Hungria. “Estão a falsificar a nossa história”

Em Budapeste sente-se a pressão de um governo ditatorial e nacionalista que tenta alterar o passado em proveito próprio. Mas há ativistas que não desistem de manter vivo o respeito pelas vítimas da história de um país que parece ter esquecido o seu legado

A viagem da Sérvia até à Hungria ganhou o prémio na categoria de “a mais desconfortável da vida”. Foi a primeira que fizemos em modo interrail, cujo passe nos permitia deslocarmo-nos de comboio durante cinco dias por quaisquer países incluídos no serviço. Com o passe da Eurail, é raro termos de reservar lugar nos comboios, mas sendo este um noturno foi preciso passar por uma bilheteira e pedir dois lugares de Belgrado até Budapeste.A modalidade da reserva incluía uma “cama” e daí que a nossa ingenuidade nos levou a pensar que as próximas oito horas seriam as de maior conforto de toda a experiência balcânica. Estávamos absolutamente erradas. Quando demos de frente com a cabina que nos estava destinada, demos connosco num estreitíssimo compartimento cujas camas se resumiam a seis tábuas forradas a tecido, três de cada lado da cabina, cuja estabilidade era no mínimo duvidosa.

Chegámos à conclusão que o mais seguro seria optar por escolher as camas do terceiro andar, não fôssemos nós levar com aquilo na cabeça. As escadas improvisadas provocaram alguns ataques de riso e a quase impossibilidade de as usar provocaram uma reprimenda em sérvio do revisor, que nos viu a tentar apoiar os pés numa das camas improvisadas. O calor provocado por um exagerado aquecimento central tornou-se insuportável e decidimos abrir as janelas do corredor, com esperança que corresse um pouco de ar fresco. O ar lá fora era gélido, o luar refletia-se nas enormes planícies que corriam a alta velocidade, num cenário digno de um filme de Hayao Miyazaki.

Bem encostadas, cada uma do seu lado da cabina, lá acabámos por adormecer e só acordámos quando a polícia das fronteiras nos bateu à porta. Estivemos imenso tempo parados, tanto na saída da Sérvia como na entrada para a Hungria, cujas normas fronteiriças estão mais estritas que nunca. De novo de olhos fechados, já só voltaríamos a acordar com os berros do mesmo revisor rezingão e de alguns dos passageiros que nos avisavam sobre a chegada a Budapeste. Eram seis da manhã, já havia imenso movimento nas ruas. Em frente à estação estava um dos imensos Starbucks da cidade. Eu nunca havia entrado num porque os preços sempre me pareceram ridículos, e com razão, já que dei por mim a pagar seis euros por um sumo de laranja natural que chorei durante todo o dia. A moeda ainda não era o euro, mas o ar era o mais ocidental que respirávamos em dias que nos pareciam meses. A noção do tempo em viagem é sempre confusa, um dia pode demorar um ano ou uma hora, as datas deixam de ser assim tão importantes e a luz do sol é o ponteiro que melhor nos guia.

Em Budapeste ficámos hospedados em casa de um casal amigo que está a trabalhar há um ano na cidade. O emprego fica numa multinacional, trabalham com vários conterrâneos e têm direito a ir a Portugal uma vez por mês, viagem essa comparticipada pela empresa.

A casa onde vivem é digna de um cenário de filme clássico italiano. Ao entrarmos por um portão de madeira já muito gasta, um enorme terraço circundado por varandas imponentes e várias plantas nos beirais dão um ar sublime àquilo que, por fora, parecia só a entrada para uma casa velha.

Com enormes pilares verticais, ao cimo vê-se o céu azul limpo, indicador de que também em Budapeste vamos ter sorte com a meteorologia.

Depois de repostas as energias fomos até ao museu Casa do Terror, cujo objetivo é imortalizar as vítimas dos regimes fascistas e comunistas. O museu, inaugurado em 2002, é massivo, interminável e exaustivo. As enormes salas estão desenhadas e pensadas ao pormenor para que o visitante sinta o desconforto natural de uma casa que serviu de teto a inúmeras torturas e mortes de vítimas de sistemas desumanos. Porém, para quem tiver algum conhecimento mais aprofundado da História, é nítida a tentativa de alteração de contextos e cenários políticos em favorecimento de um sistema nacionalista.

Assim o reclamam ativistas húngaros, maioritariamente de gerações mais velhas porque “os mais novos não se podem mostrar contra o sistema, caso contrário ficam sem emprego”, explicam-nos mais tarde. Consideram o museu um atentado à história da Hungria, numa tentativa de tentar minimizar a participação húngara no desfecho da limpeza étnica durante a ii Guerra Mundial. Maria Schmidt, diretora e curadora do museu, tem sido acusada de alterar a história e ignorar o Holocausto, focando-se na ocupação soviética e ignorando a participação da Hungria nos horrores da ii Guerra Mundial.

