Palma ou tudo o que eu preciso

Palma, 27 de Abril de 2018

É sexta-feira, o sol está forte e já me enchi de protetor. As pessoas passam de chinelos e com sorriso que não deixa perceber se vivem cá e estão felizes porque chega hoje o fim da semana, ou se é porque estão de férias na paz do senhor. Palma é um enorme molusco escondido numa concha de turistas, recheada de uma energia que me intriga.
Estou na varanda da casa do Willian. Conhecemo-nos há cerca de dez anos, no Algarve. Eu e os meus amigos de Resende tínhamos um t1 alugado para oito pessoas e eram as nossas primeiras férias juntos fora da vila. Um grupo de miúdos de 16 anos em Portimão durante uma semana, tinha tudo para correr bem. E correu.

À porta da Catedral conhecemos um grupo de rapazes de Santa Maria da Feira que jamais esqueceria: o Willian, o Freitas, o Zé e o Pedro, quase todos com mais de 20 anos e com um andamento incomparável ao meu estilo de vida na altura. Chamavam-se Los Bandidos e tinham nos olhos tanto de malandros quanto de amor. Todos eles de coração bom, caras bonitas e olhos malandros. Na altura eu tinha o meu primeiro namorado e demoraria vários anos a alguma vez vir a experimentar a versão carnal de uma viagem.

De todos, foi o Willian e o Freitas que mantiveram mais contacto ao longo dos anos. Há umas semanas o Willian contou-me num pranto o desastre que havia aberto a passagem do Freitas para uma outra dimensão.

Quando escrevi no Facebook que procurava quem vivesse em Maiorca não quis acreditar que nos iríamos reencontrar uma década depois, mas agora ali estávamos os dois, a tomar o pequeno almoço na varanda enquanto lembrávamos aquela semana que nos parece ter sido já há duas vidas.

No dia anterior levou-me a jantar ao Calixto, nome do dono que serve às mesas a “melhor Paella de toda a ilha”. Falava devagar, com pronúncia maiorquina e com os dentes todos à mostra. Está na ilha desde criança, a família tinha negócio de supermercados e restaurantes, os pais dele decidiram ficar-se por Palma. As seis mesas cobertas com toalhas aos quadrados calham bem com a música que sai do rádio da cozinha. Há ali uma mistura de épocas condensadas numa esplanada cujos limites se desenham por inúmeros vasos que servem de base a plantas enormes. “Às vezes não sei se vêm cá comer porque ouviram falar ou se foi por curiosidade pelas plantas”, diz-me e logo completa “nem foi pensado, comecei a comprar plantas e tive esta ideia. Fica bonito, não acham?”.

Depois da sangria fresca e da Paella devidamente digerida, o Calixto ofereceu-nos um chopito tradicional com sabor a anis – sinceramente aquele aroma não me traz grandes recordações –  éramos já os últimos no seu canto familiar. O jantar ficaria por 20 e poucos euros a cada um, mas era jantar de boas-vindas, tudo bem. Brindámos, saímos e caminhámos até à cidade velha. Maiorca é demasiado peculiar, ora nos lembra as ramblas de Barcelona, ora surgem umas ruas de bares pequenos como em Vigo, ora surge um Benidorm ali do nada, com meia dúzia de grupos de ingleses em crise de meia idade e com níveis alcoólicos graves, mas que mesmo que quisesse, não consigo julgar.

Passeámos pela parte antiga da cidade, aí já me lembrava Salamanca. A Lua começava a encher e o reflexo fazia ver-se no Mediterrâneo pasmacento. A Catedral gótica, uma das maiores da Europa, impõe-se pelo nosso caminho.

“Como é que antigamente se construíam coisas destas tudo à mão?”

Ficámos em silêncio a admirar a vista. Eu não via o Willian há 10 anos mas é como se nunca tivéssemos deixado de ser os miúdos que se encontraram em Portimão. A presença dele era confortável e a forma como tratava as mulheres viria a mostrar-se encantadora.

Pelo caminho três rapazes cruzaram-se connosco. “São tugas, tenho a certeza”, disse-me. “Vocês são portugueses!”, gritou-lhes.

