Mostar. “Nesta cidade não havia espaço para a morte”

Quando a guerra chegou a Mostar, em 1993, não havia espaço para enterrar os que partiam. Os parques onde as crianças brincavam tornaram-se cemitérios, numa altura em enterrar os entes queridos se tornava uma missão de risco.

Enquanto caminho de mãos atrás das costas e semblante carregado por estes caminhos que nos levam ao centro da cidade de Mostar, lembro-me que Saramago perguntava de que servia o arrependimento, se o puro e simples acto de quem se arrepende em nada pode mudar o que se havia já passado. “O melhor arrependimento é, simplesmente, mudar”, dizia. Em Mostar, os nossos corpos reagiam sempre que cruzávamos novas ruas.

Cada passo equivalia ao relembrar constante de que o tempo não pode apagar a memória do que tudo mudou. Os estômagos encolhem. Inscrições por toda a cidade pedem para que a história não seja esquecida. “Remember 93” aparece em paredes, caixotes do lixo, na entrada da Ponte Velha que, quando destruída, materializou o orgulho ferido, toda a dor e revolta dos que por lá viviam.

Ainda perto da casa de Armar, onde estávamos hospedadas, nos destroços que ficaram de um edifício cujas paredes não venceram a força da gravidade lê-se: “Narnia is closed”. Permanecemos em silêncio a mastigar o que as palavras desenhadas a spray não conseguiram digerir. Nas estradas que circundam a cidade ainda existem avisos para o perigo de minas.

Armar, enquanto nos descreve o que era Mostar antes da guerra a que assistiu aos 13 anos, conta que havia vários parques para as crianças brincarem, “todos eles foram transformados em cemitérios, nesta cidade não havia espaço para a morte”.

“Em tempos de guerra não há tempo para velórios ou funerais à luz do dia. Tínhamos de ir às duas e três da manhã, sem luz, enterrar os nossos e esperar que ninguém morresse enquanto o fazíamos. Era um risco dizer adeus”, descreve enquanto dobra o mapa onde marcou a caneta conselhos para comer bem e barato.

Na Bósnia e Herzegovina os preços das refeições deixam-nos boquiabertas, é tudo tão barato. Uma refeição inteira fica-nos por cinco euros. Almoçámos num restaurante ao ar livre, chama-se Saray e tem à porta o menu em inglês e alemão. Por cá come-se essencialmente veado, mas para quem não come carne também se encontram soluções agradáveis ao paladar. O sol bate-nos nas costas, a funcionária avisa que não se vendem bebidas alcoólicas porque o restaurante fica colado à mesquita que iremos agora visitar.

O tecto não é o original, foi renovado porque o anterior foi bombardeado. Um antigo professor de História guarda a entrada de uma das dezenas de mesquitas da cidade. Esta foi construída em 1557 e guarda o mais antigo Corão em toda a Bósnia, oferecido pela Turquia depois da calamidade. “Um país tão forte tornou-se nada. As pessoas quando estão em guerra ficam loucas, tudo a que se podem agarrar é a Deus”, diz o antigo professor que ora mistura inglês, ora lhe mete uns ares de italiano à mistura.

Na Bósnia e Herzegovina ficaremos sempre a meias que perdidas em traduções mal arranhadas. São poucos os que entendem e falam inglês, mas todos fazem um enorme esforço por comunicar. Quando há falta de melhor vocabulário, os gestos e os sorrisos de quem não faz ideia do que lhes estão a dizer lá nos safam.

Um rapaz de 28 anos, Hasar, trabalha o cobre num pequeno estabelecimento onde há mais objectos do que espaço livre. O constante martelar ensurdece-nos, mas sempre dá para perceber que se trata de uma arte de família, de há várias gerações. Hoje, ele e o primo mantêm o negócio da família, segredos de um ofício que o pai lhe passou como legado. Nas ruas do centro sentem-se as influências turcas. Há bazares de um lado de do outro, com artesanato, sacos de alfazema, lamparinas, serviços de chá e bijuteria. Raparigas com Hijabs na cabeça olham os manequins que exibem belas túnicas coloridas. Um grupo de crianças ciganas romenas pede enquanto sentadas no chão, junto da mãe cujo ar cansado pede um tostão como ajuda.

O turismo em Mostar foi sempre forte. Conta-se que a virgem Maria apareceu em 1981 a umas crianças numa localidade muito perto da cidade, conhecida por Medjugorje. Católicos de todo lado aproveitam a proximidade do local das aparições à cidade e visitam-na.

Subimos à famosa ponte. O vento corta-nos as caras que não conseguem desviar os olhos da paisagem que se vê dali. Duas comunidades separadas por uma ponte que não separa nada do que se passou ali. “O lado negro foi um só para todos”, dizia Armar mais tarde quando lhe descrevemos a nossa percepção do que se viveu ali. “A Jugoslávia só era má para os que estavam de fora, os que viviam aqui eram felizes”, afirma enquanto nos conta histórias sobre as cinco gerações da sua família que sempre viveram em Mostar. “A minha família tinha várias casas, hoje das que não foram destruídas fizemos hostels, recebemos pessoas nelas, na Bósnia adoramos receber gente em casa”.