“É mais uma aliada do sistema de Orbán, ela faz parte do governo dele, a mesma historiadora que considera Schengen o fim da soberania do seu país, que afirma que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é o maior causador da crise europeia por colocar os direitos humanos em primeiro plano em vez da defesa das fronteiras”, lê-se num dos documentos de protesto contra a “falsificação da História”.

“Quando vieram para o poder, há sete anos, a primeira coisa que fizeram foi reescrever a Constituição e mudar o primeiro parágrafo, como se 60 anos de História não tivessem existido. Como se a minha existência nunca tivesse acontecido”, diz-nos Andrew, cruzando os braços e falando calmamente. É professor de História e tem dois filhos. O cabelo branco não o impede de estar no seu turno de protesto todas as semanas, mesmo sendo de fora da cidade. Nascido em 1957, assistiu ao domínio soviético, os pais foram vítimas dos nazis e a avó foi baleada na cabeça nas margens do Danúbio, uma vez que todos eram judeus.

O memorial chama-se “Memorial às Vítimas da Invasão Alemã”. Deveria homenagear as vítimas do Holocausto e tudo parecia bem até que, depois de construído, uma parte da população se apercebeu de que “tudo estava errado”. “A estátua mostra o Anjo Gabriel de maçã real na mão e a águia alemã pronta para caçar. Eles querem fazer parecer que a Hungria foi uma vítima da ocupação alemã quando a História está farta de nos provar que a Hungria foi aliada dos Alemães. Isto não é correto. Nós não fomos ocupados.”

Também o sistema eleitoral foi alterado assim que subiram ao poder, desde a organização geográfica ao número de rondas de votos. O que faz com que este governo, com apenas 44% dos votos, tenha o poder, uma vez que assim foi possível conseguirem dois terços dos lugares no parlamento.

Frente à estátua está um conjunto de elementos que os ativistas colocaram como lembrança constante das vítimas do Holocausto. “A minha mãe morreu em Auschwitz”, lê-se num dos cartazes. Há traduções em várias línguas do documento que explica a todos que visitam o monumento a gravidade do que ele representa. “O que me preocupa mais são as gerações mais novas. O sistema de ensino é tão mau que eles não fazem ideia do que se passa, não conhecem a história, não têm posição política”, explica Andrew. “Os meus filhos, com mais de 20 anos, descredibilizam constantemente o perigo desta ditadura pseudodemocrática e nem sequer entendem o populismo. É assustador que a maioria dos apoiantes da extrema-direita sejam os jovens.”

Na sua opinião, o complexo de inferioridade ajuda ao crescimento de uma sociedade machista, racista, xenófoba e homofóbica. Propaga-se uma ideia de soberania e poder de um país que, na verdade, está em constante desmoronamento. Mas o que mais o revolta é que os maiores propagadores destes ideais são os jovens: “Como pode haver tanto ódio numa geração tão jovem quando eles nem passaram pelos sistemas como nós? Deviam ser eles a mudar mas, neste país, os mais velhos são os que têm a mente mais aberta.”

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/585972/hungria-estao-a-falsificar-a-nossa-historia-?seccao=Portugal_i

Migrantes. Na Sérvia o pesadelo ainda não acabou

A fronteira da Sérvia foi a mais complicada de passar. Mandam-nos sair do autocarro, abrem-se todos os possíveis compartimentos e percebemos mais tarde que a situação do tráfico de migrantes assim o exige. Os que trabalham com o assunto contam-nos que a Sérvia está lotada e os que vieram a sonhar com a Europa não têm onde ficar.

Chegámos à Sérvia já era noite, depois de uma viagem de doze horas de autocarro. Os assentos eram desconfortáveis, não havia internet e as pessoas não falavam todas as mesmas línguas, o que dificultava a comunicação. Uma rapariga cigana romani de 23 anos trazia consigo dois filhos, um ainda com meses e uma menina de dois anos. Iam sentados à nossa frente e na fronteira implicaram com o passaporte e sobrenome das crianças, que era alemão, como o do pai.Ao fim de algum tempo deixaram-nos passar até à entrada da Sérvia, mas obrigaram-nos a sair do autocarro e a sentir cada extremidade do corpo a gelar, já que as temperaturas naquela zona eram as mais baixas que sentiríamos durante toda a viagem. Abrem todos os possíveis compartimentos e inspeccionam todo o autocarro.

