The End of the F***ing World

Quando era miúda encontrava imensas pessoas famosas na rua. Ao contrário do que acontece agora, sabia sempre quem eram e reconhecia toda gente da televisão.

Cheguei a ter um caderninho só para autógrafos e fiquei mesmo ofendida quando, para aí aos seis anos, as Tentações me recusaram uma assinatura num restaurante em Resende. Que más.

A vida vingou-se e acabei a dançar com os Anjos em direto na Praça da Alegria aos 10 anos, quando fomos lá falar sobre o facto de Resende ter tido a primeira escola preparatória do país com um programa de intercâmbio europeu para professores e alunos. Só saí do estúdio quando tive o meu caderno devidamente assinado por toda e qualquer possível alma que eu tivesse reconhecido da televisão. Aquilo era mesmo importante para mim, ora não ficassem ali guardados, na minha história, aqueles seres que partilhavam ecrã com os meus desenhos animados preferidos.

Com o tempo veio a noção de que aquelas pessoas eram tão normais quanto eu. No final do dia, todos eles comem, cagam e choram, não é verdade?

Além do mais, deixou de ser suficiente partilharem o ecrã com os meus heróis preferidos, a maioria dos ditos famosos revelavam-se pessoas cujo trabalho não puxava muito pela minha admiração. Tal e qual como acontecia na minha vida, já não bastava simplesmente aparecer para ganhar uns pontos de consideração. No meu caderninho, comecei a guardar nomes menos conhecidos mas que me trouxeram as memórias mais lindas.

Além disso, a timidez. Na adolescência, foram dias e dias seguidos fechada no quarto a ouvir música, a ler e escrever, ou a fazer recortes em revistas e jornais, mas sobretudo a debater-me com a necessidade de estar sozinha.

Começava a ganhar as primeiras noções de espaço e a perceber que só conseguia ser extrovertida com determinados grupos, em momentos e contextos próprios e a ideia de ir ter com uma pessoa desconhecida e pedir-lhe um autógrafo assim, só porque sim, tornou-se bizarra.

No entanto, em dimensões paralelas, davam-se os meus primeiros passos de coragem para partilhar o que ia escrevendo e aprendi o quão saudável pode ser um gesto de validação artística, o quão bem sabe ser acarinhado em resposta ao amor e dedicação que pomos na nossa manifestação criativa.

Por isso, como em tudo, o truque é encontrar o equilíbrio e se eu gosto e admiro o trabalho de alguém, seja ou não conhecido, dando-se a oportunidade certa, o filtro cai e lá deixo que o coração diga o resto, às vezes de formas que até a mim surpreendo.

A vida ensinou-me que há formas lindas e subtis de expressar admiração e reconhecimento sem invadirmos o espaço de ninguém. E sabe tão bem aos dois lados!

Há uns meses, estava eu a trabalhar na gestão das operações do Waking Life, na entrada do festival, quando um dos voluntários me pergunta entre dentes: “Balolas. Balolas! Este não é o ator do The End of the F***ing World?”.

Ora estava eu a morrer de sono, acabada de entrar no turno e a distribuir os sacos do lixo que o pessoal tinha de mais tarde devolver cheios, quando o Alex Lawther pára à minha frente.
Se o rapaz não me tivesse chamado à atenção, distraída como sou provavelmente nem reparava, mas realmente… só podia ser ele.

Como sou boa a passar momentos embaraçosos, numa de precaução, a única coisa que me saiu depois da saudação de boas vindas automática e sentida foi: “Sorry, is it possible that I may know your face from somewhere?”

Muito tímido, simples, com ar de miúdo fofo e com um sorriso atrapalhado respondeu-me “hum… I don’t know… but it’s not impossible, I am an actor in England… maybe is that?”

Sorri e não me saiu nada. Na-da. A timidez dele ativou a minha e pronto, eu que adorei a representação dele na série da Netflix, bloqueada pela aleatoriedade da coisa perdi uma bonita oportunidade de lhe dar um “passou bem” emocional.

Disse-me adeus com a mão e eu atrapalhada respondi. Que naba. Zero. Qual validação artística… nem uma das minhas saídas com graça, nem uma piada ao lado, nada. Mas enfim, dei-lhe um saco do lixo. Ri-me sozinha.