Eram três rapazes na casa dos vinte e poucos anos, dois deles acabavam de se mudar para a base daquela ilha. Também trabalhavam na aviação.

“É um bom sítio para se viver, estávamos cansados do Porto”, disse um deles. “Escolheram bem, esta ilha é qualquer coisa”, respondeu-lhes o Willian.

Embora eu não tenha vindo para esta viagem no mood de noite e como já não apanho uma bebedeira há 11 meses, não tinha muito interesse em sair ali, no entanto acabámos por ir até um bar tipicamente espanhol com música pop – todos sabemos que isso signidica reggaeton-  tipicamente espanhola. Já mais tarde, apanhou-se um táxi e fomos para casa.

Seria já ao outro dia que eu iria conhecer a Niko, eslovaca a partilhar casa com o Willian e um italiano, o Lucca, que também viria a conhecer um dia depois.

Alta, de corpo escultural e cabelos longos, andava de um lado para o outro com cestos da roupa. Montou a tábua de passar a ferro e começou a engomar roupa não só dela, como também deles.

“Passas-lhes a roupa a ferro?”

“Sim, não me custa nada e eles cozinham e eu não”.

Pareceu-me uma boa troca. Os olhos castanhos dela ficavam ainda mais rasgados de cada vez que se ria. Às vezes uma gargalhada saía mais alto enquanto olhava para o telemóvel. Não tardaria a aperceber-me que havia encontrado uma alma gémea, não só em relação à forma de estar na vida, como também no humor com que a encaramos.

A partilha de memes seria imediata, não tivessemos nós estilos de vida e maneiras de pensar semelhantes. Agora as gargalhadas passariam a ser em conjunto e em breve os rapazes lá de casa torceriam o nariz a esta união feminina tão forte e não planeada.
Durante a tarde iria fazer o meu primeiro e único dia de turismo por Palma. Fomos até uma praia de água limpa e transparente, bem como Cabo Verde me havia habituado e acabei por me deixar dormir ao sol.
Vimos a que horas seria o pôr do sol, mas antes o Willian quis-me mostrar a melhor vista para Palma, que ele descobriu por “acidente”, uma das vezes em que se perdeu pela ilha. No topo do lugar havia um santo que não cheguei a perceber qual era, mas parecia estar a olhar pela cidade.

A Niko veio connosco de carro até Sa Foradada. Aluguei logo no primeiro dia um Fiat Panda no Royal Rent, em Camí de C’an Pastilla 10, um renting car de um senhor maiorquino, que me fez um super desconto assim que lhe perguntei com um choradinho simpático em espanhol “no me puedes hacer un descuentito? Soy una chiquitita portoguesa, no tengo mucho diñero na verdad”.

O Pandita aguentou-se mais que bem, andei os dez dias a conduzi-lo pelas montanhas e até em dias de tempestade não me deixou ficar mal. Sa Foradada viria a mostrar-se um dos sítios mais bonitos que vi na vida, com um miradouro inacreditável para um dos mais extraordinários pores do sol que alguma vez vi. O sol iria descer lentamente, as pessoas que ali se encontravam partilhavam o silêncio de quem aprecia a grandiosidade da natureza que nos rodeia e quando finalmente se põe o sol, como quase um ritual, costuma aplaudir-se o início de um novo descanso para a estrela que nos ilumina, pelo menos por mais um dia. Nesse dia havia nuvens na linha do mar em que o sol se punha. Não se bateram palmas, manteve-se o silêncio.

Como a fome já apertava e o frio também se fazia sentir, comemos por ali mesmo em Valdemossa. A comida estava deliciosa e não podia esperar mais por aquele sofá incrível na sala do Willian.
Há aqui uma sensação estranha de familiariedade com esta ilha, não sei o que me espera ainda pelo resto da viagem mas só pode ser algo bom. Afinal de contas, assim que peguei naquele Pandita e o conduzi, liguei a rádio e bem alto a primeira coisa que ouvi foi um sonante Roy Orbison a cantar:

Anything you want, you got it
Anything you need, you got it
Anything at all, you got it
Babyyyy

E meu deus… I know I do.