A partilha deste momento com trocas de olhares empáticos seguidos de suspiros de quem está em sofrimento fizeram com que todas as pessoas, agora fora do autocarro começassem a comunicar, quanto mais não fosse por gestos. Assim conhecemos um professor sérvio sexagenário doutorado em línguas que havia perdido a visão ainda em criança, mas cuja independência era no mínimo inspiradora. Contou-me algumas das suas histórias, a forma como se apaixonou pela mulher que não sofre do mesmo problema, sobre o nascimento das filhas e sobre todos os livros que já escreveu e traduziu em braile.

Chegámos a Belgrado completamente exaustas e assim ficámos no hostel mais barato de toda a cidade, onde pagámos seis euros por noite por uma cama em camarata de oito.

As diferenças de temperatura haviam chegado à falha sistémica dos nossos sistemas imunitários e a partir daí seguiu-se uma temporada complicada no que diz respeito à gestão de energia e curiosidade em conhecer o que havia escondido pelas cidades.

Assim que nos afastássemos da zona do hostel, que era em frente à principal estação ferroviária, os contrastes sociais seriam demasiados. A caminho do centro da cidade, que é moderno, repleto de artistas de rua, livrarias e galerias de arte, conhecemos o lado mais ingrato da cidade.

Num parque à beira rio, debaixo de uma ponte, centenas de homens se aninhavam todos os dias ao final da tarde com cobertores, sacos plásticos e olhos de quem não foi aquilo que imaginou para si. 
A frustração, o desespero e o cansaço são três estados cravados na pele de todos os migrantes que chegam diariamente à capital de Belgrado, com esperança de conseguir ultrapassar a fronteira com a Hungria, ou a Croácia, e assim alcançar a tão sonhada Alemanha. 
O sonho europeu é real e ainda não parou de alimentar uma corrente de gente do oriente cuja dimensão “parece infinita”, dizia Dorde Petrović de 35 anos, responsável pela gestão de trabalho da Crisis Response and Policies Center que trabalha em conjunto com a equipa das Nações Unidas – UNHCR – cuja parceria se centra única e exclusivamente em ajudar todos os que chegam a Belgrado a legalizar a sua situação. Mas não só: é com este grupo de voluntários que se registam todas as necessidades básicas necessárias para que se mantenham de boa saúde, com informações atualizadas sobre a gestão política das fronteiras, bem como sobre os campos que os poderão acolher.

Há dois anos o fluxo migratório na Europa explodiu. A crise humanitária envolveu centenas de milhares de refugiados, oriundos maioritariamente do Médio Oriente e Norte de África que procuravam um oásis na Europa Ocidental.

A situação mais crítica envolvia refugiados, mas hoje a realidade centra-se em migrantes a quem lhes foi vendido o sonho europeu. “Diziam-me que na Europa davam dinheiro na rua às pessoas e que havia mais emprego do que trabalhadores. Como passávamos fome o meu pai juntou o que tinha e comprou uma viagem a um traficante que entretanto me abandonou. Já fui capturado em várias fronteiras, espancado”.

A corrente de pessoas que passa pelo centro de Belgrado “parece não ter fim”, diz Marija Majanovi,ćde 27 anos, voluntária e chefe de comunicação do centro de apoio aos migrantes. “Isto não é nada, antigamente recebíamos grupos de centenas de pessoas todos os dias, sem hora de melhorar à vista”, explica, enquanto comenta a frustração permanente de quem quer ajudar mais e não tem permissão para tal. “O governo proibiu-nos de dar roupa e bens alimentares. No inverno chegaram a estar milhares de pessoas em barracos atrás da estação”.

Ali bem no centro da cidade está montado um centro de acolhimento aos refugiados e migrantes que chegam a Belgrado perdidos num rumo que têm na cabeça, mas que não chega a passar daí. Pelo menos não para os que falam connosco sentados no chão, cobertos com mantas, em pequenos grupos de companheiros de viagem cuja única coisa em comum é o nome do traficante que os levou até lá. Refugee Aid Milesalishe (RAM) é o nome do centro que reune associações e grupos ativos na recepção destas pessoas. “Save the Children” é uma delas e uma dos seus voluntários diz-nos não ter ideia de quantas crianças haverão chegado às instalações do centro sem qualquer adulto.

