem a presidência num sistema rotativo, de oito em oito meses.

Na loja ao lado do seu comércio de artesanato está o laboratório de fotografia da família. Pergunto ao sósia de Bill Murray se tirou fotografias na guerra, onde combateu. “Milhares, mas não vos vou dar ou mostrar. É só sangue, mortos, pedaços de corpos no chão. Não vão aprender nada ao olhar para elas, já pensei em queimá-las todas”, diz-nos enquanto olha para a montra, que tem a luz apagada.

Será que pode chegar a guardá-las, já que fazem parte da História? “A História está aqui, nas ruas, onde vês mulheres de hijabe no mesmo grupo de amigas de minissaia. Os meus filhos sabem tudo sobre a guerra, as versões, o que se passou. Não preciso de contar a história a mais ninguém. O melhor que podemos fazer pelo mundo é dar educação às novas gerações para que não deixem que a História se repita. Mas era bom que se ouvissem as versões todas.”

Depois de nos dar um cartão-de-visita onde está o contacto da mulher, que organiza visitas guiadas às redondezas de Sarajevo, despede-se de nós com um abraço.

Os locais de Sarajevo dizem-nos que o Ocidente os ajudou porque a geopolítica assim o exigia. Em toda parte há referências e até uma estátua de Bill Clinton.

“A Croácia e a Eslovénia interessavam aos alemães. Mas o que é que eles tinham? Vende-se vinho como se fosse da Eslovénia quando o vêm buscar à Macedónia. Eu amo as pessoas da Eslovénia, o problema é sempre do poder e dos jogos da política. Nós, cidadãos, somos todos feitos do mesmo e só queremos viver em paz”, conta um senhor de idade à porta da mesquita mais antiga de toda a Sarajevo, que é conhecida por Mesquita do Imperador.

Durante séculos, Sarajevo foi a zona fronteiriça entre o Império Austro-Húngaro e o Otomano. A influência de ambos nas ruas da capital são notáveis e as igrejas e as mesquitas são só algumas das heranças dos dois mundos.

Espreitamos para o largo que se estende à porta da Mesquita do Imperador. Os turistas não podem entrar nas mesquitas quando as pessoas estão a rezar. Mas, como a sorte nos tornou amigas de Selim Hafiz, de 55 anos, responsável pela mesquita e por chamar todos os dias os crentes para as orações, este convida-nos a entrar na mesquita às 15h54, hora da primeira oração dessa tarde, à qual assistimos.

Selim Hafiz é o muezim da mesquita mais antiga de Sarajevo. A sua responsabilidade é a de anunciar a toda a cidade, sem microfone, do alto da torre da mesquita – a almadena – que está na hora de se dedicar à oração. Durante a guerra, todos os dias subiu os mais de noventa degraus para chamar os fieis para rezar “caíam bombas, disparavam tiros, mas Deus nunca quis que me acertassem”.

No islão existem cinco orações obrigatórias, mas apenas os homens têm de se dirigir à mesquita: “As mulheres têm uma vida muito ocupada, não só trabalham nas suas profissões como ainda são mães e esposas, são o centro do nosso mundo”, conta, depois da oração, um muçulmano que não o era até ter estado na linha da frente de combate. “A guerra ensina-nos muito. Os meus pais eram muçulmanos por hereditariedade, mas nunca me educaram para ser religioso. Mas, depois, veio a guerra. E a guerra muda tudo.”

Na mesquita, os homens rezam mais à frente e as mulheres mais atrás. Assim que veem o meu ar desconfiado em relação à separação de géneros, que em Portugal também se dava em muitas dos templos católicos num passado demasiado recente, explicam-me: o homem vem à mesquita para rezar, para se afastar do mundo e dedicar uns momentos do seu dia à oração. “Já viu as nossas posições a rezar? Acha que a natureza de um homem lhe permitiria ter todos os pensamentos dedicados só e apenas a Deus se à nossa frente estivessem lindas mulheres?”, pergunta-me em jeito de explicação. Hoje é voluntário e ajuda Selim na mesquita. “No fundo, a base de todas as religiões é digna e semelhante, defende–se o amor ao próximo acima de tudo.