Despois da ponte, do lado croata, as ruas são mais cinzentas, há menos lojas e não há sinal de mesquitas. Passámos por um quiosque, está um homem mais velho e um mais novo a espreitar. “English?”, perguntam-nos. Sim, respondo. Somos portuguesas. “Ah Portugalia…”, grita seguindo-se uma lista de todas as cidades portuguesas cujas equipas de futebol se lembrassem.

Porto! Benfica! Sporting!, a estas estamos habituadas a ouvir, mas de repente: “Braga. Guimarães. Setúbal. In Porto…Boavista!!” O nosso ar de espanto. Eu olhava para a Diana, ela para mim. Como é que de forma tão aleatória, do nada, nos chamavam por casa?

Durante a tarde, quando passeávamos por um dos terraços da principal Mesquita da cidade, aproximámo-nos de um dos bazares e trocámos boas tardes com uma mulher muito bem arranjada e que falava um claro inglês.

Arnela, fugiu de casa aos 14 anos, juntamente com a família para se abrigarem da guerra na cidade, onde sempre era mais protegido. Entre um turbilhão de trocas e voltas que vida lhe deu, Arnela, de 39 anos, juntou-se à missão de paz da ONU, onde acompanhava as equipas internacionais da International Police Task Force”e as mediava com as locais. Era um “mundo de gestão logística, de conflito, de terreno. Geríamos desde a luta contra o tráfico humano, quanto os conflitos em jogos de futebol onde as claques lutavam por mais do que futebol”, descreve e completa: “Comigo trabalhava um português”.

Arnela diz-nos que a sua história é demasiado longa, mas que ficou sem trabalho e agora, finalmente, irá deixar o trabalho da loja que gere com o marido, para poder voltar ao trabalho de cooperação internacional, numa ONG de apoio a mulheres na Bósnia e Herzegovinha.

Depois de receber uma entrega de pizza com a inscrição “Porto Pizza”, que nos oferece, olha para fora da loja que lhe foi oferecida por um amigo, quando o marido andava desesperado à procura de emprego e todos prometiam, mas ninguém ajudava. “Depois, do nada aparece este amigo e diz: eu não preciso de três lojas, sabem? Fiquem com esta e tratem bem da vossa vida”, conta Arnela com ar de quem percebe que ninguém está habituado a tal grau de bondade.

“Por cá, temos um ditado antigo que traduzido é algo como: “Se fores demasiado brando, talvez devas repensar a direção, porque podes estar a caminhar para baixo”.

Foto:Diana Tinoco
Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/583444/mostar-nesta-cidade-nao-havia-espaco-para-a-morte-?seccao=Portugal_i

Mostar. A cidade que renasceu das cinzas

A memória dos habitantes de Mostar não deixa que se apaguem as marcas de uma cidade fustigada pela guerra. As fachadas dos prédios ainda mostram as cicatrizes de quem testemunhou o pior lado da humanidade

Chegar à Bósnia e Herzegovina é perceber que não percebemos nada. Sabíamos que íamos sair do conforto da União Europeia, em que não há nada com que tenhamos de nos preocupar, está tudo assegurado pela universalidade das regras e das normativas de um mercado único que uniformiza muito do nosso dia-a-dia sem que nos apercebamos.Passamos a fronteira e estamos no desconhecido. Sobre o país, sabemos o que os media, os professores e os livros que lemos nos ensinaram. Nada se assemelhará aos testemunhos vivos que encontraremos nas ruas daquele que é o país que até hoje mais me pesou. A guerra foi-nos sempre um conceito distante. O sítio onde nascemos foi-nos dado por um fortuito acaso, mas nem todos tiveram a mesma sorte dos que nasceram na bela costa ocidental europeia.

Tudo o que virá a partir desta fronteira será de aprendizagem permanente, choque cultural, avalanche de informação e overdose de emoções. Os novos eram demasiado novos quando a guerra lhes chegou, mas a memória demasiado forte para que se esqueçam, os velhos eram demasiado velhos para que não se esqueçam. Estão abertas as cicatrizes dos tiros, das bombas, os edifícios ainda têm marcas de horror e pobreza. Tudo o que vemos e visitamos brotou da resiliência e da luz de um povo que é demasiado bom a receber estranhos.