O centro não está preparado para acolher tantas pessoas durante a noite e é por isso que todos os homens são convidados a deixar as instalações, abrigando-se em parques, debaixo de escadas, ou até mesmo pontes. Zeez, de 17 anos, foi um dos refugiados que abandonou a Síria para fugir de um cenário que se tornou incomportável. O objetivo é encontrar a mãe e os irmãos na Alemanha, mas por enquanto está “preso” na Sérvia, já que a Hungria fechou as fronteiras. Zeez deixou a sua terra em 2010 e desde então está sozinho, por sua conta. O traficante que o trouxe até cá abandonou-o depois de gastar todo o dinheiro na praga de casinos que se estende por toda Belgrado. Foi durante a sua odisseia que descobriu um linfoma a que teve de ser operado de urgência e é graças ao centro RAM que vai conseguindo acompanhar a evolução da doença. Hoje, enquanto a sua história não evolui para um final feliz, decidiu aproveitar o tempo sendo intérprete no centro de apoio onde foi recebido. “É tudo uma questão de sobrevivência. Temos de tentar tirar o melhor possível da realidade e a minha não vai mudar tão cedo”, diz-nos enquanto almoçamos. “Há quem esteja pior do que eu, pelo menos agora tenho onde dormir e já falo bem a língua”.

Quem não está com o mesmo ar é Rawa que deixou os quatro irmãos e o pai no Iraque com esperança de, juntamente com a mãe, conseguir encontrar a irmã que se casou com um alemão há alguns anos. “Viemos num grupo de 14 pessoas a pé, de carro, em malas de camiões e carrinhas, o homem a quem comprámos a viagem não foi isto que nos prometeu. Não era isto que vínhamos para encontrar”, diz-nos com um inglês aprendido graças às canções e aos filmes que via. Mostra-nos o aparelho dos dentes. No Iraque era protésico dentário e conduzia o carro de um advogado. “Espero chegar à Alemanha e conseguir trabalho como protésico para poder mandar dinheiro para casa e dar uma boa vida à minha mãe. Enquanto falávamos chega um grupo de nove paquistaneses. Estão em viagem há um ano e meio. O único que fala inglês acaba de saber que vai ter de dormir no parque: “Temos fome, temos frio, mas pior de tudo é já não termos a esperança que nos fez sair de casa, agora só Deus sabe”.

 

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/585892/migrantes-na-servia-o-pesadelo-ainda-nao-acabou-?seccao=Portugal_i

Macedónia. Viagem à capital europeia do kitsch

Ao visitar a capital da Macedónia fica-se com a sensação de que as ruas foram invadidas por seres inanimados de bronze, de todos os tamanhos e feitios. A estética é questionável, o número total de estátuas, ninguém sabe ao certo

Saímos de Pristina para Skopje num miniautocarro que bateu recordes de falta de conforto. Era já noite cerrada quando chegámos a Skopje, capital da República da Macedónia – república esta que tem o mesmo nome de uma região da Grécia, tendo-lhe isso já valido uns quantos problemas a nível de política internacional. A República da Macedónia foi, ao longo da História, massacrada por invasões de países vizinhos e, depois da Guerra dos Balcãs, os gregos recusaram-se a reconhecê- -la, já que o país se estaria a apropriar do nome de uma região grega, bem como da bandeira com a estrela de 16 raios amarelos em fundo vermelho de Alexandre, o Grande. Mas o governo da Macedónia não fez caso e Skopje é a área com mais bandeiras hasteadas por metro quadrado que eu alguma vez visitei.Skopje é fria e cinzenta nesta altura do ano. Estávamos à procura de um lugar para jantar quando descobrimos o centro da cidade. É difícil descrever a mistura de sensações que esta cidade me provoca. As pessoas não falam inglês, não se mostram muito disponíveis para conversas e, por isso, passo ao papel de mera observadora. 
O centro da capital dá-nos a sensação de estarmos em plena Disneylândia, há estátuas por todo o lado, umas enormes, outras mais pequenas, há estátuas de todos os tamanhos e feitios, e não é por ser expressão, aqui foi mesmo para inglês ver. Se recuarmos apenas quatro anos, a Macedónia sofreu uma transformação no mínimo “radical” e fora do comum que tinha como objetivo atrair o turismo e lembrar os heróis e ícones nacionais.

Os edifícios recentes têm um estilo neoclássico que não condiz com o que o país viveu nos últimos anos, ignorando grande parte da influência da população da Albânia no decurso da história do país. Há mesmo um enorme Arco do Triunfo, e quem não estiver informado sobre o projeto recente de reabilitação da cidade e não conhecer o investimento de quase 500 milhões de euros gastos na sua decoração fica a achar que está perante uma capital imponente, majestosa, gloriosa. A ideia parece ter sido essa, mas falha tremendamente assim que damos de caras com crianças a pedir dinheiro na rua, quando se vê a miséria dos mais velhos ou até mesmo quando se sabe que o salário mínimo é de 237 euros mensais.