O problema é o que os homens fazem delas, não é?” pergunta, enquanto Selim lamenta o seu fraco inglês. “Gostava tanto de vos explicar em palavras certas o que sinto cá dentro. O meu coração está tão feliz por vos receber aqui”, diz-nos, enquanto nos dá de lembrança um masbaha, que se assemelha a um rosário católico, com bolinhas em madeira.

Pergunto-lhes sobre a entrada da Al- -Qaeda pela Bósnia, sobre o extremismo muçulmano e como é que veem a islamofobia que resulta da propagação do terror por grupos como o ISIS. “Essa gente não nos representa. Dão um título aos ideais deles e chamam-lhes fé. Leia o Corão e diga-me em que parte é que diz que podemos matar. Não podemos, nenhum humano tem esse direito. E se Deus pode tudo, porque haveria de querer sacrificar vidas? Querem espalhar o medo, e sabes porquê? Se tiveres medo, é muito mais fácil virarem-te contra mim. Sem medo, não há poder.”

A conversa estende-se por várias horas e, no fim, Selim, filho do mais famoso muezim de toda a Europa, que faleceu aos 84 anos, despede-se de nós com as mãos dadas às nossas. “Vou sempre ter-vos nas minhas orações, as nossas profissões são parecidas. Espalham a palavra da paz e do amor pelo mundo.”

Foto: Diana Tinoco

Selim Hafiz é o muezim da mesquita mais antiga de Sarajevo. A sua responsabilidade é a de anunciar a toda a cidade, sem microfone, do alto da torre da mesquita – a almadena – que está na hora de se dedicar à oração. Durante a guerra, todos os dias subiu os mais de noventa degraus para chamar os fieis para rezar “caíam bombas, disparavam tiros, mas Deus nunca quis que me acertassem”. Publicado em:

Sarajevo. A toca do urso afinal era uma fábrica de cerveja

Autocarros que parecem salas de convívio, o aroma que anuncia o frio de Outono. As mãos geladas e o coração quente. Estamos na capital da Bósnia e Herzegovina e tudo o que se aproxima é inesperado

São cerca de três horas de autocarro de Mostar até Sarajevo, com muitas paragens e pessoas à mistura. Os lugares estão todos ocupados: senhores de idade, crianças, viajantes. Enquanto tento descansar, ouço uma gargalhada ao fundo do autocarro. É o resultado do encontro fortuito entre um português, um brasileiro e um casal de australianos.

Sentada num dos bancos da frente, vejo uma mãe chegar com uma criança e apercebo-me que tenho de ceder-lhe o lugar. Ao deslocar-me para a parte de trás do autocarro, passo automaticamente a ser apresentada ao novo grupo de camaradas. Ouve-se falar português pela primeira vez em várias semanas.

Numa das muitas paragens no meio do nada, entra uma senhora já de idade avançada, de lenço colorido na cabeça, estilo de camponesa, que faz lembrar as dançarinas de folclore do norte de Portugal. Não tem dentes nem vergonha da falta deles e, apesar de nada perceber de inglês, segue a conversa com um sorriso de orelha a orelha. Acabo por lhe piscar o olho e ela devolve-me o sinal, caso eu ainda não tenha reparado o quão de bem está com a vida.

As paisagens são de nos tirar o fôlego. Grande parte da estrada segue à beira rio, entre montanhas. Lembra-me a linha de comboios do Douro, que tantos anos percorri e hoje vai amontoada de turistas deslumbrados com a paisagem. Aqui, somos nós que estamos em êxtase, enquanto os habitantes locais parecem nem dar por ela.

Tento dormir um bocado, vou finalmente chegar à famosa Sarajevo, da qual Milan Rados, o meu falecido professor de História do Mundo Contemporâneo da Faculdade de Letras do Porto, tanto nos falava. A mítica Sarajevo dos Jogos Olímpicos de 1984, a Sarajevo onde rebentou o primeiro cartucho da Primeira Grande Guerra, a Sarajevo multicultural, da paz e da lembrança dos dias que não o foram. Sarajevo é uma grande cidade, rodeada de verde, uma capital bem protegida pelas montanhas que se veem no horizonte.

Ao chegarmos à estação passamos às despedidas. O casal de australianos dá-me um bilhetinho com os respetivos contactos. “Talvez um dia nos encontremos por aí”, diz-me Michael, enquanto o fintava com dois beijinhos. A nossa mania de dar dois beijinhos deixa muita gente baralhada e nunca deixa de ter piada. Aírton, o brasileiro, também vai para o centro da cidade.