Ainda no autocarro de Dubrovnik até Mostar, que nos custou 101 kunas croatas – aproximadamente 13 euros –, senta-se ao meu lado Øystein Nybø. De grande porte, olhos azuis e uma careca a descascar graças ao sol que apanhou no sul da Croácia, o norueguês de 55 anos sorri enquanto distribuem os passaportes, depois de passarmos a fronteira para a Bósnia e Herzegovina. “Aposto que nem vai tentar ler o meu nome”, diz-me a rir-se. Estava certo. Depois de pronunciar tudo que era nome de gente naquele autocarro, a senhora que distribuía os documentos de identificação bem tentou, mas acabou por desistir e guiar-se apenas pela fotografia. Øystein deu uma gargalhada: “É sempre assim.”

Daí surgiu a conversa que só terminou quando saímos, em Mostar. Øystein continuaria até Sarajevo e daí voltaria à Noruega. Nunca foi a Portugal, mas conta-nos que um amigo encontrou o seu grande amor em Lisboa, enquanto passava férias e trazia uma t-shirt com a inscrição “I love Sydney” vestida. “Ele vivia em Sidney e não se tinha apaixonado, é preciso ir a Lisboa com uma t-shirt daquelas para uma australiana ir ter com ele, a perguntar se conhecia a cidade, para até hoje ainda estarem casados”, conta, entusiasmado. Já ouviu falar muito bem da comida e da história portuguesa. Mas é um apaixonado pela Bósnia e Herzegovina e esta é já a quarta vez que vai a Sarajevo. Trabalhou para a NATO numa missão de paz no norte da Croácia na altura do pós-guerra, já depois de 93. Escreve artigos para revistas militares e garante que este país que estou prestes a conhecer “é a verdadeira pérola da Europa, sem que nada se assemelhe a ele”. Mais tarde vou perceber porquê mas, por enquanto, apenas me aguça a curiosidade.

Despedimo-nos e trocámos contactos. O autocarro chega finalmente a Mostar.

Chegámos à estação de autocarros da cidade, levantámos dinheiro e levámos logo com uma taxa de seis euros por estarmos fora da rota da UE. Recebemos a mensagem do roaming, um megabyte de internet equivale a seis euros, acabaram-se os dados móveis e tudo será feito offline. Um marco conversível bósnio (KM) equivale a 50 cêntimos. Com a ajuda da tecnologia, mais uma vez, com o mapa offline descarregado do Google Trips, seguimos até ao Hostel Lovely Home. Poupam-se uns quantos trocos em usar mapas digitais; caso contrário, teríamos colecionado mapas a viagem toda.

Mostar é verde e, embora cidade, parece uma aldeia grande, onde as ruas são cobertas por uma calçada irregular, de pedras gordas, redondas.

Depois de andarmos 600 metros virámos por uma rua que nos levou a uma viela apertada, com quintais e portões grandes, até que uma criança de cinco anos, com óculos redondos, numa bicicleta já sem rodinhas, nos pergunta com um enorme sorriso “Hostel Lovely Home?”, enquanto com o braço nos faz sinal para a seguirmos.

Já à porta aparece o pai do miúdo, nosso anfitrião. Armar tem 39 anos, mas a idade pesa-lhe no rosto. “As primeiras bombas caíram tinha eu 13 anos, quem cresce na guerra nunca mais esquece, compreendes? Oh, claro que não compreendes. Fico feliz que não compreendam”, diz-nos enquanto nos serve café feito por ele, à moda do seu país, com uma valente borra no fundo. Enquanto nos recebe desenha-nos no mapa tudo o que precisamos saber sobre Mostar.

“Esta cidade era linda, era a capital da Herzegovina. No tempo da Jugoslávia éramos tão, tão felizes. Destruiu-se tudo, hoje somos assim, pobres, não temos nada”, lamenta, enquanto mostra vídeos do bombardeamento da imagem de marca da cidade: a famosa Ponte Velha, construída no tempo do Império Otomano e que se erguia no rio Neretva há 427 anos até que foi completamente destruída pela Guerra da Bósnia em 1993.

Armar fala-nos da situação política do país, que foi mais tarde confirmada por todos os habitantes da Bósnia e Herzegovina que viríamos a conhecer: “É caótica, tudo funciona muito mal. Vejam que Mostar não tem eleições desde 2008!”, descreve com indignação.

O transparente rio Neretva é a fronteira natural que divide os bósnios muçulmanos e os sérvios dos croatas. Depois do conflito a maioria dos sérvios deixou a cidade, mantendo-se apenas uma pequena porção desta comunidade étnica. Hoje, apesar de separadas pelo rio, as três etnias vivem em paz, sendo a maior porção da população croata.

Ainda ao pequeno-almoço, Armar diz que as estatísticas são feitas só para o poder e os jornalistas: “Nós nunca quisemos saber da etnia de ninguém, vivíamos todos felizes e misturados. Sabemos respeitar o conceito de multiculturalismo. Até que quiseram separar-nos a todos. E conseguiram. A guerra levou-nos tudo.”

Foto: Diana Tinoco

Publicado em: https://ionline.sapo.pt/artigo/583320/mostar-a-cidade-que-renasceu-das-cinzas-?seccao=Portugal_i