Cartas para Vadios// 3

Resende, 5 de junho de 2019

Dear Duki,

É meia noite e trinta e seis, finalmente todos foram dormir. Cá somos ninho de corujas, eu é que saí mais para o andorinha, mas a sério, os pais carvalho deitam-se tarde.

Eu tenho sido menina de manhãs, era mais nos meus tempos de Resende que eu acabava por me esticar mais nas horas. Mais tarde, feita à vida, já depois da faculdade, comecei a ganhar mestria no aproveitar das manhãs e do sossego pela noite.

Enfim, mas estou temporariamente de regresso a casa, não é mesmo? A primeira casa, onde aprendi a escrever. Reparo agora que é como um santuário literário para mim, esta casa. Foi aqui que assinei cada bilhete de boa noite para os meus pais, foi no quarto deles em frente àquele enorme computador que escrevi documentos em comic sans sem fim, a cozinha onde a minha mãe me ofereceu e emprestou livros. Onde nos rimos do Papalagui. Onde assinei todas as primeiras cartas.


Estar por cá e sentir-me mais conectada com a criatividade, depois de um bloqueio quase de um ano tudo isto é de uma substância que me ultrapassa. Sinto-me tão feliz.

Agradeço que seja contigo com quem partilho tudo isto. Saber de ti e da tua vida, partilhar toda esta loucura que vivemos este ano, ainda que sem nunca mais nos termos visto ou falado por chamadas como faço com tantos outros amigos com quem mantenho ligações fortes, mas distantes, bem presentes.

Também tu estás de volta a casa dos teus pais, porque assim teve de ser. Agora falamos disto que é voltar ao ninho amadurecidos, capazes de estarmos presentes para os nossos, sem qualquer tipo de fastio por cá estarmos, apenas com uma gratidão e uma enorme sensação de felicidade.

Hoje, que é mais ontem, a minha mãe lembrava-me, enquanto eu fazia o meu almoço à parte – já que agora não como carne e sei que é um fim do mundo para ela pensar em dois menus; que foi há 16 anos que viajei para a Bulgária. A minha primeira viagem Duki, foi há 16 anos. Meu Deus e eu estou tão ciente da importância que ela teve. Lembro-me de olhar pela primeira vez pela janela do avião. O êxtase de ver o céu.

O que é que vês da tua janela?

Aos dez anos, em 2003, fui à Bulgária representar a única escola do país que abria portas ao Projecto Sócrates. A sensação de descobrir um mundo absolutamente desconhecido confirmou logo um desejo já intrínseco de querer ir além das fronteiras do horizonte visual e explorar o mundo. Sabes quanto é que eu trincava de inglês? Ahahahah Exato, bola. Não cheirava quanto mais trincava.  Era o meu primeiro ano a aprender a lingua! Duki imagina-te a viajar para um país que tu nem sabias que existia, em que não percebes absolutamente nada do que os adultos falam, tudo é comunicação não verbal e respostas a todo o tipo de estímulos sensoriais. Eu estava tão pedrada de realidade! Ahah

Fui com a Sara e a Professora Fernanda, que era a nossa professora de Lingua Portuguesa e minha vizinha de prédio. A Professora Fernanda; lembro-me de olhar para ela com ar de admiração e respeito porém com um fascínio associado ao facto de ela representar tanto mundo diferente, só por ser ela. De Vila Real, solteira, tinha sido a diretora da escola e os alunos tinham-lhe o respeito de suster respiração. Sabes aqueles professores que conquistaram fama de maus, mas que depois todos nos apercebemos que eram também de uma exigência que nos quer bem e que nos ensina tanto? Pronto, dessa mesmo. 

A Professora Fernanda era dócil e tinha experiência de maternidade com os sobrinhos, pelo que nos adoptou durante uma semana como dois pintainhos que não fazem nem ideia ao que vão.

A primeira vez que andei de avião foi com uma mulher assim e uma colega, a Sara, que na minha história representa o carácter feminino rebelde, despachado, que sabe o que quer e que não está nem aí para os julgamentos que possam vir. A Sara era uma miúda linda, meu Deus. Tinha vindo de Lisboa para Resende, imagine-se só a mudança. Passados uns anos eu iria para Lisboa e pensaria na Sara com ainda mais carinho.

A Bulgária e toda a sua pobreza, ainda assim tão majestosa e impressionante. Fomos a escolas, ficamos em praias deslumbrantes e reunimos com professores de vários países. Visitamos grutas e templos antigos. Não me perguntes como, mas lá me conectei de tal forma com os adultos do grupo que no final vim cheia de presentes, bilhetes e saudades de pessoas.

A partir daí Duki, veio o mundo. Comecei uma expedição contínua motivada pela vontade de investir no Inglês e em todas as oportunidades que pudessem trazer-me mais noções sobre o planeta em que crescia. Tinha dez anos quando me apercebi da dimensão da gratidão que sentia pela família que a vida me tinha dado.

Ter crescido em Resende foi uma das melhores prendas que eles me podiam ter dado. Poder crescer perto do campo, com amigos de todas as idades e vindos de tantos contextos diferentes, sempre com noções de partilha. Eu tinha dez anos quando anunciei aos meus pais que ia a uma reunião dos Escuteiros locais. “Mãe vou a uma reunião dos escuteiros”, e fui. E a partir daí fui a todo lado que a vida me deixou, ora de mochila, ora de mala, a dormir no chão ou em cama. O mundo tornou-se a minha concha.

Resende é-me imensamente especial. É o cheiro a pão quente e canela de madrugada, as caminhadas ao anoitecer e o “bom dia menina”, “boa noite menina” dos que me viram crescer.

Antes de voltar à estrada acho que faz sentido falar-te de onde venho, mas agora “Boa noite menino” que me vou deitar.

Um beijo.
Gosto imenso de ti,


B.

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviada ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

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