O “tram” é pequeno, velho e toda gente viaja apertada. Não percebemos como é suposto conseguirmos bilhete se ninguém consegue entrar pelas primeiras carruagens.

O anfitrião da “Guest House” onde deveríamos ficar hospedadas enviou um e-mail a dizer que afinal que o local está completo, mas que nos arranja outra casa onde podemos ficar. Depois de subirmos e subirmos mais um bocado, finalmente descobrimos o lugar, que fica na parte antiga da cidade.

Trata-se, no final das contas, de uma cave improvisada numa casa, até bem arranjada, mas que não tem as três camas prometidas. Negoceia-se um colchão a mais e um desconto. Cada noite fica-nos por cinco euros e meio.

Se Mostar era barata, Sarajevo não tem comparação possível. À procura de onde matar a fome, encontrámos um pequeno restaurante que não é mais do que um corredor apertado dedicado à juventude que ali para para fumar “shisha” (cachimbo de água). Pagámos um euro e meio por uma pizza média e um euro e meio por um hambúrguer.

Na rua principal de Sarajevo, onde centenas de lojas se alinham e pessoas de todas as etnias e religiões se cruzam todos os dias, damos de frente com Øystein, o norueguês que encontrara na viagem de autocarro de Dubrovnik a Mostar.

Depois de uma enorme festa, nem dois minutos haviam passado e tropeçámos no casal australiano de quem nos tínhamos despedido apenas algumas horas antes. Ali estávamos nós, na rua gémea da portuense Santa Catarina, mas em Sarajevo, a reunir todas as boas companhias de viagem até então. O brasileiro Aírton encontrou-nos logo em seguida e Øystein disponibilizou-se para nos mostrar um pouco da cidade que tão bem conhecia. Dezenas de turistas param para tirar fotografias na esquina onde o arquiduque Francisco Fernando foi assassinado – episódio que daria origem à Primeira Guerra. Depois dessa atração, Øystein convida-nos a visitar um“Bear Hole”. Já nos tinham falado sobre a existência de ursos nas montanhas dos Balcãs, mas daí a visitarmos um género de “toca de urso” assim no meio da cidade soa muito estranho. Neste tipo de viagens não é difícil perdermo-nos em más traduções e Øystein parece muito surpreendido por eu insistir que nunca visitei nada semelhante. “Nem mesmo em Berlim?”. Nem mesmo em Berlim. Claro que este mal-entendido não durou muito tempo. Mal nos aproximamos da enorme fábrica de cerveja, apercebo-me que é tudo uma questão de pronúncia: Øystein queria oferecer uma bela caneca de cerveja, num “Beer Hole”.

Assim foi. Ficámos um pedaço na enorme Sarajevske Pivara, uma cervejaria cuja comida e bebida condizem com a elegância e o conforto do espaço. Passado um pouco lá nos despedimos do nosso amigo escandinavo, que ia para o aeroporto. Aírton, que é fã incondicional de futebol, convida-nos a assistir a um clássico às oito horas. Parece-nos uma experiência que não devemos recusar.

O bilhete que nos permite entrar no antigo e pouco preenchido estádio custou quatro euros, os mais baratos já estavam esgotados. A equipa da casa, Fudbalski Klub Zeljeznicar, viria a perder um a zero com a equipa visitante, o Zrinjski de Mostar, líder da tabela.

Arnela, que conhecemos em Mostar, contou-nos que antigamente o futebol era uma desculpa para confrontos pós guerra, entre adeptos de etnias diferentes. Hoje, apesar da febre do espetáculo obrigar a carga policial e à equipa visitante a abandonar o estádio dez minutos antes do final da partida, as coisas já não são assim.

Ao intervalo, um adepto da equipa da casa olha o relvado. Pergunto-lhe o quão importante é este jogo e se o facto de a equipa adversária representar a extrema-direita croata influencia em alguma coisa a partida. “Isso era antigamente. Não quero saber de onde são ou quem joga por eles. Eu odeio todos os clubes que não sejam o meu. A nossa equipa está cheia de sérvios, a equipa deles tem gente nossa, só vimos cá pelo jogo. Nada mais importa”.

 

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/583735/sarajevo-a-toca-do-urso-afinal-era-uma-fabrica-de-cerveja-?seccao=Portugal_i