A todos os loucos que vão

26 de Abril de 2018

Estou a caminho de Mallorca, vim de Lisboa até ao Porto de boleia com o meu primo Fernando, que também vai tirar uns dias só para ele, mas em Barcelona.

Vivemos tempos de alegria. Chegou a primavera, o sol começa finalmente a aparecer e sente-se cada célula dos nossos corpos a celebrar a natureza. Sigo para a viagem menos planeada de toda a minha vida. Eu sei que já comentei o quanto adoro viajar sozinha, sem expectativas ou planos, mas desta vez abusei, abusei ao ponto de, pela primeira vez, sentir stress antes de me mandar para um aeroporto.

Cheguei duas horas antes do voo, tive tempo para ver tudo e mais alguma coisa, comprar umas prendas e comer descansada. Quando indicaram a porta de embarque desci as escadas e estava mais do que preparada para me afiambrar à fila prioritária, já que desta vez uma promoção xpto me deu essa regalia.
É precisamente nesse momento que me apercebo de que não tenho o cartão de cidadão. Socorro. Tirei tudo da mochila até que me lembrei: “tirei-o do bolso na zona de segurança”. É muito cansativo viver neste corpo, admito.
Desatei a correr até à zona dos raio-x e pedi aos seguranças que confirmassem se não teria lá ficado caído um cartão de cidadão.

“Não há aqui nada”.

Bonito. Vou perder o voo. Voltei a revirar a mochila, a apalpar-me toda, não acredito que vou perder o avião. Respira. Não faz sentido stressar, tudo vai ficar bem, não faz sentido perder o avião. Mais uns apalpões e reviravoltas e, quando faltavam cinco minutos para a porta fechar, um segurança veio a correr enquanto berrava “VAI VAI VAI”. E eu fui. Então não fui. Já não corria assim há anos.

Como os portugueses são péssimos com horários fui mais do que a tempo de embarcar na mesma exata fila interminável de sempre, já que a única prioridade que me ocorria era entrar no avião.
Toda a minha vida sou avisada que não posso colocar-me em situações de stress, mas não há médico nenhum neste mundo que algum dia venha a perceber que o meu ritmo de ser e estar é o caos em si mesmo. Daí que no meu quarto haja um quadro mal emoldurado de um Bob Dylan jovem a fumar um cigarro com a citação “I accept chaos, I’m not sure whether it accepts me.”

Para explicar esta viagem tenho de regressar a agosto do ano passado, quando conheci uma pessoa que me escancarou as portas que eu já tinha semi abertas, mas que não sabia como as explorar.

Uma das coisas que mais me fascina em relação à vida é o facto de sentir que cada pequeno passo que damos está intimamente ligado com os tropeções e saltaricos que vamos dar a seguir. Somos pequenos grãos de areia que pouco sabemos sobre o significado de tudo isto que nos rodeia e nos ultrapassa, mas se estivermos atentos aos detalhes, não é difícil perceber onde descansa a magia das coisas.

No verão passado estava prestes a mergulhar num buraco negro, no jornal em que trabalhava era altura de férias, a equipa era ainda mais pequena, os incêndios tinham-nos marcado para o resto da vida e não parava de receber chamadas com dados e informações sobre todos os possíveis erros que haviam sido cometidos por diversas frentes.
Crescemos rodeados de medos, levamos todos os dias com um banho de desastres, sangue, intrigas. Os media tornaram-se uma constante lembrança do pior que há no mundo e é-nos demasiado fácil tomar o “dark side” como garantido.

Mas não é o lado negro das coisas que me desperta. Cresci rodeada de histórias e experiências que me mostraram que a vida tem essa face estranha, que é possível sentirmos o mundo com uma agonia desmesurada e fecharmo-nos na nossa concha até que alguém nos diga ao ouvido: já passou, podes voltar.

Essa é provavelmente a fase mais difícil de quem entra na idade adulta, a altura em que nos tiram o lençol branco que nos cobria do pó até então e nos dizem “bem-vindos ao mundo”. A partir daí temos duas hipóteses: ou escolhemos cobrir-nos de pó e deixar que o bicho nos deixe os ossos carcomidos, ou decidimos aceitar que haverá sempre pó que nos cubra mas que o podemos sacudir sem alergias, sem obstipações, como um ritual de limpeza que terá de ser feito para o resto das nossas vidas.