O festival foi passando e ainda me cruzei com ele uma vez perto do lago. Não me viu mas eu fiquei feliz por constatar que se estava a divertir. É que tem mesmo ar de bom miúdo.

Depois de uma semana para lá de intensa, com muitas emoções à mistura, muita dança, muito amor e muito trabalho, chegou por fim a última e derradeira tarefa da nossa equipa, já sem voluntários: organizar os autocarros para que o pessoal fosse embora feliz e contente da vida.

Um calor abrasador a la Crato, pessoal de ressaca filas e filas e filas e autocarros e autocarros e autocarros. Nós? Cheios de pica. Estava quase quase quase. Já meia a derreter, meia a desidratar, lá andava eu toda feliz a distribuir o pessoal e a contar lugares por preencher.

Sentia-me realizada, não só tínhamos sobrevivido quanto constatado que a terceira edição do festival tinha sido um sucesso. O Waking Life é um projecto incrível, fruto da boa vontade de uma comunidade intercultural do qual me sinto feliz por fazer parte.

As pessoas amaram o festival, havia aquela sensação de nostalgia no ar, eu mandava piadas para o pessoal se animar e ordenava-lhes que regressassem no próximo ano.

1,2,3….. Ok entram mais dois! Afinal mais um. Oh! O casal tinha saído para trocar a mochila. Estes dois que entraram, afinal têm de sair, constato. Lá volto a entrar para os avisar quando de repente prontos a alapar o rabo depois do Tetris das mochilas eles lá se viram. Claro que era o Alex e ao lado o amigo.

Ahahah ri-me por dentro. Ora dou um saco do lixo para a mão, ora sou portadora de más notícias! A vida e o seu sentido de humor lá me traziam a oportunidade não planeada de contar mais uma história.

Meiguinha e já a prever o ar de calimero a surgir-lhes no rosto, pedi desculpa pelo incómodo mas expliquei-lhes que teriam de sair porque, afinal, aqueles lugares já estavam ocupados. No entanto, nada havia a temer: tinham lugar no autocarro estacionado imediatamente atrás daquele.

O ar de calimero concretiza-se. O amigo bufa. O Alex levanta-se, novamente de costas organiza as coisas e eu dirijo-me para o meio do autocarro.

Ora, eu bem sei como estas coisinhas chateiam, não tivesse eu Mestrado em “Colecção e Sobrevivência a Pequenos Azares da Vida” que logo me levaram ao Doutoramento em “Paciência Infinita, Copo Meio Cheio e Outras Artes da Mente”.

O único truque para sobreviver a este mundo é mudar as lentes dos óculos que usamos para enxergar o que nos rodeia.
A decisão de nos agarrarmos à lamentação é nossa e é mesmo possível coar os grãos do drama à nossa volta. Há coisas que simplesmente não merecem o nosso aborrecimento porque em nada dependem de nós. É como quem se lamenta constantemente sobre o tempo. Ele não vai mudar por acumulação de queixas! Podemos ficar com uma nuvem cinzenta à nossa volta o resto do dia, ou simplesmente rir destas tropelias. Eu prefiro rir de tudo, não consigo levar nada demasiado a sério.

Os dois amigos viram-se cabisbaixos, finalmente prontos. A ironia do momento é digna de gargalhada, não fosse o protagonista da série em questão.

Com ar dócil mas quase de beicinho, encolhe os ombros e com um sorriso de esguelha olha-me nos olhos com ar de quem está habituado a que estas coisas lhe aconteçam. Passa por mim para descer as escadas, ficamos a poucos centímetros um do outro pelo que me sai da boca fora em tom fofo mas gingão:

-Come on maaaan, it’s not the end of the fucking world. :)))

Assim que o digo, o amigo levanta a cabeça curioso. Eu dou um salto ao aperceber-me do que acabava de acontecer. O Alex olha num instante para trás com um sorriso de orelha a orelha enquanto me pisca o olho e acena.

Aceno e pisco o olho de volta. Desço as escadas enquanto solto umas gargalhadas sozinha. Que incrível.

Dou sinal ao autocarro para seguir, ainda faltam uns quantos. Mas quando todos se forem embora, hei de ir para a tenda a correr: afinal é este tipo de histórias que me dá gosto escrever no tal do meu caderninho.

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