Na cidade já se fizeram manifestações e faz-se a piada à falta de gosto, bem como se apontam severas críticas à forma como este dinheiro foi gasto. O número total de estátuas é um mistério para quem passa, diz-se que há gente que contou mais de 60, e não estamos admiradas.

Do outro lado da cidade parece termos chegado à Turquia, com a elegância e as infinitas cores que se propagam pela luz dos pequenos estabelecimentos do Old Bazar.

Na rua há uma enorme banca de livros que se amontoam sem fim. Uma mulher de poucas palavras encaixa aqui mais um, ali mais outro. Fica difícil perceber como alguém conseguirá escolher um livro naquela enorme montanha de ar tão frágil. Ela chama-se Sonia e garante que ali estão mais de 500 livros que vai trocando de posição todos os dias, talvez como ritual, talvez como método de negócio, não se percebe bem.

Recebo uma mensagem no telemóvel, é um amigo meu que me pergunta onde estou. “Na Macedónia”, respondo-lhe. Ao que ele me responde: “Quão estranha achaste Skopje?” Entretanto, rio-me para um condutor de charrete que já a guia há três anos. “Agora fica bem cavalos a passar aqui. São 100 moedas por dia”, diz Traitche, de 52 anos. Os dois cavalos são brancos com pintas pretas, e têm 13 e 14 anos. “Desculpe, não sei falar bem inglês”, diz-me com ar desconsolado.

Vamos para o hostel e é por lá que conhecemos Guney Baser, um jovem turco de 25 anos que fez um percurso semelhante ao nosso nas últimas semanas. Vive em Munique, onde vai terminar a nossa viagem. Estuda por lá porque queria viver longe das regras e da nova onda política da Turquia.

Conta-nos sobre a educação de esquerda que a mãe lhe deu e como há um enorme preconceito na Alemanha em relação aos da sua nacionalidade. “Acham que somos todos muçulmanos só porque somos de um país muçulmano. A minha mãe nunca me ensinou a rezar e eu nunca entrei numa mesquita sequer”, conta-nos enquanto bebemos chá. Estão apenas nove graus e um rapaz passa por nós de calções e t-shirt. Pergunto-lhe se não tem frio e como consegue andar assim com aquelas temperaturas. “Sou inglês, isto é brincadeira”, responde-me o jovem também de 25 anos, que é cientista e se refere ao seu objeto de estudo como “o meu fungo”.

Será na Macedónia que uma gripe nos apanha desprevenidas. E é precisamente quando estamos a comprar lenços de papel numa espécie de supermercado na estação de comboios de Skopje que Richard, de 72 anos, nos aborda. Tem um ar mais saudável que o nosso naquele momento. Nascido e criado no Kansas, nos Estados Unidos da América, o espesso cabelo branco serve de disfarce à alma extremamente jovem que alimenta com viagens todos os anos. Hoje vai apanhar um autocarro para conhecer a aldeia onde cresceu parte da família do seu amigo da Macedónia. Adora Portugal, onde irá em breve com a filha e netos, mas veio à Macedónia para se encontrar com um amigo que é de cá. Milan, um jovem local de 27 anos, trabalhava no bar que Richard frequentava quando em férias em Skopje, há uns anos. Desde então, ficaram amigos e Richard visita-o constantemente. A amizade não escolhe idades, explica Richard, “porque a idade está na cabeça”.

 

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/585266/macedonia-viagem-a-capital-europeia-do-kitsch-?seccao=Portugal_i

Kosovo. “Não sonhas com mais quando não conheces melhor”

Eram crianças quando foram enviados como refugiados para outros países, assim que rebentou a guerra. Hoje não há espaço para muitos sonhos, já que não podem conhecer o que há para lá das fronteiras de alguns dos países vizinhos