Esta é uma decisão que nos exige coragem, entender que o caminho não vai ser sempre a subir, que vamos cair um milhão de vezes e esfolar o raio dos joelhos muitas mais vezes do que era suposto, mas que podemos sempre começar de novo e vai sempre poder ser melhor do que foi.

Era agosto e eu tinha menos do que um tostão no bolso, como é já habitual, mas tinha também uma vontade maior que eu de sair de Lisboa e ir a correr até aos que me são tudo.
Trabalhei quatro semanas seguidas para poder tirar as folgas dos fins-de-semana e decidi ir ter com alguns dos meus melhores amigos ao Sonic Blast, em Moledo.
O SB é um dos festivais mais pequenos do país mas é o meu preferido. Para não falar da localização entre o mar e um enorme pinhal, tem um cartaz incrível e um ambiente super descontraído atraído pela música, mais do que qualquer outra coisa.

Com a pressa de me fazer à estrada, nem sequer comprei bilhete para o festival. Nunca na vida teria problemas em comprar bilhete à porta, por isso foi só pegar no carro, em alguma roupa e fui. Sem tenda, comida, nada.
A Rita tinha feito match no tinder com um australiano que, pelos vistos, ia ao mesmo festival que eu e obviamente pedi-lhe que lhe dissesse que havia lugares vazios e que seria melhor que o mel dividir despesas de gasolina e portagens. O Adam lá entrou em contacto comigo e perguntou se uma rapariga australiana que ele tinha acabado de conhecer também podia ir. Que maravilha.
Quando chegou a hora de nos encontrarmos, lá estavam os dois à minha espera. Ele alto e magro, vestido de preto, sem nada que me chamasse muito a atenção. Ela de cabelo azul, óculos e braços todos tatuados, com uma t-shirt dos Black Sabbath, teve toda a minha atenção assim que a vi.
Como ia conduzir durante horas com dois desconhecidos, achei por bem assim que comecei a viagem começar por meter conversa e perguntar como que raio estavam a caminho de um festival que nem os portugueses sabem que existe.

A Katie vinha da Australia de propópsito para o Sonic Blast e depois ia aproveitar para conhecer o país, wow. O Adam estava a tentar encontrar trabalho por cá. Perguntei-lhes o que faziam e foi aí que se deu um clique que mudaria para sempre a minha percepção das coisas.
O Adam respondeu-me que era project manager, sinceramente não percebi muito bem o que é que ele pretendia encontrar por cá. Mas quando chegou a vez da Katie dizer qual era a sua profissão o cenário mudou completamente.
“Sou astróloga”.

Ao longo do meu caminho já me tinha cruzado com algumas pessoas especiais, com capacidades que pensamos não estar ao alcance de qualquer um, mas como assim uma rapariga da minha geração se apresenta como sendo astróloga, sem qualquer embaraço ou constrangimento? Deu-se um clique e a partir daí tudo o que viria da nossa amizade seria um longo caminho de partilhas e ensinamentos. A Katie viria a mostrar-se imensamente paciente com a minha inconsolável curiosidade e foi graças a ela que acabei por ler e tornar-me seguidora de várias pessoas que partilham na internet os seus conhecimentos e sensações.

Portugal tem uma cultura mística antiquíssima, mas a não ser o pessoal da treta e horóscopos humilhantes em revistas, por norma ninguém assume publicamente este tipo de gostos, capacidades, dons- não pelo menos que eu estivesse consciente disso, até então. Há sempre uma “bruxa” escondida em cada aldeia, alguma avó com conhecimentos para lá da vida, um tio que lê cartas, mas é sempre em tom de segredo, de medo, ou não tivesse havido sempre público para a queima destas pessoas em praça pública.

Desde que me conheço que o mundo do oculto e as pessoas diferentes me atraem. Por isso, foi mais do que natural que aquela viagem fosse só o primeiro nó de uma enorme amizade que nasceria a partir do pretexto de tudo isto.
Entretanto cheguei ao festival sem bilhete, feliz da vida por reencontrar os meus amigos. Tinham-me arranjado tenda onde dormir, a Mariana tratou de tudo e ficámos pela sombra fresca do pinhal enquanto toda gente se preparava para os concertos. Podia finalmente acender um e respirar o descanso de estar entre a natureza.

