Cartas para Vadios// 2

Resende, 4 de junho de 2019

Dear Duki,

São duas da tarde e acabo de acender um cigarro. Meu Deus, a vida realmente ensina-nos a medir as palavras. 

Cresci a adorar a liberdade. Os meus pais falavam-me dela e de toda responsabilidade que ela carrega e sempre me senti absurdamente grata por isso. A liberdade tornou-se um hino que me acompanha em loop de ser e que se fez sagrada. 

Tudo que nos traga vício leva-nos um pedaço de liberdade, pelo que sempre achei que fumar um cigarro seria permitir-me perder um pedaço da ventania que por cá anda. Com o tempo, aprendi a saber usufruir do que, no presente, alguma dessas incongruências acrescentam a este cirandar sem que a liberdade fique comprometida. Já sei como programar-me para não o fazer.

As pessoas dizem tantas coisas… Tenho aprendido cada vez mais a estar calada. Não porque tenha medo do que me vá sair, é só mesmo porque me tenho apercebido cada vez com mais clareza da dimensão de tudo aquilo que não sei que está para vir. Sempre que acho que sei, pimbas. A esfoladela de joelho agora sabe mais a beliscão no braço.

Lá está, a liberdade carrega responsabilidade e só há muito pouco tempo me recordei do verdadeiro poder das palavras. 

Estou na lavandaria sentada de rabo na tijoleira branca, bem junto à janela, com a coluna JBL a tocar uma das músicas da playlist que criei para me acompanhar em toda esta roda-viva que tem sido a minha vida nestes últimos tempos.

O tabaco de enrolar não me sabe propriamente a nada, a não ser ao que na altura me está a apetecer. 

Acabo de receber um mail da Diana com uma foto minha, de há uns tempos, lá onde a terra tem tanto de abençoada como de dor. Adivinha só quem é que está de rabo na tijoleira e cigarro na mão com ar de quem sente a vida às costas, mas com ar de coragem para a atar à cintura que nem mãe que leva o mundo à frente? Ahah, a vida Duki. A vida é incrível.

A minha mãe já se habituou à ideia de que de vez em quando lá irá ver um pedaço de Pueblo na banca da cozinha. Não é que se contente com a minha resposta de que “mamã, não te preocupes. Eu não fumo sempre, mas agora estou a precisar”. E até já acendemos um ao mesmo tempo. Ela é mestra em saber que as coisas não são sempre ou preto, ou branco.

Ontem escrevia-te sobre a minha elasticidade em função do sol e olha, cá estou eu a aproveitar uns raios mais malandros que fogem às nuvens que chegaram ontem para aliviar a tosta dos últimos dias. Ai não acredito. Ah!Ah! Eu acho que nunca tinha visto um lagarto a espreitar aqui na lavandaria. Está aqui, à minha frente, debaixo da janela. Vou mandar-te um story.

Estar em Resende faz-me sempre re-visitar esta dimensão das origens. O ter crescido meia aqui, meia acolá, a aperceber-me que não importa onde esteja, serei sempre eu a criar os meus lugares. É engraçado como perguntas que à partida são dadas como de fácil resposta para tantas pessoas, para mim são as que me causam mais confusão. Desde a epopeia que já conheces associada ao “como te chamas”, às derradeiras “de onde és?”, “onde vives?”, “o que fazes?”.

Às vezes gosto de imaginar como seria responder a tudo isto sem ser como quem decorou uma canção, mas quando isso acontece e o descrevo assim, só por alto, com pouca chama de entusiasmo, é porque ou estou muito cansada, ou não vale mesmo a pena. Mas quando é que não vale?

Tudo à minha volta me faz analisar a forma como vivo a minha vida; com um olhar curioso mas um quanto de pressão para que se compreenda. De repente vejo-me a dar explicações que nem eu tenho. Porque é que os humanos gostam tanto de perceber tudo?

“Eu só gostava de te compreender”, dizia-me um amigo há uns dias em Lisboa, quando lá fui agora para recolher apoios para o filme. Olhei para ele com muito carinho num final de noite bem passada, e bem nos olhos dele ali estava o interesse genuíno de um amigo que gostaria de me compreender. Mas eu também estou a descobrir, não é verdade? Estamos todos no mesmo, só que uns vão pela estrada, outros escolhem a terra batida, há quem vá descalço pelas ervas e quem surfe ondas de flores ora com, ora sem espinhos.  Então eis que lhe respondi “também eu gostava” enquanto me ria à gargalhada.

Fez um ano em Março que a minha vida levou todo o abanão que eu tanto desejava. Eis-me feita à estrada a desbravar mato entre trabalhos e o projecto que de espírito e vontades própria se fez criar.

É a segunda primavera em que o conceito de casa, estabilidade, relacionamentos, enfim as estruturas a que nos habituamos existir estão expostas à indignação da incompreensão dos que me rodeiam e eis que já não me ralo com isso. 

O incrível de sermos flexíveis e seguirmos o caminho que acreditamos ser o melhor para nós, é que nos habituamos a perceber que o que faz sentido hoje, pode já não fazer amanhã. O sítio onde estou hoje pode ter absolutamente nada que ver com o lugar onde vou estar amanhã. Onde é que vou estar amanhã? Já desisti de tentar programar coisas a longo prazo na minha vida, tu sabes disso. Para a semana sigo para o Canadá, depois para lá do Mediterrâneo, planos…Talvez em Agosto, quem sabe?

A sardanisca ainda aqui anda, como eu, debaixo do sol. A natureza está em constante comunicação connosco, se assim a quisermos ver. Quem sempre gostou de histórias, padrões e se fascina pela simbologia das coisas sabe que estar vivo é um constante explorar de estímulos, ora pela arte da vida ora pela estética do passadiço. Chama-me maluca mas estar aqui sozinha, de cigarro na boca e olhos fechados a apanhar sol e de repente ver pela primeira vez um lagartito nesta lavandaria, tem muita piada.

 
Decidi procurar o que é que os antigos mestres de observação e comunhão com a Terra dizem sobre a simbologia do aparecimento de um lagarto num determinado momento do percurso guiado pelo xamanismo enquanto postura de ser, em conexão profunda com a Mãe Natureza que comunica constantemente.

O espírito do lagarto é associado à flexibilidade e adaptabilidade ao ambiente, sinal de superação a circunstâncias adversas, sendo capaz de acompanhar a corrente da vida e o valor inerente de amalgamação na natureza.

São associados à independência, astúcia e introversão. Ahahahah! Que tal? Sentes alguma ligação?

Enfim, hoje é mesmo um daqueles dias. Bendito cigarro. Bendita liberdade.

Logo escrevo-te mais, tenho de ir trabalhar. E fazer xixi.


Gosto imenso de ti. 

B.

Ph: Diana Antunes

Cartas para Vadios é uma série de cartas enviadas ao meu incrível amigo Duki, no Kosovo.

Um pensamento em “Cartas para Vadios// 2”

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s