Acordar em Pristina não é assim tão diferente de acordar numa cidade tipicamente ocidental. Apesar de a população, hoje em dia, ser quase completamente de origem albanesa, culturalmente muçulmana, os prédios são novos, as lojas que vemos nas nossas ruas também estão cá, os carros que circulam são de topo de gama, há poucos vestígios de religiosos por estas bandas. “É o que dá fugir aos impostos”, diz-nos um dos rececionistas do hostel onde dormimos quando lhe pergunto como é que, com uma economia tão fraca, há dinheiro para carros tão bons.O Kosovo é um assunto sensível nos Balcãs: os sérvios torcem-lhe o nariz, os bósnios dizem não saber nada e os cidadãos do Kosovo já se conformaram com a situação. Pelo menos é o que nos dizem as dezenas de jovens locais que todos os dias vêm ao terraço do White Tree Hostel para manter a conversa em dia, entre turnos de empregos que lhes pagam contas e intervalos de faculdade. 
Sentada no terraço, observo muitos deles. Têm estilo, são modernos e ousados. Há muitas raparigas com cortes de cabelo mais rebeldes, curtos, pintados. Os rapazes passariam facilmente por jovens de Lisboa ou do Porto, parecem mais velhos do que a data de nascimento do passaporte indica. Desde manhã cedo até à meia-noite, hora a que tem de fechar o bar do hostel, não há uma única música que venha deslocada ou mal pensada numa playlist. “Isto é da erva que se fuma neste país”, diz a rir-se um dos amigos que passam muito do seu tempo ali.

Juntam-se à minha volta, há cervejas na mão de cada um deles. São mais de sete rapazes e uma rapariga, todos eles curiosos sobre a forma como se vive em Portugal. Digo-lhes que um dia têm de visitar-nos. “Não podemos, somos do Kosovo. Estamos presos aqui”, diz-me Duki, de 25 anos. “Enquanto não nos aceitarem como país, o nosso passaporte não vale nada.” Pergunto-lhe como se sente em relação a isso, se há movimentos juvenis que queiram mudar essa realidade. “Nós crescemos a saber que isto era assim. Não sonhas com mais quando não conheces melhor.” O amigo, Gjin, teve outra sorte. “Quando tu nasceste em Portugal, tranquila, nós nascemos na guerra. Com um ano, eu era refugiado na Macedónia. Depois mandaram-me com os meus pais para os Estados Unidos da América. Foi a minha sorte, hoje tenho cidadania e posso ir onde quero”, explica, enquanto cada um deles partilha os países onde foram refugiados em criança. Toda gente fica em silêncio. Aquele que é o país mais jovem do mundo poderia ser um poço de esperança sem fundo; no entanto, aparentemente dizem estar tudo bem. “Temos ar de gente triste?”, pergunta um dos rapazes do grupo à gargalhada, enquanto acende um cigarro.

“Vocês lá fora têm uma ideia errada sobre nós. Como é que cá chegaram? Na internet lemos tantas coisas erradas sobre o nosso país”, continua, enquanto bebe um gole de cerveja.

Conto-lhes do secretismo da viagem, da nossa surpresa ao encontrarmos uma capital tão nova e moderna. Riem-se à gargalhada, quase se orgulham do cenário cinematográfico. “É o que dá as pessoas falarem do que não sabem: quem vem já não quer ir embora” diz-nos um dos rapazes do hostel, que aponta com os olhos para um finlandês que já lá está há um mês. Faz 53 anos no dia seguinte, viaja numa Honda vermelha, era para ter ficado apenas dois ou três dias, mas não consegue deixar Pristina. “Isto é tão bom. Eu amei Portugal, as pessoas de Portugal, mas não quero ir-me embora do Kosovo, talvez amanhã”, diz-me enquanto bebe um shot de tequila às três da tarde.

Lá fora, um grupo de rapazes fuma erva. Mostram-me fotografias no telemóvel de um amigo que lhes enviou uma fotografia com a descrição “já tenho pequeno-almoço”. É uma tigela de cereais cheia de pastilhas ecstasy. As drogas circulam facilmente nos Balcãs e o Kosovo não é exceção. Um dos jovens conta-me que sonha trabalhar na preservação dos lobos. “Um emprego que dê para comer e pagar contas, mas que me faça feliz”, diz-me.

Almoçámos no hostel por 2,60 euros: uma omelete com queijo e uma dose de batatas fritas. Os preços são tão baixos, os salários residuais, pergunto quanto pagam por um quarto no centro da cidade. “Ronda os 70 euros, ganho 250 aqui no hostel. Dá para viver”, comenta o rececionista mais ativo na conversa.

Ao sairmos do hostel em direção à praça principal deparamo-nos com um largo onde circulam várias miniaturas de carros a bateria conduzidos por crianças. Alguns têm mesmo faróis acesos. Os pais também são jovens, é raro verem- -se idosos na rua. No Polo Universitário, em frente à biblioteca, está a decorrer a gravação de um videoclipe. Há um músico com um citfeli – instrumento de cordas típico da Albânia – na mão. Uma rapariga ainda adolescente veste trajes tradicionais. Parece uma boneca, tem olhos claros e pele branca, quase parece desenhada por um artista cerâmico. “Todos os países têm no YouTube uma versão do Despacito, ainda não há nenhuma daqui. Por isso, vou ser eu a fazê-la”, conta-nos Fatmir Makolli, famoso músico nacional, que está orgulhoso de toda aquela produção de televisão, bailarinas e takes que se repetem continuamente.