“Já foste trocar o bilhete por pulseira?”, perguntou-me o Souto.
“Não, tenho de comprar bilhete ainda”, respondi com a maior calma de sempre.
“Os bilhetes esgotaram Balolas” – disseram-me todos em tom alarmado. 

Ri por dentro. Como assim esgotados? Foi a primeira vez que fui para um festival mandada à campeã e não podia ter tido mais pontaria. A minha solução nem sequer foi pensada, estava tão feliz por estar ali com eles que só quis aproveitar ao máximo o que me fosse possível experimentar.

A única coisa que separa o skatepark dos concertos é uma lona verde, que não só nos deixa ver lá para dentro, como também não interrompe minimamente o som que nos chega sem problemas. Foram dois dias incríveis, eu não cabia em mim de felicidade por poder desfrutar de tudo sem qualquer stress, chamada de trabalho, nuvem negra que me chovesse em cima.
Os meus amigos estavam mil vezes mais preocupados com o facto de eu não ter bilhete do que eu e, o que é certo, é que por ter de ficar à porta, reencontrei dezenas de pessoas lindas que já não via há anos e com quem não falava há mais tempo do que queria admitir. Entretanto vinham ter comigo dezenas de pessoas em pânico à procura de bilhetes.
“Não tenho, desculpa; na verdade também preciso de um” dizia antes de levar logo com um ar muito surpreendido seguido de um “E estás aqui sentada na boa?”.

Na última noite, precisamente antes da banda que eu mais queria ver, uns desconhecidos apareceram com o João, um amigo de quem gosto muito, e disseram que tinham forma de me deixar entrar. O que é certo é que entrei. Não podia estar mais agradecida à aleatoriedade e abundância que me rodeiam, afinal de contas, rendi-me às evidências para aceitar o que as circunstâncias me permitiam viver.

Não sei se já passaram por algum momento assim nas vossas vidas, mas este seria o primeiro de muitos momentos de rendição completa ao que o universo, a vida, o que lhe quisermos chamar, têm para oferecer, numa aceitação completa do que vem, com alegria e gratidão.

Mais tarde voltaria para Lisboa, depois de uns três dias bonitos com os meus pais em Afife e voltaria a encontrar a Katie. Como não sabia nada do panorama da astrologia em Portugal perguntei a um amigo e ele acabou por me falar do Luís Resina, que viria a conhecer e a entrevistar poucos dias depois.

Tenho vindo a aperceber-me que a minha missão é a de escrever e contar todas estas histórias, apresentar ao mundo todas estas pessoas que a sincronicidade e a sorte trazem até ao meu caminho, para que mais pessoas conheçam e se sintam inspiradas a procurar o tal bright side que nos querem fazer acreditar ser quase impossível existir.

É graças à Katie que hoje viajo para Mallorca, onde me aguarda um sofá oferecido pelo o Willian, amigo que conheci há 10 anos e com quem nunca mais estive, para encontrar uma das mentes mais fascinantes que me foi apresentada pela Internet, por indicação dela.

Kaypacha, um norte americano, astrólogo profissional há mais de 40 anos, que dedica-se a descrever as mudanças da humanidade através do reflexo dos movimentos dos astros e do cosmos. Assim que vi o primeiro vídeo dele soube que teria de o conhecer um dia e não descansei enquanto não fiz por vir encontrá-lo.

Sem bilhete para o curso que ele veio dar, sem muito tostão no bolso, só com um bilhete de avião e uma rendição completa ao que a vida me quiser oferecer, vim até Mallorca para perceber quem é, afinal, este tal Kaypacha.

Quando cheguei a Palma e expliquei ao Willian o que me trazia a reencontrá-lo tantos anos depois, de copo de vinho na mão e Paella do Calixto à frente, os olhos azuis dele estavam arregalados e a boca semi-aberta.