Drenis tem 19 anos, é filho do produtor deste videoclipe. Estuda Economia na faculdade e desbrava a história do país e da região. O ódio aos sérvios é notório: “Não é aqui na capital que vocês vão ver o que a guerra nos fez. É nas aldeias.” Lamentamos não ter tempo para explorar o interior do país. “Estão a ver aquela igreja ortodoxa ali? Os sérvios construíram-na em 1995, no meio da guerra, para que pudessem reclamar a área à volta. Têm a mania que são espertos, mas nunca deixámos que a terminassem. Está ali só para nos humilhar e não podemos deitá-la abaixo”, diz com desprezo enquanto olha para a inacabada construção, bem no meio do campus universitário. Em 2016, depois de um incêndio, alguns membros da comunidade sérvia tentaram, sob o pretexto de limpar, reconstruir e pintar a igreja, que sempre permaneceu vazia e que nunca chegou a ser terminada, mas o município impediu que continuassem.

A rapaziada que para no White Tree Hostel não partilha desse ódio aos sérvios. Drin, de 27 anos, não tem paciência para um mundo em que as pessoas se querem mal. “A guerra não foi nossa, eu não lutei por nada. Uma vez, no Facebook, fiz um amigo num grupo e vi que era sérvio. Eu perguntei-lhe, ‘sabes que sou do Kosovo?’, e ele disse que não queria saber. A nossa geração não quer mesmo saber, somos mais inteligentes do que isso.”

Foto: Diana Tinoco

Texto publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/584922/kosovo-nao-sonhas-com-mais-quando-nao-conheces-melhor-?seccao=Portugal_i

Kosovo. Do secretismo da fronteira à surpresa de Pristina

Crescemos num Portugal seguro, um país de clima invejável, rodeadas de pessoas boas. Em Portugal, qualquer um que junte uns trocos, tem liberdade de voar para onde quiser.

Seja de avião, à boleia, de autocarro ou de comboio, seja de mota ou a pé, de bicicleta ou de carro, os portugueses viajam e, salvo raras excepções, ninguém nos quer mal, nos manda parar em fronteiras porque nascemos no canto errado, não há sentença pela nossa origem. Até hoje, o mais perto de resposta agressiva que recebi por ser portuguesa foi um grito com o nome do Ronaldo, que se seguiu de um sorriso estonteante. Será no Kosovo que vamos ouvir pela primeira vez relatos de gente da nossa idade, nascidos em 1992 e que por serem cidadãos de um país não reconhecido, lhes é negada a possibilidade de ver e visitar outros mundos.

Nos preparativos da viagem, já se sabia que haveria um ponto delicado ali no meio dos Balcãs, que iria exigir de nós bastante mais do que contávamos. Olhávamos para o mapa e a sensação era de uma névoa, um cinzento típico do desconhecido. Se queremos ir ao Kosovo, temos de estar preparados para o que ele tem para nos dar e todos nós, nascidos na década de 90, crescemos com expressões na nossa língua que automaticamente nos indicavam o pior do que por lá se poderia encontrar.

Kosovo foi sempre equivalente a tragédia, confusão, mais anárquico que o próprio Texas, “vai para ali um Kosovo” e o preconceito nasce em nós sem nos perguntarmos bem, quando pequenos, sobre o significado das coisas.

O Kosovo é sempre “muito complicado”, até para os especialistas, os diplomatas, os que tratam dos jogos de xadrez da geopolítica, assim nos dizia mais tarde um norte-americano, marido de uma diplomata a trabalhar com as Nações Unidas em Pristina, capital do Kosovo.

Durante esta viagem que começou a 19 de setembro, sempre que tocámos no assunto “Kosovo” ou se suspirava, ou se bufava, ou nos faziam sinal para falar baixo. “Ninguém fala disso aqui, nós nem podemos lá entrar”, diziam-nos na Bósnia e Herzegovina. Se era ou não assim tão grave, não percebemos bem. A verdade é que toda gente se recusava a informar-nos sobre como lá chegar. Na internet a informação era residual. Nas ruas ouvíamos constantes “não sabemos de nada”.