– És louca. Vais encontrar-te com ele onde?
– Nas montanhas. Queres vir? Ajudas-me a segurar na câmera.
– Ai. Olha que eu também sou maluco.
– Anda, vai ser uma experiência bonita.
– Já estou arrepiado. Vá, um brinde então.
– Incrível. Brindemos então: a todos os loucos que vão.

Hungria. “Estão a falsificar a nossa história”

Em Budapeste sente-se a pressão de um governo ditatorial e nacionalista que tenta alterar o passado em proveito próprio. Mas há ativistas que não desistem de manter vivo o respeito pelas vítimas da história de um país que parece ter esquecido o seu legado

A viagem da Sérvia até à Hungria ganhou o prémio na categoria de “a mais desconfortável da vida”. Foi a primeira que fizemos em modo interrail, cujo passe nos permitia deslocarmo-nos de comboio durante cinco dias por quaisquer países incluídos no serviço. Com o passe da Eurail, é raro termos de reservar lugar nos comboios, mas sendo este um noturno foi preciso passar por uma bilheteira e pedir dois lugares de Belgrado até Budapeste.A modalidade da reserva incluía uma “cama” e daí que a nossa ingenuidade nos levou a pensar que as próximas oito horas seriam as de maior conforto de toda a experiência balcânica. Estávamos absolutamente erradas. Quando demos de frente com a cabina que nos estava destinada, demos connosco num estreitíssimo compartimento cujas camas se resumiam a seis tábuas forradas a tecido, três de cada lado da cabina, cuja estabilidade era no mínimo duvidosa.

Chegámos à conclusão que o mais seguro seria optar por escolher as camas do terceiro andar, não fôssemos nós levar com aquilo na cabeça. As escadas improvisadas provocaram alguns ataques de riso e a quase impossibilidade de as usar provocaram uma reprimenda em sérvio do revisor, que nos viu a tentar apoiar os pés numa das camas improvisadas. O calor provocado por um exagerado aquecimento central tornou-se insuportável e decidimos abrir as janelas do corredor, com esperança que corresse um pouco de ar fresco. O ar lá fora era gélido, o luar refletia-se nas enormes planícies que corriam a alta velocidade, num cenário digno de um filme de Hayao Miyazaki.

Bem encostadas, cada uma do seu lado da cabina, lá acabámos por adormecer e só acordámos quando a polícia das fronteiras nos bateu à porta. Estivemos imenso tempo parados, tanto na saída da Sérvia como na entrada para a Hungria, cujas normas fronteiriças estão mais estritas que nunca. De novo de olhos fechados, já só voltaríamos a acordar com os berros do mesmo revisor rezingão e de alguns dos passageiros que nos avisavam sobre a chegada a Budapeste. Eram seis da manhã, já havia imenso movimento nas ruas. Em frente à estação estava um dos imensos Starbucks da cidade. Eu nunca havia entrado num porque os preços sempre me pareceram ridículos, e com razão, já que dei por mim a pagar seis euros por um sumo de laranja natural que chorei durante todo o dia. A moeda ainda não era o euro, mas o ar era o mais ocidental que respirávamos em dias que nos pareciam meses. A noção do tempo em viagem é sempre confusa, um dia pode demorar um ano ou uma hora, as datas deixam de ser assim tão importantes e a luz do sol é o ponteiro que melhor nos guia.

Em Budapeste ficámos hospedados em casa de um casal amigo que está a trabalhar há um ano na cidade. O emprego fica numa multinacional, trabalham com vários conterrâneos e têm direito a ir a Portugal uma vez por mês, viagem essa comparticipada pela empresa.

A casa onde vivem é digna de um cenário de filme clássico italiano. Ao entrarmos por um portão de madeira já muito gasta, um enorme terraço circundado por varandas imponentes e várias plantas nos beirais dão um ar sublime àquilo que, por fora, parecia só a entrada para uma casa velha.

Com enormes pilares verticais, ao cimo vê-se o céu azul limpo, indicador de que também em Budapeste vamos ter sorte com a meteorologia.

Depois de repostas as energias fomos até ao museu Casa do Terror, cujo objetivo é imortalizar as vítimas dos regimes fascistas e comunistas. O museu, inaugurado em 2002, é massivo, interminável e exaustivo. As enormes salas estão desenhadas e pensadas ao pormenor para que o visitante sinta o desconforto natural de uma casa que serviu de teto a inúmeras torturas e mortes de vítimas de sistemas desumanos. Porém, para quem tiver algum conhecimento mais aprofundado da História, é nítida a tentativa de alteração de contextos e cenários políticos em favorecimento de um sistema nacionalista.

Assim o reclamam ativistas húngaros, maioritariamente de gerações mais velhas porque “os mais novos não se podem mostrar contra o sistema, caso contrário ficam sem emprego”, explicam-nos mais tarde. Consideram o museu um atentado à história da Hungria, numa tentativa de tentar minimizar a participação húngara no desfecho da limpeza étnica durante a ii Guerra Mundial. Maria Schmidt, diretora e curadora do museu, tem sido acusada de alterar a história e ignorar o Holocausto, focando-se na ocupação soviética e ignorando a participação da Hungria nos horrores da ii Guerra Mundial.

“É mais uma aliada do sistema de Orbán, ela faz parte do governo dele, a mesma historiadora que considera Schengen o fim da soberania do seu país, que afirma que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é o maior causador da crise europeia por colocar os direitos humanos em primeiro plano em vez da defesa das fronteiras”, lê-se num dos documentos de protesto contra a “falsificação da História”.

“Quando vieram para o poder, há sete anos, a primeira coisa que fizeram foi reescrever a Constituição e mudar o primeiro parágrafo, como se 60 anos de História não tivessem existido. Como se a minha existência nunca tivesse acontecido”, diz-nos Andrew, cruzando os braços e falando calmamente. É professor de História e tem dois filhos. O cabelo branco não o impede de estar no seu turno de protesto todas as semanas, mesmo sendo de fora da cidade. Nascido em 1957, assistiu ao domínio soviético, os pais foram vítimas dos nazis e a avó foi baleada na cabeça nas margens do Danúbio, uma vez que todos eram judeus.

O memorial chama-se “Memorial às Vítimas da Invasão Alemã”. Deveria homenagear as vítimas do Holocausto e tudo parecia bem até que, depois de construído, uma parte da população se apercebeu de que “tudo estava errado”. “A estátua mostra o Anjo Gabriel de maçã real na mão e a águia alemã pronta para caçar. Eles querem fazer parecer que a Hungria foi uma vítima da ocupação alemã quando a História está farta de nos provar que a Hungria foi aliada dos Alemães. Isto não é correto. Nós não fomos ocupados.”

Também o sistema eleitoral foi alterado assim que subiram ao poder, desde a organização geográfica ao número de rondas de votos. O que faz com que este governo, com apenas 44% dos votos, tenha o poder, uma vez que assim foi possível conseguirem dois terços dos lugares no parlamento.

Frente à estátua está um conjunto de elementos que os ativistas colocaram como lembrança constante das vítimas do Holocausto. “A minha mãe morreu em Auschwitz”, lê-se num dos cartazes. Há traduções em várias línguas do documento que explica a todos que visitam o monumento a gravidade do que ele representa. “O que me preocupa mais são as gerações mais novas. O sistema de ensino é tão mau que eles não fazem ideia do que se passa, não conhecem a história, não têm posição política”, explica Andrew. “Os meus filhos, com mais de 20 anos, descredibilizam constantemente o perigo desta ditadura pseudodemocrática e nem sequer entendem o populismo. É assustador que a maioria dos apoiantes da extrema-direita sejam os jovens.”

Na sua opinião, o complexo de inferioridade ajuda ao crescimento de uma sociedade machista, racista, xenófoba e homofóbica. Propaga-se uma ideia de soberania e poder de um país que, na verdade, está em constante desmoronamento. Mas o que mais o revolta é que os maiores propagadores destes ideais são os jovens: “Como pode haver tanto ódio numa geração tão jovem quando eles nem passaram pelos sistemas como nós? Deviam ser eles a mudar mas, neste país, os mais velhos são os que têm a mente mais aberta.”

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/585972/hungria-estao-a-falsificar-a-nossa-historia-?seccao=Portugal_i