Em Mostar, o nosso anfitrião disse-nos que o melhor sítio para passar a fronteira pela Bósnia era por Novi Pazar, área muçulmana da Bósnia e Herzegovina: “Pela Sérvia é impossível, eles recusam-se a aceitar a existência deles como um país independente”. Seguimos a pista que nos diziam para irmos até à estação de autocarros de Sarajevo e por lá procurámos um que nos levasse até Novi Pazar. Quando chegámos ao autocarro, íamos a pousar as malas quando um senhor, que não o condutor, nos sussurrou: Pristina?

Afinal o assunto estava ao nível de segredos aos ouvidos. O Kosovo é uma nação recente e ainda existem muitos países que não lhe reconhecem a independência da Sérvia conquistada de forma unilateral em 2008, tais como a Rússia, o Brasil, a Espanha e a China que temem movimentos separatistas do género e que este seja considerado um exemplo internacional.

O autocarro não ia cheio como é costume. A maioria das pessoas eram já de idade avançada e ninguém falava inglês. Por dentro, a cor era de um vermelho aveludado, dando uma sensação mística à viagem. No meio da viagem o senhor que nos perguntou sobre o nosso verdadeiro destino começou a vender bilhetes. Quando chegou a nós pediu-nos sete euros. Ainda tínhamos marcos bósnios e, por sorte, lembrei-me que tinha comigo alguns euros guardados. Apesar de não fazer parte da Zona Euro, os habitantes do Kosovo começaram a utiliza-la assim que a Alemanha o fez, ainda em 2002.

Assim que nos disse sete euros houve uma gargalhada geral. Falava-se albanês e percebemos que estavam a rir-se de nós. Pela primeira vez em toda a viagem não sabíamos se estávamos no roteiro previsto ou no autocarro certo, muito menos com as pessoas certas. Ninguém falava inglês, riam-se de nós a comprarmos um bilhete e quem nos garantia que íamos mesmo para Pristina? Restou confiar.

Como a viagem ia ultrapassar as doze horas e era já noite cerrada, acabei por adormecer tão profundamente que quase não dei conta de pararmos em Novi Pazar. Quando dei conta, tinha uma polícia a pedir-me o passaporte dentro do autocarro.

Estávamos a sair da Sérvia. Lá fora estava um nevoeiro cerrado. Não percebi se era um rio, se era um lago que nos acompanhava. Mas estávamos no meio do nada. Veem-se uns contentores, nitidamente prontos para serem transportados assim que necessário, a servirem de pouso administrativo. Os passaportes voltam a ser recolhidos e agora carimbados. Do outro lado, quem vem de lá para a Bósnia, tapam-se as matrículas dos carros. Estamos oficialmente no Kosovo.

O salário mínimo por aqui é o mais baixo de toda a região, 130 euros para pessoas com menos de 35 anos e 170 para os que são mais velhos. Segundo o Eurostat estes valores não se alteram desde 2011. O contraste é enorme quando comparado a outros países dos Balcãs a ocidente, como a Eslovénia que conta com um salário mínimo de 805 euros, ou a Croácia com 433 euros mensais. Mas o Kosovo não está assim tão desfasado de países como a Albânia cujo salário mínimo é de 155 euros.

Apercebemo-nos nos outros países que existem vários mitos sobre a população do Kosovo que, pelo menos ao que vamos conhecer, não correspondem com a realidade. Falam-se em clãs de famílias, em subsídios pós guerra que sustentam o desemprego. Explicam-nos que o ódio instalado nos Balcãs é milenar. E sobre a população albanesa que reclamou o direito ao Kosovo como independente desenha-se a ideia de uma população preguiçosa, limitada, pouco informada.

As capitais nunca representam dignamente o que é um país, já que todo o crescimento se costuma concertar por lá, mas as pessoas que iremos conhecer vieram de fora da cidade, para procurar emprego e uma vida mais digna. Quando pergunto, mais tarde, a Drin Halipi de 27 anos, a viver em Pristina e a trabalhar como assistente técnico de uma empresa de telecomunicações sobre estes factos a cara dele é de choque. “É claro que dizem isso sobre nós, sem nunca terem posto cá os pés”, diz-me enquanto fuma um charro. Pergunto-lhe sobre a existência ou não de mitos, sobre a hipótese de propagação de informação falsa e quais seriam os motivos para que tal acontecesse.

“Nós recebemos apoio das nossas famílias que emigraram e enviam-nos dinheiro, mas que eu saiba mais nada”, responde. “Eu trabalho num emprego onde não sou feliz para me sustentar. O desemprego é altíssimo mas os meus amigos que não estudam trabalham todos. As pessoas são loucas. Somos provavelmente as piores criaturas à face da Terra”.

Foto: Diana Tinoco

Publicado em ionline